Desde 1948, quando saiu sua primeira coluna no diário “El Universal”, de Cartagena — cidade em que criaria uma fundação justamente para formar jornalistas, em 1994 —, García Márquez experimentou todo o repertório de textos para jornais. Publicou artigos, cartas, crônicas, perfis e matérias investigativas. Tudo com seu inconfundível estilo, que desafia a noção de realidade do leitor. Com um acervo tão rico, diversas antologias sobre sua obra jornalística buscam retratar o estilo do “Gabo repórter”. A mais recente delas, com o título “O escândalo do século” (Record), acaba de ser lançada no Brasil. A seleção de 50 textos publicados entre 1950 e 1984, feita por seu editor espanhol e amigo Cristóbal Pera, confirma a genialidade do colombiano e, em tempos de combate às fake news, evoca o poder do jornalismo e da escrita.
Para o jornalista americano Jon Lee Anderson, correspondente de guerra, biógrafo de Che Guevara, colaborador da revista “The New Yorker” e autor do prólogo do livro, a antologia reúne textos nos quais floresce o “Gabo clássico”: um contador de histórias por natureza, com um dom de prosa clara e observação social mordaz. Ele destaca textos como “S.S. sai de férias”, em que o escritor transforma a prosaica e habitual viagem do Papa saindo do Vaticano para o Palácio de Castel Gandolfo, nos arredores de Roma, em um conto de aventura cheio de suspense.
— Esta pequena narrativa, que ainda me faz rir quando a releio, é um exemplo perfeito da capacidade de Gabo de transformar o mundano em épico. Ela também ilustra sua crença de que o jornalismo, assim como a ficção, era melhor quando se baseava em uma boa e bem contada história — diz Lee Anderson.
Na obra, o leitor pode ainda acompanhar o colombiano narrando desde um insólito caso real de tráfico de mulheres de Paris para a América Latina até uma reconstituição cinematográfica do sequestro em massa de parlamentares pela guerrilha sandinista, na Nicarágua, em 1978. Pode encontrar ainda pérolas ficcionais publicadas na imprensa como o conto “A casa dos Buendía”. Nesse texto, seu famigerado personagem coronel Aureliano Buendía aparece pela primeira vez, numa espécie de fragmento inicial do que viria a ser “Cem anos de solidão”, seu romance mais aclamado.
A antologia revela tanto o lado de García Márquez como jornalista-raiz que incomodava poderosos com suas reportagens quanto o Gabo cronista fantástico, sarcástico e leve, tão vivo em sua ficção. Em muitos casos, os dois parecem indissociáveis.
Um exemplo é a grande reportagem “O escândalo do século”, que dá título à antologia. Enviado à Itália, ele narrou com precisão de jornalista o caso da jovem Wilma Montesi, filha de um carpinteiro em Roma encontrada morta em uma suspeita de assassinato envolvendo a elite política do país, em 1955. Em meio à narração atenta dos fatos, ele deixava sua marca já no subtítulo: “Morta, Wilma Montesi passeia pelo mundo”.
Um exemplo é a grande reportagem “O escândalo do século”, que dá título à antologia. Enviado à Itália, ele narrou com precisão de jornalista o caso da jovem Wilma Montesi, filha de um carpinteiro em Roma encontrada morta em uma suspeita de assassinato envolvendo a elite política do país, em 1955. Em meio à narração atenta dos fatos, ele deixava sua marca já no subtítulo: “Morta, Wilma Montesi passeia pelo mundo”.
Amigo de García Márquez e tradutor de suas obras para o português, o escritor e jornalista Eric Nepomuceno recorda bem a “grandeza de repórter” que o colombiano sabia exercer. Ele lembra de um episódio, quando foi escalado para cobrir o cortejo fúnebre do líder da revolução do Panamá Omar Torrijos, morto em 1981. Ao retornar ao México, onde era correspondente, foi encontrar Gabo, que havia deixado uma série de mensagens pedindo para vê-lo.
No encontro, o amigo iniciou um interrogatório minucioso. Queria saber todos detalhes da cobertura: como estavam reagindo as pessoas, como estavam as ruas da cidade do Panamá... No fim das contas, Nepomuceno contou ao menos cinco vezes a mesma história para o colombiano. E, no fim de semana seguinte, veio a surpresa.
— Nós dois escrevíamos para a revista mexicana “Processo”. E, quando abri o exemplar de sábado, estavam lá minha crônica sobre a morte de Torrijos e uma reportagem sobre o caso escrita de forma perfeita pelo García Márquez, sendo que ele nem tinha estado no local — conta.
— Nós dois escrevíamos para a revista mexicana “Processo”. E, quando abri o exemplar de sábado, estavam lá minha crônica sobre a morte de Torrijos e uma reportagem sobre o caso escrita de forma perfeita pelo García Márquez, sendo que ele nem tinha estado no local — conta.
Ele lembra que o autor de “Crônica de uma morte anunciada” seguia uma norma bem pessoal para separar a produção jornalística da ficcional. Dizia Gabo que, se num texto de ficção for acrescentado um dado da realidade, o leitor poderá sair convencido de que aquilo é verdade. Agora, se na literatura de não ficção tiver um dado falso, toda a verdade estará arruinada.
Apesar do encantamento com o jornalismo, o escritor também não se furtava a pôr o dedo na ferida da profissão. Na crônica “Literaturismo”, também presente nesta antologia, ao descrever o tratamento dado por um jornal a um caso tenebroso de assassinato, finaliza o texto com um resumo preciso da tensão narrativa entre o jornalismo e a literatura:
“A notícia não mereceu — ao câmbio atual da moeda jornalística — mais de duas colunas na página das notícias locais. É um ato sangrento, como qualquer outro. Com a diferença de que, nesses tempos, ele não tem nada de extraordinário, pois como notícia é demasiado corrente e como romance é demasiado truculento. Conviria recomendar um pouco de discrição à vida real”.
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