terça-feira, julho 21

Minhas livrarias

Uma de minhas tantas preocupações nestes dias de breu são as livrarias pequenas, as mais cálidas sempre. Sobreviverão?

Livrarias ocupam um lugar especial na minha memória, embora eu não tenha ideia de qual foi a primeira que conheci. Nem a vigésima.

Lembro porém perfeitamente — exceto o nome — da primeira que me marcou e, de certa forma, ajudou a mudar meu rumo de vida.

Foi em Montevidéu. Eu tinha uns 14, talvez 15 anos, e acompanhava meu pai, que estava a trabalho no Uruguai.

E então, andando pela Avenida 18 de Julio, vi numa vitrine um tesouro que tinha sido mencionado por Vinicius de Moraes: “Veinte poemas de amor y una canción desesperada”, de Pablo Neruda. Foi o primeiro Neruda que li na vida, tropeçando no castelhano.

Passadas tantas décadas, conto que espalhadas pelo mundo tenho, além de cafés, bares e restaurantes, livrarias. E que delas guardo uma memória cálida e permanente.

Algumas desapareceram faz tempo. Mas agora, nesses dias de pandemia, quarentena e breu, lembro de todas.

Lisboa, por exemplo. A Bertrand, no Chiado, é considerada a mais antiga livraria do mundo em atividade. E tenho também A Barata, onde em 2018 lancei a bela edição que a Porto fez de meus contos, “Bangladesh, talvez, e outras histórias”.

Até o começo dessa pandemia, continuavam lá, firmes. Terão resistido?

Em Madri tenho a Casa del Libro, na Gran Vía 29. É imensa, e não gosto de livrarias imensas. Mas sempre passo por lá atrás de tesouros. Outra é a Traficantes de Sueños, simpática, bem nutrida, jovial.

Paris? Ora, ora. Hemingwayniano radical, tenho a livraria ícone dos anos de 1920: Shakespeare And Company, que cometeu a ousadia insuperável de virar editora só para publicar “Ulysses”, de James Joyce, rejeitado pela censura das grandes, médias e pequenas editoras da época. Visito outras, claro. Mas a Shakespeare é ponto obrigatório quando flano por lá.

E tem Buenos Aires. Existem na cidade, dizem, mais livrarias que no Brasil inteiro. Faz um tempinho perdi a Clásica y Moderna, que não aguentou a recessão do governo Macri. Mas ainda existe em Palermo Viejo, espero, a esplêndida Libros del Pasaje.

No Rio, lembro dos tempos em que Aloisio Leite, sócio da Timbre, no Shopping da Gávea, capitaneava reuniões às quartas-feiras. Antônio Torres era assíduo, e volta e meia a Miúcha aparecia. Continuo dando uma passada por lá, e também pela Argumento, no Leblon.
Lembro da Malasartes, no andar de cima da Timbre, onde comprava livros para o Felipe quando ele tinha 9 ou 10 anos.

Com carinho especial lembro de uma nova, que começou a funcionar — e a funcionar bem — quando veio a pandemia e precisou fechar: a Janela, pertinho de casa, na rua Maria Angélica. Confio que Leticia e Martha, as donas, tornem a abrir as portas.

É com saudades que lembro de duas livrarias da Cidade do México que já não existem, a Ágora e a Parnaso. Hoje, tenho lá a El Sótano. Atenção: em castelhano, sótano não é sótão, é o contrário: porão...

Na Ágora eu tinha, toda quarta-feira às sete da noite, com rigor de sacerdote asteca, meu encontro com Juan Rulfo. Ele tomava café e contava coisas que estavam acontecendo em sua vida. Havia deixado de escrever fazia tempo. Contava coisas e eu sabia que mentia. Continuava criando o que já não escreveria. As histórias de amor eram especialmente belas e dilacerantes.

Rulfo partiu para sempre em 1986. E alguns anos mais tarde, como se não tivesse suportado a ausência de seu frequentador mais luminoso e iluminado, a livraria fechou.

Eu morava perto da Ágora, num apartamento do Rulfo, até que em 1980 mudei para Coyoacan, o centenário e belíssimo bairro colonial da capital mexicana.

A três quadras de casa estava a praça matriz dos tempos em que Coyoacán não era bairro, era município. Numa esquina dessa praça, a livraria Parnaso, que também tinha um café.

Virei frequentador. Foi lá que Eduardo Galeano e eu passamos dias e dias revisando a tradução de “Os Nascimentos”, primeiro volume da fabulosa trilogia “Memoria del Fuego”.

Cada vez que entrávamos num beco sem saída e ficávamos sem saber como continuar, passava pela calçada da praça uma moça belíssima. E imediatamente encontrávamos a saída do beco.

Nunca ouvimos sua voz, nunca soubemos seu nome. Eduardo e eu sempre ríamos dessa lembrança.

Um dia, nossa livraria daquela esquina fechou.

Mas na minha memória, a Parnaso permanece. E toda tarde, lá pelas quatro, a moça desliza pela calçada da praça, distante e em silêncio, sua beleza solar.
Eric Nepomuceno

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