— Esse país é bué, mãe, esse país é bué!
Dona Fefa bem conhecia os entusiasmos repentinos do filho pelo país, aprendidos nos livros da escola, embora contrariados constantemente na rua. Desta vez ele vinha daí mesmo, da rua, se espantava ainda mais ela por tanto patriotismo. Parou de mexer a colher de pau na panela do feijão com óleo de palma, limpou as mãos ao avental, disse com voz cansada, explica então como esse país é bué, que mentira mais te pregaram? Que não era mentira, não, ele tinha visto mesmo, mãe, petróleo a sair no chão, aí no quintal de Dona Isaura.
— Deixa de brincadeiras, não vês estou a trabalhar?
Miúdo Lito se encostou na parede mal rebocada da cozinha, onde se notavam, entre os bocados de barro seco, os troncos tortos de mandioqueira que seguravam a construção precária. Encolheu os ombros. Falou mais baixo, mas ainda entusiasmado:
—Vi o petróleo a sair assim do buraco que eles cavaram no chão, mãe. Afinal tinham tapado aquele bocado com esteiras, nem nos deixavam entrar lá no quintal. Era para esconder o buraco que andavam cavar. Mas hoje se distraíram e eu entrei com o Pedro. Vi o buraco. Dona Isaura estava a receber o balde em cima, o pai do Pedro estava lá dentro do buraco. Quando me viram berraram bué com o Pedro, que ninguém que podia entrar no quintal, se ele não sabia já... Depois me pediram muito não conta embora a ninguém.
— E já me estás a contar a mim, ralhou Dona Fefa, seu fofoqueiro.
— Mas a senhora é minha mãe, posso contar. Até porque também vamos cavar buraco no quintal. O Pedro me disse que depois vai vender em garrafas na rua, como os outros estão fazer. Esse petróleo que serve para os candeeiros que agora se anda a comprar no Roque Santeiro, afinal não vem da Sonangol, está vir mesmo do chão.
Dona Fefa estava estranhar. Lito não era mentiroso e se dizia que tinha visto é porque era verdade. De facto já ouvira falar, no mercado Roque Santeiro vendiam petróleo para candeeiro mais barato que o tabelado pelo governo. Mas então a amiga Isaura se metia em negócios desses e nem lhe dizia nada? Sim, o kandengue fez bem em contar. Julgava ela que conhecia os amigos... Quando cheirava a dinheiro no ar, logo entravam os esconde-esconde, para não se perder negócio. Então Dona Isaura, quase vizinha, que só escapou ser comadre porque a menina morreu à nascença, ia lhe convidar para ser madrinha do segundo filho, essa mesma Dona Isaura que conhecia desde que se instalaram no bairro na altura da Independência afinal agora esqueceu a amizade e guardou segredo de que havia petróleo no quintal dela, hum, hum, não se faz a uma amiga! De facto havia esse cheiro que aparecera de repente no bairro, parecia vir de todos os sítios ao mesmo tempo. Julgava que vinha da refinaria, às vezes eles faziam umas limpezas e deitavam os líquidos à toa, até para o mar. Afinal vinha dos quintais vizinhos e era a prova do que dizia Lito. Mas se no quintal de Dona Isaura há petróleo, não quer dizer que aqui também tem, era Dona Fefa a querer duvidar ainda de uma sorte demasiada...
— Mas tem sim, mãe, tem em todos estes quintais da zona. O pai do Pedro também soube pelos vizinhos e pelo cheiro que vinha do lado. Todos andam a cavar, só que estão a esconder, têm medo do governo.
A prudência da mãe desconfiou de tanta fartura, se têm medo do governo é porque estão a fazer coisa má, o que não era no entanto certo, argumentava o miúdo ainda entusiasmado, só têm medo porque a polícia vem e fecha os poços à toa, ou a polícia pede gasosa demais. Logo veio acima o nacionalismo de Miúdo Lito que repetiu este país é bué, aqui nem é preciso refinar. Isso estudei na escola, o petróleo tem de ser refinado ali na Petrangol, só depois pode ser utilizado nos candeeiros ou nos carros ou nos aviões. Mas aqui sai já directo do chão para o candeeiro, não sei se também dá prós carros. E bué mesmo, ninguém que aguenta esta terra. Miúdo Lito saiu disparado para a rua, com o mujimbo a encher o peito. Dona Fefa ficou a pensar, então a vizinha Isaura vai mandar o Pedro vender petróleo na rua? É capaz de dar bom dinheiro. E que jeito lhe dava, também a ela. Viúva, obrigada a trabalhar de lavadeira para criar o filho, sem mais família na cidade e sem saber onde anda a que deixou no mato, perdida pelas guerras... uns garrafões de petróleo todos os dias podiam ajudar muito. Mas como cavar um buraco no quintal? Ela sozinha? O miúdo podia ajudar, mas não chegava. E para essas coisas não se pode contratar um roboteiro, aproveitam logo nas exigências e acaba por ficar muito caro. Nem dá pedir a um vizinho, não é mesmo coisa que se peça a um vizinho, por muita intimidade que haja. A latrina fora cavada há anos pelo marido e levou muito tempo, pois não é fácil cavar um buraco fundo. E Lito tinha dito que o pai do Pedro desaparecia no buraco para encher o balde, imagine-se a altura do buraco. Abanou a cabeça. Era uma tentação aproveitar a riqueza que jazia em baixo do quintal, lá isso era. E não estava a roubar ninguém, o petróleo estava na terra, era de quem apanhasse. Ou não?
Esperou que o feijão apurasse e foi falar à vizinha Isaura, saber mesmo das coisas, o coração dela estava a doer e mais doía se não tirasse a coisa alimpo. Avizinha que lhe desculpasse o atrevimento, mas o miúdo contou, sabe como são os miúdos, não podem guardar segredo, e o assunto é tão importante que merece mesmo o risco de criar incómodo entre amigos. A vizinha Isaura compreendeu, ficou muito embaraçada no princípio, até estava mesmo para contar à Dona Fefa, só que o meu marido disse, espera ainda mais um pouco para ver se sai alguma coisa, muitas vezes as promessas não se cumprem, mas era verdade mesmo, tinha saído petróleo, a amiga podia vir no quintal ver e cheirar, cheira mesmo a petróleo, logo mais vamos vender na rua e Dona Fefa também devia cavar um buraco, se tornar proprietária de um poço de petróleo, ainda vamos ser uns nababos a andar de Mercedes e fumar charuto, vizinha. Uma gargalhada de Isaura fugiu para as ralas nuvens no céu azul. Dona Fefa tinha dúvidas, e se a polícia sabe? Esse de facto era o problema, os vizinhos que tinham poços clandestinos andavam a discutir muito isso, disse Dona Isaura, porque para uns garimpo de petróleo é proibido, os angolanos não podem ter poços, só os estrangeiros, o que é evidentemente uma injustiça os donos da terra serem afastados dessas riquezas, outros no entanto diziam não, agora já há garimpo livre, não só de diamante mas de tudo, não há mais partido único, nem garimpo único, é a democracia petrolífera. E o que está no subsolo não tem dono. Ainda preciso de pensar bem, rematou Dona Fefa, sozinha como vou cavar, mesmo com o Lito a ajudar? E voltou às suas enegrecidas panelas. Não teve tempo de tomar uma decisão. Miúdo Lito e os outros miúdos da zona se pássaram o mujimbo e não aguentaram o peso de o reterem, eram tão patriotas que tiveram de o transmitir a vizinhos mais longe, para estes também se congratularem com o país que tinham, de modo que a notícia chegou a uma rádio, depois a outra, a cidade ficou a saber, o país e o mundo. Depois a polícia também soube e veio no bairro proteger a empresa encarregada de tapar os buracos à força, dizendo que afinal andava a morrer gente com explosões e incêndios provocados por esse petróleo que não era petróleo bruto e não saía da terra só assim, afinal antes tinha passado pela refinaria e depois se infiltrado pelo chão vermelho por algum tubo gasto, formando um lençol subterrâneo. Então não ouviram falar de Só Afonso, aquele fazedor de tijolos já velho mas sempre rijo, que morreu numa explosão a acender o candeeiro? Era desse líquido aí, mistura de gasolina com outro produto, um perigo para todos, sobretudo as crianças. Os supostos donos dos poços ainda tentaram resistir aos homens da empresa e aos polícias, até porque agora somos proprietários e não podemos ser tratados como deslocados de guerra sem voz, têm de nos ouvir, a nós, os micrempresários, agentes económicos. Mas as autoridades disseram, esse produto tem dono, saiu da refinaria ou de tubos da refinaria ou de outro sítio qualquer, além disso é perigoso, já morreu gente, portanto, senhores micrempresários, se insistem, chamamos os ninjas, eles sabem dar cabo rapidamente de qualquer resistência à autoridade. Foi o ponto final no garimpo de petróleo, que de facto era gasolina adulterada pela muita ferrugem dos canos. Mais tarde veio a explicação nos órgãos de comunicação social, a refinaria era velha e há muito tempo não tinha manutenção a sério, daí as fugas de líquido.
Miúdo Lito ficou desiludido. Não por ter desaproveitado a riqueza que dormia no seu quintal. Mas porque afinal o país não era assim tão bué como imaginara.
Pepetela, Revista da Sonangol (1999)
— Mas tem sim, mãe, tem em todos estes quintais da zona. O pai do Pedro também soube pelos vizinhos e pelo cheiro que vinha do lado. Todos andam a cavar, só que estão a esconder, têm medo do governo.
A prudência da mãe desconfiou de tanta fartura, se têm medo do governo é porque estão a fazer coisa má, o que não era no entanto certo, argumentava o miúdo ainda entusiasmado, só têm medo porque a polícia vem e fecha os poços à toa, ou a polícia pede gasosa demais. Logo veio acima o nacionalismo de Miúdo Lito que repetiu este país é bué, aqui nem é preciso refinar. Isso estudei na escola, o petróleo tem de ser refinado ali na Petrangol, só depois pode ser utilizado nos candeeiros ou nos carros ou nos aviões. Mas aqui sai já directo do chão para o candeeiro, não sei se também dá prós carros. E bué mesmo, ninguém que aguenta esta terra. Miúdo Lito saiu disparado para a rua, com o mujimbo a encher o peito. Dona Fefa ficou a pensar, então a vizinha Isaura vai mandar o Pedro vender petróleo na rua? É capaz de dar bom dinheiro. E que jeito lhe dava, também a ela. Viúva, obrigada a trabalhar de lavadeira para criar o filho, sem mais família na cidade e sem saber onde anda a que deixou no mato, perdida pelas guerras... uns garrafões de petróleo todos os dias podiam ajudar muito. Mas como cavar um buraco no quintal? Ela sozinha? O miúdo podia ajudar, mas não chegava. E para essas coisas não se pode contratar um roboteiro, aproveitam logo nas exigências e acaba por ficar muito caro. Nem dá pedir a um vizinho, não é mesmo coisa que se peça a um vizinho, por muita intimidade que haja. A latrina fora cavada há anos pelo marido e levou muito tempo, pois não é fácil cavar um buraco fundo. E Lito tinha dito que o pai do Pedro desaparecia no buraco para encher o balde, imagine-se a altura do buraco. Abanou a cabeça. Era uma tentação aproveitar a riqueza que jazia em baixo do quintal, lá isso era. E não estava a roubar ninguém, o petróleo estava na terra, era de quem apanhasse. Ou não?
Esperou que o feijão apurasse e foi falar à vizinha Isaura, saber mesmo das coisas, o coração dela estava a doer e mais doía se não tirasse a coisa alimpo. Avizinha que lhe desculpasse o atrevimento, mas o miúdo contou, sabe como são os miúdos, não podem guardar segredo, e o assunto é tão importante que merece mesmo o risco de criar incómodo entre amigos. A vizinha Isaura compreendeu, ficou muito embaraçada no princípio, até estava mesmo para contar à Dona Fefa, só que o meu marido disse, espera ainda mais um pouco para ver se sai alguma coisa, muitas vezes as promessas não se cumprem, mas era verdade mesmo, tinha saído petróleo, a amiga podia vir no quintal ver e cheirar, cheira mesmo a petróleo, logo mais vamos vender na rua e Dona Fefa também devia cavar um buraco, se tornar proprietária de um poço de petróleo, ainda vamos ser uns nababos a andar de Mercedes e fumar charuto, vizinha. Uma gargalhada de Isaura fugiu para as ralas nuvens no céu azul. Dona Fefa tinha dúvidas, e se a polícia sabe? Esse de facto era o problema, os vizinhos que tinham poços clandestinos andavam a discutir muito isso, disse Dona Isaura, porque para uns garimpo de petróleo é proibido, os angolanos não podem ter poços, só os estrangeiros, o que é evidentemente uma injustiça os donos da terra serem afastados dessas riquezas, outros no entanto diziam não, agora já há garimpo livre, não só de diamante mas de tudo, não há mais partido único, nem garimpo único, é a democracia petrolífera. E o que está no subsolo não tem dono. Ainda preciso de pensar bem, rematou Dona Fefa, sozinha como vou cavar, mesmo com o Lito a ajudar? E voltou às suas enegrecidas panelas. Não teve tempo de tomar uma decisão. Miúdo Lito e os outros miúdos da zona se pássaram o mujimbo e não aguentaram o peso de o reterem, eram tão patriotas que tiveram de o transmitir a vizinhos mais longe, para estes também se congratularem com o país que tinham, de modo que a notícia chegou a uma rádio, depois a outra, a cidade ficou a saber, o país e o mundo. Depois a polícia também soube e veio no bairro proteger a empresa encarregada de tapar os buracos à força, dizendo que afinal andava a morrer gente com explosões e incêndios provocados por esse petróleo que não era petróleo bruto e não saía da terra só assim, afinal antes tinha passado pela refinaria e depois se infiltrado pelo chão vermelho por algum tubo gasto, formando um lençol subterrâneo. Então não ouviram falar de Só Afonso, aquele fazedor de tijolos já velho mas sempre rijo, que morreu numa explosão a acender o candeeiro? Era desse líquido aí, mistura de gasolina com outro produto, um perigo para todos, sobretudo as crianças. Os supostos donos dos poços ainda tentaram resistir aos homens da empresa e aos polícias, até porque agora somos proprietários e não podemos ser tratados como deslocados de guerra sem voz, têm de nos ouvir, a nós, os micrempresários, agentes económicos. Mas as autoridades disseram, esse produto tem dono, saiu da refinaria ou de tubos da refinaria ou de outro sítio qualquer, além disso é perigoso, já morreu gente, portanto, senhores micrempresários, se insistem, chamamos os ninjas, eles sabem dar cabo rapidamente de qualquer resistência à autoridade. Foi o ponto final no garimpo de petróleo, que de facto era gasolina adulterada pela muita ferrugem dos canos. Mais tarde veio a explicação nos órgãos de comunicação social, a refinaria era velha e há muito tempo não tinha manutenção a sério, daí as fugas de líquido.
Miúdo Lito ficou desiludido. Não por ter desaproveitado a riqueza que dormia no seu quintal. Mas porque afinal o país não era assim tão bué como imaginara.
Pepetela, Revista da Sonangol (1999)
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