segunda-feira, julho 27

Quando até os melhores sonhos ferem

Assim que ultrapassou a linha dos 70 anos, desabaram sobre ele, de uma vez só, todas as calamidades do corpo e da alma. Tudo lhe doía, tudo lhe pesava: andar, ficar sentado, mastigar, e até respirar. Uma depressão aguda passou a martirizá-lo e, apesar das consultas bimestrais com o psiquiatra, a única mudança que a mulher, os parentes e os amigos notavam na situação dele era: ia de mal a pior.

Ele se lastimava o dia inteiro, blasfemava, gemia, xingava, dizia que ninguém se importava com ele. Mas, se a mulher lhe perguntava se ele queria alguma coisa, respondia:

“Não quero nada. O que eu podia querer?”

E voltava a se lastimar, a blasfemar, a gemer, a xingar, a dizer que ninguém se importava com ele. Procurando alívio no sono, cada vez ia se deitar mais cedo: às nove, às oito e meia, às oito. Mas acordava às dez, à meia-noite, às duas, às quatro, às seis, atormentado por pesadelos em que a única variação era a forma pela qual morria:afogado no naufrágio de um transatlântico, sufocado no incêndio da casa, baleado num assalto.

Levantava-se de manhã como se levantaria um morto da tumba: pálido e mudo. A mulher, para não receber respostas desaforadas, não fazia nenhuma pergunta. Punha o café, o leite, o pão, a margarina, o queijo, sentava-se e tentava comer sem um barulhinho, para adiar a primeira explosão do marido.

Certa manhã, uma surpresa: o homem sentou-se, abriu um sorriso, deu um bom gole no café, estalou a língua, satisfeito, e mordeu o pãozinho como se fosse a maior das delícias.

A mulher se encorajou:

“Você parece ótimo hoje.”

“É.”

“O que foi?”

“Eu tive um sonho bom. Voltei no tempo. Sonhei que tinha dez anos. Era 23 de dezembro e meu pai prometeu me dar no dia seguinte a bicicleta que eu vinha pedindo fazia dois anos.”

“É bom ser jovem de novo.”

“É. Mesmo que seja só num sonho.”


Nesse dia, o homem gemeu menos e quase não foi ranzinza. À noite, foi abençoado com outro sonho, que se apressou a contar à mulher na manhã seguinte:

“Ganhei a bicicleta. Foi justinho como aconteceu de verdade, 60 anos atrás. A bicicleta não estava com os outros presentes embaixo da árvore e eu achei que meu pai ia me decepcionar outra vez. Mas ela estava escondida na garagem. Meu pai me pediu para ir dar a partida no carro, para ele consertar o motor, mas era uma pegadinha. Quando ele acendeu a luz, lá estava a bicicleta. Você não me ouviu gritar de alegria?”

“Não. É engraçado, isso. Você anda sonhando em sequência.”

“É. Como se eu estivesse vivendo de novo minha infância, um dia depois do outro.”

Também nesse dia o homem pareceu ter esquecido as dores e a depressão. Tagarelou a manhã toda, almoçou com gosto e, à tarde, animou-se a dar um passeio a pé.

A mulher estava preparando o jantar quando ele voltou. Vinha irritado e triste.

“Ei, o que foi?”, ela estranhou.

“Estou pensando se esta noite eu vou sonhar de novo.”

“E isso não é bom?”

“Bom? Como pode ser bom? Pela lógica, hoje eu vou sonhar que é 25 de dezembro e que eu vou sair pela rua com a bicicleta que ganhei ontem.”

“E daí?”

“Daí que eu não vou conseguir, com as pernas doendo como estão.”

“No sonho você consegue, você vai ver.”

O homem parou para pensar. Ficou assim alguns instantes. Depois, ainda desanimado, disse, apalpando a perna, onde havia uma cicatriz bem antiga:

“É. Mas, se eu conseguir, vou bater no muro e cair bem na frente da minha namoradinha. E todos vão rir de mim, como naquele dia.”

Nessa noite, o homem deitou-se tarde e fez o possível e o impossível para se manter acordado.
Raul Drewnick

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