Às seis da manhã nem sempre o céu se abre, mas já passou há meia hora o primeiro ônibus roncando, e, meia hora depois, se não está ventando, cantam os bem-te-vis. Nem mais cem dias de confinamento podem me fazer conhecer o que é a vida de um encarcerado. Estamos, no fundo, a nos enviar cartas, que não serão necessariamente respondidas agora ou amanhã. Venho até aqui para atestar se ainda estou viva, se ainda sou capaz de comunicar aquela espécie de revolta que floresce de um bom estado da fé. Uma revolta que vem da boa raiva, a raiva fecunda, aquela raiva que Maria da Conceição Tavares definiu como energia. Num campo de trânsito, há 77 anos, toda terça-feira partia um trem para Auschwitz numa média de mil pessoas por viagem. Agora, aqui, é como se partisse um trem por dia. A lua tem aparecido antes das nove, vem despontando amarela e magnífica entre dois prédios como através de um dólmen. Será fútil pensar na solidão dos museus? Os parques devem começar a ser reabertos a partir da próxima semana, o que é mais um risco à vida e, à tentação da loucura, um desafogo. Recebo notícias de amigos, sinais de farol, suprimentos de energia. O sol tem aparecido só às sete e, se não vieram ainda, agora sim, vêm os bem-te-vis. A vizinha do andar de cima também parece querer provar sua existência batendo porta, batendo janela, arrastando móvel, pondo para gritar a furadeira. Se calhar de voltar como história esse tempo e a cronista com suas cartas ainda estiver por aqui, podendo fazer coincidir desejo com necessidade, só queria envelhecer perto do mar e não ser mais o ouvido que amortece cada pancada de raiva estéril da vizinha.
Mariana Ianelli
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