segunda-feira, julho 13

Talvez os meus dedos

Quando vivi em Fonte Longa, o Ciclo Preparatório ainda não tinha um edifício próprio e as aulas eram na Junta de Freguesia, no salão paroquial ou no dos Bombeiros. Foi numa dessas aulas nómadas que perguntei à professora de Português, Que curso tenho de tirar para ser escritora? Eu era uma leitora ávida, um gosto solitário, ninguém que me fosse próximo tinha o hábito de ler. Qualquer um ou até nenhum, respondeu, para meu espanto, a professora. Se havia cursos para tudo, como era possível não existir um para se ser escritora? Este enigma não mais deixou de me atormentar.

Susa Monteiro
Estava já no Hotel Paris, como retornada, quando voltei a atacar as professoras com a mesma pergunta. Em Cascais, o Ciclo funcionava atrás do Jumbo, uns pavilhões pré-fabricados onde o frio da Metrópole se aprimorava na crueldade que exercia sobre o meu corpo ainda africano e mal agasalhado. Obtendo apenas respostas vagas, esperei passar para o liceu dos grandes, o de S. João do Estoril. O primeiro período não chegara ao fim e eu já tinha duas certezas: não havia um curso para me tornar escritora e as roupas que me davam nas Cáritas eram desusadamente feias e ridículas. Uma terceira certeza impunha-se cada vez mais inabalável: tinha de ser escritora. Por essa altura, eu já não queria escrever histórias como as dos Cinco e das Gémeas do Colégio de Santa Clara. Corria endiabrada por dentro dos livros que requisitava na biblioteca de turma, A Rua do gato que pesca, Anne Frank, e principalmente por dentro dos livros que o Sr. João, um vizinho do J. Pimenta, me emprestava, Aposto que este não consegues ler numa semana, e daí a dois ou três dias lá estava eu a bater-lhe à porta para devolver o Moby Dick, O Velho e o mar, Quo Vadis, Estranhos que encontramos, tantos livros li pela mão dele, até ao dia em que a campainha da sua casa ficou a ecoar sem ter por quem chamar e a morte do Sr. João me deixou numa tristeza que os livros descreviam tão bem.

Ia quase nos meus catorze anos, quando vi um filme que me mudou a vida, ainda que pouco mais guarde dele do que os grandes planos sobre as mãos da personagem de um escritor no teclado de uma máquina de escrever, os seus dedos num hipnotizante sobe e desce bonecreiro, um anfiteatro metálico de letras a levantarem-se em catapulta, martelando, velozes e violentas, a folha em branco. Tornou-se-me ali óbvia a resposta que ninguém me soubera dar: para ser escritora eu tinha de tirar um curso de datilografia. Precisava, pois, de descobrir uma escola e – mais difícil – convencer os meus pais a pagarem-me o curso. Não tendo telefone em casa, socorri-me da generosidade da minha amiga Teresa para consultar as páginas amarelas e fazer os telefonemas necessários. Havia escolas de datilografia, escolas de línguas que se complementavam com datilografia, associações culturais que davam umas horas de datilografia. Datilografia, datilografia, datilografia, a datilografia era um mundo de oportunidades. Descobri que o curso não era barato, o que agravava o meu problema, já que nessa altura, em minha casa, o dinheiro mal chegava para a comida, Se conseguires uma escola que te faça um bom desconto, eu pago, prometeu o meu pai cansado da minha insistência.

Apresentei a complicada situação em que me encontrava na escola mais próxima, a de Cascais, cujo nome já me esqueci. Em vão. Fui avançando pela Linha: Estoril, S. João, até chegar a Carcavelos, à responsável pela escola de datilografia O meu futuro. Ouvindo a minha história com atenção, propôs-me o curso de datilografia intensivo de verão. Cobrar-me-ia apenas metade.

Em 1978 morreram dois papas, o Aldo Moro foi raptado pelas Brigadas Vermelhas, a Escrava Isaura fugiu do Leôncio, o FMI entrou pela primeira vez em Portugal, o Mário Soares foi acusado de meter o socialismo na gaveta, o Raul Solnado apresentava a Visita da Cornélia, os meus amigos iam à praia e dançavam com os Boney M e a Kate Bush, e eu passei o verão numa sala, sentada à frente de uma máquina de escrever Olympia gasta pela inexperiência das alunas que me precederam. Ainda coloco os dedos nas teclas do computador como aprendi e tento seguir os outros ensinamentos, manter os cotovelos junto ao corpo, as mãos ligeiramente levantadas sobre o teclado, os olhos sempre no papel, agora um ecrã brilhante onde as letras se fixam por magia.

Costas direitas, repetia a professora, e ajeitávamo-nos nas cadeiras, eu e as minhas colegas. Estas colegas tão diferentes das do liceu, mulheres a quem a vida já havia endurecido os dedos e os sonhos, ambicionavam empregos em bancos e seguradoras ou, se assim não pudesse ser, um lugar na Função Pública. Nos intervalos acompanhava-as ao café e invejava-lhes as socas altas, as unhas pintadas de madrepérola, a maneira como pegavam no cigarro, gostava de ser quase uma delas, ouvia-as contar as discussões que haviam tido com os namorados, o remorso de deixarem os filhos aos cuidados das avós, os truques para parecerem mais magras ou para os sutiãs durarem mais tempo. De vez em quando, voltavam a reparar em mim para estranharem a minha assiduidade às aulas ou a minha compenetração na aprendizagem, perguntavam o que fazia ali, e eu sem hesitar, Estou a aprender a ser escritora. Riam-se.

Continuei, vida adentro, a dizer que queria ser escritora. No curso de Direito, no estágio de advocacia, nas reuniões de família e de amigos. Riam-se. Um riso diferente do das minhas colegas de datilografia. Era raro falar dos meus dotes datilográficos, considerava-os, há muito, disparatados. Estava errada:

Às vezes os dedos desatam a tamborilar no teclado, rápido, cada vez mais rápido. Acontece soltar-me deles, um tempo ínfimo, ainda assim suficiente para que, ao regressar, a dúvida se tenha instalado, Quem és tu que por mim escreves?

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