terça-feira, outubro 13

Poetas suicidas

Daniel Hischer
Creio que todos pressentimos que o suicídio é o manifesto de coerência do poeta. Perante a insanável insatisfação, a constante angústia que advém de nada servir de salvação, apenas se caminha por versos ilusórios cuja mestria jamais curará a morte ou garantirá amor, segurança, satisfação infinita. O poeta é um ser condenado. Um espírito à deriva que nunca se encontrará e que, por definição, jamais saberá terminar a procura. A morte, como consciência absoluta, matéria-prima do humano, sua ética e ternura, é presença inelutável, é destino. Ensina e obriga. O poeta que se mata cumpre-se. Único modo de salvar sua obra da humilhação de não ter sido séria. Nenhum poema suporta a existência do seu autor. O poema eleva-se ao ponto de emanação divina, naturalmente herético, e subjuga seu autor devorando-o, remetendo-o novamente para o lugar perecível, pequeno, mortal, que reafirma como, independentemente de qualquer esforço, acabará imprestável.

Escrevem-se os poemas para protelar. Essa busca é a única justificação para persistir. Justifica-se a incúria de frequentar o corpo e o mundo pelo ofício de se capturar nem que apenas um ínfimo detalhe daquele divino. Uma cintilação que já será ofuscante. Valem os versos, um a um, como argumento no tribunal dessa consciência. Usa o poeta mais um dia pela possibilidade de flagrar um verso, talvez o necessário para se redimir dessa coisa mesquinha, ingénua, de buscar sentido no quotidiano.

Jorge Melícias, perfeitamente conhecedor do sem-saída do saber poético, traduz 17 suicidas de língua espanhola menos óbvios entre nós. Suicidas sem grande notícia por aqui, e que poderão configurar uma fortuna de bravos que não puderam falsear suas obras. Sob o título O meu livro de cabeceira é um revólver (Edição Língua Morta), a escolha de Melícias vai no sentido de certa tremenda frontalidade, a assunção de um desprezo rotundo pela vida, pelos vivos, e uma perceção até da ofensa que é ter sido trazido à experiência grotesca de se ser alguém. No breve poema “Mãe”, de Tomás González (Espanha, 1940 – 1966), o tão jovem poeta declara sua perplexa revolta de modo lapidar: “Mãe, / também eu gostaria de ter sido mulher. / Não para perceber o teu ódio / ou o teu amor, a roda da tua felicidade / ou o peso da tua tristeza, / mas para sentir no meu interior / a terrível insensatez de ter trazido ao mundo / esta besta maldita, / e perdoar-te, / Mãe.”.

Não é apenas o facto de seus autores haverem escolhido a hora e o modo da morte que justifica antologiar estes poemas, eles são também uma certa despedida e uma acusação ou, se quisermos, um alerta contra a opressão da mediania e da absurda normalidade. São um manual poético, medição de genuína poeticidade, para a injustiça de haver criação e não sabermos do criador. Depois do desquite, entre o protesto e o desprezo, acima de tudo faz-se uma declaração de força. Claro que os suicidas não são os fracos. Os poetas não são os fracos. Declaram o aberrante que pode ser, por sinal, a mais pura verdade. Como escreve León Artigas (Espanha, 1931 – 1984), um dos mais vibrantes da antologia: “Quem não aspire a provocar uma catástrofe / não escreverá um único verso.”. Ele mesmo garante: “Implorarei apenas por um clarão / ofuscante de lucidez / para devolver a deus / um cadáver de luxo.”.

Sobra a ideia de não haver Deus, ou de estar morto, acabado e sem mais utilidade para salvações ou redenção. Talvez seja o ponto fulcral de tudo quanto se escreve: o abandono a que nos votou Deus. Fôssemos verdadeiramente assistidos pela divindade e nada se deixaria à deriva, tudo ganharia propósito e certamente a poesia seria desnecessária. Não passaria de um tonto entretenimento burguês: “Todos velámos Deus / naquela noite, / como a um morto gigante, / afogado em nós.” (Roque Vallejos Garay, Paraguai, 1943 – 2006).

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