quinta-feira, julho 2

Deus é surdo?

– Deus te ouça.

Assim os homens retribuem à torcida para que a prova, o teste, a apresentação ou o exame de próstata lhes sejam favoráveis. Uma maneira de envolver uma entidade superior, pedir uma mãozinha do sobrenatural para ajudar num momento de aflição.

Incrível como só nessas horas a gente se lembra do barbudinho lá em cima. Quando nos sentimos impotentes, sem ter a quem recorrer, pedimos sua ajuda. Já para agradecer a existência do caqui, dos olhos verdes e do sol que de manhã faz brilhar as folhas, nem tchumbas. Nem quando tudo dá certo, até mais do que a gente esperava, alguém se lembra de agradecer. Ser Deus exige muita paciência.

Não sei se é impressão, mas de tanto apenas ser lembrado nas dificuldades, Deus se cansou. Cansou, ué. Deixou a gente falando sozinho, saiu chutando pedrinha e foi ouvir Caymmi ao violão (na sua onipotência, fez surgir o mar nas nuvens para inspirar o cantor). Querubins fofoqueiros dizem que, emocionado, nessas horas Ele costuma tomar um conhaquinho escondido.

Mas também, quem mandou criar o trovão, o grito, o estampido do tiro e o som no talo? Agora é essa coisa: o Criador parece se fazer de surdo, não dar muita bola às suas criaturas. Vamos combinar que lhe demos (e continuamos a dar) todos os motivos. Mas a gota d’água parece ter sido a profusão de pastores picaretas a falar (quando não a gritar) em seu nome.

Ou talvez tenha desenvolvido um ouvido seletivo, que só lhe permite ouvir o que interessa. Acontece. Meu avô Clóvis, por exemplo: não escutava o telefone ou o cobrador bater à porta; mas se a vó acendesse o fósforo para fazer café, não só ele ouvia como já sentava à mesa, levando um biscoito para acompanhar. E mordia com vontade, fazia questão de perceber as crocâncias.

Quando aborrecido, Deus costuma passear na imensa vastidão do universo. Braços unidos atrás do corpo, percorre com calma a distância de milhões de anos-luz entre as estrelas. Se acha tudo meio monótono, logo providencia o surgimento de uma nova nebulosa, daquelas cheias de cores, para se entreter. Se não está inspirado, pede ajuda a Chagall.

Como você acha que surgiram os cometas? Assim, do nada? Não, senhor: foi num estalar de dedos de Deus, meio entediado com a eternidade.

Caso o problema piore, posso recomendar um otorrino: o Dr. Alcântara, amigo de meu pai, que me atendeu quando criança. Ele deve estar por aí perto, só mandar chamar. Apenas não espere muita condescendência: no meu caso, o homem disse na lata que eu era surdo feito uma porta do ouvido direito, e me perguntou como respirava com um desvio de septo daquele. Não podia me ver que já queria operar. Para ser franco, toda vez eu saía meio deprimido do consultório do Dr. Alcântara.

Mas voltemos a Deus – voltemos nós, porque Ele sempre está. O problema é que o Altíssimo se distrai facinho, perde-se em pensamentos sobre o que faria se tivesse trabalhado no oitavo dia. Aí dá mole para surgir por aqui um vírus terrível, um ditador ou deixar capotar um ônibus escolar. Atenção, meu Deus!

Onze parágrafos e o raio não fulminou o ímpio cronista. Ufa. Pelo visto Ele releva essas blasfêmias inconsequentes, sem maldade alguma. Quem sabe um dia ainda passearemos pelo Sistema Solar, saltando de asteroide em asteroide, falando sobre bolo de fubá e passarinho? Eu adoraria: sempre quis conhecer de perto os anéis de Saturno.

Deus me ouça.
Cássio Zanatta

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