Livrarias ocupam um lugar especial na minha memória, embora eu não tenha ideia de qual foi a primeira que conheci. Nem a vigésima.
Lembro porém perfeitamente — exceto o nome — da primeira que me marcou e, de certa forma, ajudou a mudar meu rumo de vida.
Foi em Montevidéu. Eu tinha uns 14, talvez 15 anos, e acompanhava meu pai, que estava a trabalho no Uruguai.
Lembro porém perfeitamente — exceto o nome — da primeira que me marcou e, de certa forma, ajudou a mudar meu rumo de vida.
Foi em Montevidéu. Eu tinha uns 14, talvez 15 anos, e acompanhava meu pai, que estava a trabalho no Uruguai.
E então, andando pela Avenida 18 de Julio, vi numa vitrine um tesouro que tinha sido mencionado por Vinicius de Moraes: “Veinte poemas de amor y una canción desesperada”, de Pablo Neruda. Foi o primeiro Neruda que li na vida, tropeçando no castelhano.
Passadas tantas décadas, conto que espalhadas pelo mundo tenho, além de cafés, bares e restaurantes, livrarias. E que delas guardo uma memória cálida e permanente.
Algumas desapareceram faz tempo. Mas agora, nesses dias de pandemia, quarentena e breu, lembro de todas.
Lisboa, por exemplo. A Bertrand, no Chiado, é considerada a mais antiga livraria do mundo em atividade. E tenho também A Barata, onde em 2018 lancei a bela edição que a Porto fez de meus contos, “Bangladesh, talvez, e outras histórias”.
Até o começo dessa pandemia, continuavam lá, firmes. Terão resistido?
Em Madri tenho a Casa del Libro, na Gran Vía 29. É imensa, e não gosto de livrarias imensas. Mas sempre passo por lá atrás de tesouros. Outra é a Traficantes de Sueños, simpática, bem nutrida, jovial.
Paris? Ora, ora. Hemingwayniano radical, tenho a livraria ícone dos anos de 1920: Shakespeare And Company, que cometeu a ousadia insuperável de virar editora só para publicar “Ulysses”, de James Joyce, rejeitado pela censura das grandes, médias e pequenas editoras da época. Visito outras, claro. Mas a Shakespeare é ponto obrigatório quando flano por lá.
Paris? Ora, ora. Hemingwayniano radical, tenho a livraria ícone dos anos de 1920: Shakespeare And Company, que cometeu a ousadia insuperável de virar editora só para publicar “Ulysses”, de James Joyce, rejeitado pela censura das grandes, médias e pequenas editoras da época. Visito outras, claro. Mas a Shakespeare é ponto obrigatório quando flano por lá.
E tem Buenos Aires. Existem na cidade, dizem, mais livrarias que no Brasil inteiro. Faz um tempinho perdi a Clásica y Moderna, que não aguentou a recessão do governo Macri. Mas ainda existe em Palermo Viejo, espero, a esplêndida Libros del Pasaje.
No Rio, lembro dos tempos em que Aloisio Leite, sócio da Timbre, no Shopping da Gávea, capitaneava reuniões às quartas-feiras. Antônio Torres era assíduo, e volta e meia a Miúcha aparecia. Continuo dando uma passada por lá, e também pela Argumento, no Leblon.
Lembro da Malasartes, no andar de cima da Timbre, onde comprava livros para o Felipe quando ele tinha 9 ou 10 anos.
Com carinho especial lembro de uma nova, que começou a funcionar — e a funcionar bem — quando veio a pandemia e precisou fechar: a Janela, pertinho de casa, na rua Maria Angélica. Confio que Leticia e Martha, as donas, tornem a abrir as portas.
É com saudades que lembro de duas livrarias da Cidade do México que já não existem, a Ágora e a Parnaso. Hoje, tenho lá a El Sótano. Atenção: em castelhano, sótano não é sótão, é o contrário: porão...
Na Ágora eu tinha, toda quarta-feira às sete da noite, com rigor de sacerdote asteca, meu encontro com Juan Rulfo. Ele tomava café e contava coisas que estavam acontecendo em sua vida. Havia deixado de escrever fazia tempo. Contava coisas e eu sabia que mentia. Continuava criando o que já não escreveria. As histórias de amor eram especialmente belas e dilacerantes.
Rulfo partiu para sempre em 1986. E alguns anos mais tarde, como se não tivesse suportado a ausência de seu frequentador mais luminoso e iluminado, a livraria fechou.
Eu morava perto da Ágora, num apartamento do Rulfo, até que em 1980 mudei para Coyoacan, o centenário e belíssimo bairro colonial da capital mexicana.
A três quadras de casa estava a praça matriz dos tempos em que Coyoacán não era bairro, era município. Numa esquina dessa praça, a livraria Parnaso, que também tinha um café.
Virei frequentador. Foi lá que Eduardo Galeano e eu passamos dias e dias revisando a tradução de “Os Nascimentos”, primeiro volume da fabulosa trilogia “Memoria del Fuego”.
Cada vez que entrávamos num beco sem saída e ficávamos sem saber como continuar, passava pela calçada da praça uma moça belíssima. E imediatamente encontrávamos a saída do beco.
Cada vez que entrávamos num beco sem saída e ficávamos sem saber como continuar, passava pela calçada da praça uma moça belíssima. E imediatamente encontrávamos a saída do beco.
Nunca ouvimos sua voz, nunca soubemos seu nome. Eduardo e eu sempre ríamos dessa lembrança.
Um dia, nossa livraria daquela esquina fechou.
Mas na minha memória, a Parnaso permanece. E toda tarde, lá pelas quatro, a moça desliza pela calçada da praça, distante e em silêncio, sua beleza solar.
Eric Nepomuceno
Eric Nepomuceno
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