sábado, outubro 17

Dos macacos e da quieta substância dos dias

Quero dormir mas este não é um lugar de dormir; esta é uma cidade em construção. Eu sou um homem envelhecendo e tenho trabalhado, sou um homem solitário e não tenho grandes ambições; estou cansado e quero dormir.
Rubem Braga





Há quem feche munhecas e discurse contra o barulho. Os mais chatos são os que o fazem não por simples aversão pessoal, mas pelo interesse coletivo, pelas provas de que o barulho subverte as condições normais da vida humana, produz males orgânicos e psíquicos, adoece o indivíduo, corrompe a sociedade. Escrevem e falam isso. Mas porventura não andariam enganados nos seus prognósticos esses que hoje condenam o barulho, como se enganaram aqueles que no século XIX afirmaram que o invento da locomotiva ameaçava trazer as piores consequências, pois o nosso organismo não suportaria as anunciadas velocidades de trinta e quarenta quilômetros por hora? Mentalidades não palpiteiras mas cartesianas lançaram mãos de aparelhos barulhométricos de precisão, que medem a barulhopatia por uma escala correspondente à de um termômetro para medir febre. E são muitos os que pensam que o barulho não é senão o sintoma febril da moléstia em moda cujo nome é violência (embora nos velhos dicionários se chamasse animalidade, brutalidade, boçalidade etc.) Barulho, agressão contra a sanidade acústica do meio, é doença provocada por doentes. Falou a sociologia psiquiátrica.

O MATA-BORRÃO
Em 1963 apareceu na Alemanha um livro com o título "Crimes contra a natureza", conjunto de ensaios onde figura um senhor Walther von La Roche dissertando muito germanicamente sobre "doenças causadas pelos ruídos". São doutas as razões do senhor Von La Roche, porém mais impressionantes pela imagem evocada são as palavras de um outro autor, Kurt Tvcholsky, por ele citadas como proêmio: "Os ruídos se aprofundam no cérebro que os absorve como o mata-borrão faz com a água (ou a tinta?). Por fim fica-se embebido de barulho, prostrado e incapacitado de pensar." Note bem todo aquele cujos nervos comem e bebem, respiram e transpiram barulho. Pense como é o caminho da loucura estar pensando que sua cabeça não pensa. Alguma ideia que saia do mata-borrão cerebral, quando espremido, será apenas sob a forma de goteira em lata de zinco.

BARULHOBRÁS
E o curioso é que, apesar de todos esses inconvenientes, danos e perigos, não se levante contra a calamidade nenhuma das forças militares ou civis, não se mobilize um esquadrão dos "tonton macoute" (ou sucedâneos) para cuidar do caso; não se institua o Ministério do Barulho, não se crie um órgão autárquico, o Barulhobrás, onde o barulho não se desaproveitasse como produção residual, mas fosse devidamente promovido e passasse a ocupar edifícios, departamentos, burocracias, papeladas e taxas, integrando os esforços racionalizadores e desenvolvimentistas. Estas alternativas seriam de eficiência uniforme, pois, segundo velhas opiniões (quero crer que subversivas), tudo quanto se recolhe ao aconchego administrativo por via de regra adormece ou se transforma em silêncio.

O PREÇO DO PROGRESSO
Para outros, a falta de medidas e providências de qualquer espécie tem apoio na convicção de que "essas coisas são assim mesmo". Surgem da própria vida, surgem da evolução inevitável, surgem das artes, da ciência, das invenções e melhoramentos de que se compõe o progresso. Ou haverá alguém por aí contra o progresso? O barulho seria o ônus justo e natural pelas fruições do homem nas delícias da mecanização e da velocidade.

TRANCADO O PORTÃO
Certo, no entanto, é que Leandro Barbieri (apelidado Gato), autor dos tangos para o "O último tango em Paris", baixando em Salvador para fugir aos zé-pereiras da fama, se surpreende de encontrar na Bahia uma cidade mais barulhenta que Nova York.

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