Parámos à entrada, em frente dos cartazes, e o Rui tentou adivinhar a história do filme que íamos ver, Dois Homens e Um Destino. A minha irmã e a Editinha suspiraram pelo Paul Newman, O Robert Redford também é um grande borracho, disse a Anita. O Garrincha e o Nando garantiram a pés juntos que nenhuma mulher sorria como a Katharine Ross. Não conseguia repetir os nomes dos atores e parte das conversas da minha irmã e dos seus amigos era-me incompreensível. Quando o filme começou e me submergiu num mundo tecnicolor, estremeci com o impacto violento do som, a brisa arrepiou-me, o Miramar não tinha paredes e usava o céu como teto, a Baía de Luanda ficava logo atrás do ecrã gigante, havia os jardins em socalcos, era tudo tão diferente, tão maior, tão mais bonito do que o África, o cinema do nosso bairro. Era difícil seguir o enredo, a rapidez com que as legendas se sucediam atrapalhava-me a leitura, estava sempre a perguntar à minha irmã, O que é que eles disseram?, a maior parte das vezes recebia de volta uma cotovelada, Se não te calas nunca mais te trago.
Raindrops keep falling on my head
But that doesn’t mean my eyes will soon be turning red
Crying’s not for me
I don’t know how to love him
What to do, how to move him
I’ve been changed, yes really changed
Maria Madalena cantava ao Jesus adormecido, enquanto a minha irmã e eu estávamos escondidas, à entrada do Miramar. Aquela canção era uma das preferidas da minha irmã, tinha o single e tudo, mas dessa vez não se pôs a trauteá-la na sua compenetrada desafinação adolescente. Quando soubemos da reposição do filme Jesus Cristo Superstar dissemos imediatamente que o queríamos ir ver. A nossa mãe opôs-se, No estado em que as coisas estão, só se deve sair de casa se tiver mesmo de ser. Com o estado em que as coisas estão a minha mãe queria dizer a guerra. O nosso pai, na vã tentativa de se convencer de que ia correr tudo bem, autorizou a nossa ida, De qualquer maneira, tenho de ir à Baixa, levo-as e trago-as. Voltaríamos antes do recolher obrigatório.
Assim que o nosso pai nos deixou e entrámos no Miramar, a minha irmã disse, Não devíamos ter vindo, somos as únicas brancas sozinhas. E, para mais, o cinema sem amigos não era a mesma coisa. Já nada era a mesma coisa. Alguns cartazes tinham sido rasgados, não havia anúncios de novos filmes, as notícias do estado do mundo estavam meses atrasadas, o vendedor dos chocolates já não se passeava entre as filas, o bar fazia pena com as suas prateleiras vazias. Sentámo-nos numa das primeiras filas. Ao nosso lado, famílias dos musseques mais próximos, soldados armados de G3, miúdos que costumavam andar a engraxar sapatos ou a vender laranjas. Miúdos que deviam ter feito parte do nosso grupo de cinema de antes. Deveria ter sido assim, mas não fora. E, agora, nos últimos tempos, tudo conspirava para que nos afastássemos ainda mais uns dos outros, para que tivéssemos mais medo uns dos outros, para que nos dividíssemos mais. Nós e eles. Como em qualquer guerra.
Se o filme fosse de cowboys, podíamos ter achado que os primeiros tiros que se ouviram eram a fingir. As rajadas que se seguiram não deixaram dúvidas de que o tiroteio estava mesmo a acontecer. Alguns brancos levantaram-se e foram-se embora. A minha irmã e eu não sabíamos o que fazer. Não tardou que o homem da bilheteira viesse avisar que a cidade ia ser cortada a meio, dali a pouco ninguém poderia passar de um lado para o outro da linha de comboio. A debandada dos brancos não se fez esperar. A nossa casa ficava além da linha de comboio, mas tínhamos de esperar pelo nosso pai, ele apanhar-nos-ia no fim do filme. Mas como continuar sentadas, sendo as únicas brancas?
Já na rua, enquanto procurávamos um sítio para nos escondermos, continuámos a ouvir Jesus, ao longe.No ecrã do Miramar, nada o desviava do seu destino. Quase não passavam carros de civis, em contrapartida abundavam os jipes com soldados dos movimentos independentistas. E se morrermos por causa do cinema? Lembro-me de que foi exatamente assim que a minha irmã disse, Por causa do cinema. Fiquei por segundos distraída do medo, presa na estranheza daquela formulação, que me soou mais a um propósito do que a uma culpa. Já me tinham ensinado que a morte tinha utilidade, Jesus morrera por nós, os soldados morriam pela pátria, mas para que serviria a nossa morte?
Jesus ainda não tinha sido crucificado, quando o nosso pai apareceu. Entrámos para o carro com o sol a pôr-se no mar. Precipitadamente como sempre fazia por lá. E avançámos pela noite.
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