– A presa!
À rapariga de Cimadas a ordem do Leandro soou-lhe como uma chicotada. Sentiu um arrepio e logo a seguir uma dor morna no estômago, um malestar lento e teimoso, e calculou que era o medo, a dor do medo. Percebeu também que tinha a mão do guarda pousada no ombro – solta, sem vontade. Não era a garra de um carrasco, nem tão-pouco um sinal encorajador; era, quando muito, o gesto quase simbólico do carcereiro que se prepara para desligar da presa.
Floripes retirou para longe de si a mão que se demorara sobre ela. Depois, descalça e compondo o cabelo, encaminhou-se para a porta.
– Vira-te para a parede – ouviu dizer no corredor; e notou que era um dos algemados dando uma ordem um ao outro. Passou por esses vultos, ambos espalmados e unidos na penumbra, e não lhe deram tempo para ver mais nada. Acabava de entrar no gabinete de Leandro.
Ali havia o sargento e havia um homem gordo de samarra e boina à espanhola que, mal ela chegou, não fez outra coisa senão mirá-la. Rodeou-a, mediu-a dos pés à cabeça, pela frente, pelas costas, como quem aprecia um animal de feira.
– Ora, muito bem, mocinha. – O sargento alinhou meia dúzia de fotografias sobre o tampo da secretária. – Conheces algum destes fulanos? O gordo de boina à espanhola veio colocar-se junto de Leandro, estudando a rapariga, enquanto ela passava, um por um, os retratos. Deitado para trás na cadeira, o sargento desfrutava o espetáculo. No fim de tudo sorriu:
– Não conheces ninguém, não é assim?
– Não, senhor.
– Pois é. Tens fraca memória, coitadinha. Tens fraca memória, não tens? – O sargento virou-se para o gordo: – Come muito queijo, compreende o senhor? E é pena. Uma mocinha como ela até parece mal ser tão esquecida. Lá em casa não te dão ovos, menina?
José Cardoso Pires, "O hóspede de Job"
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