quarta-feira, julho 8

A vitória e os segredos dos livros proibidos

Ditadura de Pinochet queimou
livros no Chile, em 1973
Muitas vezes o fogo ficou órfão, para alegria da eternidade. Estão aí a Eneida e Lolita, separadas por mais de vinte séculos, mas irmanadas, para além da beleza literária, pelas chamas infrutíferas que seus próprios autores lhes prometeram e com aquelas com que ameaçaram alguns auto nomeados guardiões das ideias políticas, religiosas, sociais, éticas ou morais.

Uma aura de cinzas parece ter sido a sina de muitos livros ao longo dos 35 séculos da criação da escrita. O autor e crítico literário alemão Werner Fuld segue esse rasto vergonhoso do ser humano para relatar a história das obras que foram salvas da censura e perseguição, em "Breve historia de los libros prohibidos". Um livro importante, de todos os tempos e as civilizações, sobre os obstáculos e armadilhas à criação literária que se converte numa chama que traz à tona a necessidade de estarmos sempre alertados para a perpétua tentação de vigilantes e inquisidores com listas de livros proibidos e um fósforo na mão.

“Não há como negar que a maior parte da literatura universal estimula o pensamento próprio. No interesse da paz social, essa perturbação é intolerável”, afirma em tom irônico Werner Fuld, recordando a crítica de Ray Bradbury em Fahrenheit 451.

As páginas iluminam as passagens que possibilitaram o milagre de podermos desfrutar desses textos “suspeitos” e de escritores salvos quando balançavam à beira do abismo, além de outros que chegaram a cair ou os que foram resgatados, como Jonas da baleia.

Virgilio, Diderot, Dos Passos, Voltaire, Zola, Nabokov, Ovídio, Rousseau, Sartre, Hemingway, Balzac, Faulkner, Gorki, Kant, Melville, Hammett, Joyce, Descartes, Proust, Quialong, Beauvoir, Cleland, Goethe, Wilde, Genet, Solzhenitsyn, Kafka, Flaubert, Lorca, Zweig, Baudelaire, Lawrence, Mandelstam, Sade, Sagan, Ibsen, Hernández, Ginzburg, Bulgákov, Rushdie…

Existem várias classes de mortes, proibições e ressurreições literárias: a dos livros dos quais, depois de criados, o seu próprio autor se arrepende, não mais querendo lhes dar vida; a dos livros que querem viver e cujo autor busca isso a todo custo, mas alguém, um editor ou um amigo, se nega a lhes dar esse direito; e há os livros que uma pessoa mais poderosa, desde um governante até uma instituição religiosa, ou em nome da sociedade, procura eliminar.
“Saber ler (e escrever) é um ato de apropriação do mundo. Aquele que aprende a ler algumas quantas palavras ‘em pouco tempo poderá ler todas as palavras’, como diz Alberto Manguel. E, se compreende que com uma frase se apropriou de uma parte do mundo, não se dará por satisfeito com uma frase apenas”, explica Fuld num ensaio. Uma celebração da maneira em que a criação burlou o destino.

E um brinde àqueles que não deram ouvidos aos derradeiros desejos de muitos escritores de não deixar vestígios de seus textos. Um dos primeiros foi Virgílio. Não se sabe por que, em seu testamento ele ordenou que fosse queimada a Eneida. Por sorte, o imperador Augusto ignorou a sua última vontade. Vinte séculos após os factos que permitiram que o mundo lesse a Eneida, Franz Kafka queimou manuscritos que não lhe agradavam. Mais tarde, porém, o executor de seu testamento, Max Brod, não respeitou a sua vontade, e o mundo pode ler O castelo e O processo.

Um caso em que se juntam no autor o impulso de eliminar primeiro e de publicar depois é o de Vladimir Nabokov com Lolita, clássico do século XX que, quando ainda era um rascunho intitulado O feiticeiro, Nabokov quis queimar e a sua mulher Vera resgatou das chamas. Até que, em 6 de Dezembro de 1953, o autor o concluiu, iniciando uma via sacra em que foi rejeitado por quatro editoras que consideraram a obra “imoral” e muitas coisas mais, até que, dois anos mais tarde, conseguiu publicá-la em Paris pela editora Olympia Press, especializada em obras eróticas. Lolita saiu nos Estados Unidos apenas em 1958, após uma batalha judicial.

A esses fogos individuais somam-se as fogueiras que já acenderam ou quiseram acender governantes de todos os níveis e instituições religiosas ou outras, em nome do bem comum. Desde o mesmo Augusto, que em um dia feliz salvou a Eneida e em outro dia lamentável ordenou a primeira queima maciça de livros em Roma por razões religiosas, até ao nazismo, aos regimes chineses ou aos conflitos nos Balcãs, no Iraque e Irão. A própria Espanha sofreu decisões desse tipo com Francisco Franco, quando em 1939, recém-chegado ao poder que ocuparia por 36 anos, ele ordenou a retirada das obras de autores ditos “degenerados” das bibliotecas. “Franco era católico”, recorda Fuld. “Poderia ter tomado o Index romano como referência, mas a verdade é que não aparecem nesse catálogo nem Goethe nem Ibsen, que faziam parte da lista espanhola.”
São episódios sombrios e assombrosos que têm um capítulo na literatura, porque vários escritores já incluíram essas experiências em seus romances. Entre os casos mais recentes estão Balzac e a costureirinha chinesa, de Dai Sijie, O livreiro de Cabul, de Asne Seierstad, e Lendo Lolita em Teerão, de Azar Nafisi.

As ideias políticas, religiosas ou morais com interesses particulares teriam primazia sobre a arte? A história demonstra que o que existe para além do índice acusador é a vitória da beleza proibida. Do recordar a origem quando a palavra era vida, mas não vivia. Era como a luz do vaga-lume, intermitente, volátil, impossível de segurar, até que os sumérios começaram a dar–lhe corpo com signos traçados com estilete ou buril sobre tabuletas de argila, pedra, madeira ou qualquer objecto nobre que os recebesse. Assim deram início ao caminho para a arte, a eternidade, a viver diante de quem as decifra com a leitura, e a viver e viver diante de quem as revive na própria boca para lhes dar sons, como estes versos de As flores do mal, de Baudelaire, salvos da inquisição literária:

Vens do céu profundo ou emerges do abismo,
Ó beleza? Teu olhar, infernal e divino,
Verte confusamente o favor e o crime,
E por isso podemos comparar-te ao vinho.

Winston Manrique Sabogal, El País (2013)

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