As férias grandes prolongavam-se, então, até meados de outubro. As primeiras semanas sem aulas transbordavam de coisas boas, ir à praia com amigos, dar saltos do pontão do Tamariz, apanhar o comboio para espreitar Lisboa à revelia do revisor e dos pais, pedir gelados ao sr. Santini que regressava de Itália a cada primavera, subir e descer a Rua Direita deliciada com as excêntricas farpelas dos estrangeiros, apanhar boleias na Marginal, moer tardes no Tchipepa, cravar cigarros a desconhecidos, ver televisão até embater na mira técnica, chegava tão estafadamente feliz à cama que se tornava indesmentível as férias serem a criação mais conseguida de deus. Só que tudo cansa, até o prazer. Lá para o meio de agosto, o verão começava a gastar-se e eu aborrecia-me, o raio da areia pegava-se aos chinelos e às roupas, a água do mar parecia mais fria, Está cá um briol, gritava a Luísa, tão jovem no fato de banho comprado na Migacho. Tenho saudades da Luísa, que morreu há dois anos numa das enfermarias do IPO. Eu continuava a atirar-me, já sem o mesmo entusiasmo, do pontão do Tamariz, sobrava apenas meia dúzia de gatos-pingados na praia e a Teresa deixava-se ficar ao sol na toalha, estranhando a minha inábil insistência, Nunca vais conseguir saltar como os rapazes, o peso do peito escangalha-nos os mergulhos. Nessa altura, eu era quase só o meu corpo, e o meu corpo era tão eterno como o vaivém das estações, nessa altura, a morte, a minha e a dos que eu amava, não passava de uma peça mal desenhada que eu nem tentava encaixar no parco entendimento da vida. Tenho saudades da Teresa, que morreu muitos anos antes da Luísa, com as veias cheias de heroína.
Em setembro ardem os montes e secam as fontes, dizia – dirá ainda – a minha mãe, o seu discurso minado por provérbios, mas nos meus setembros nunca acontecia nada. Os estrangeiros debandavam como andorinhas tristes, os vizinhos regressavam das idas à terra para o ramerrame das suas vidas, o outono ia-se perfilando, desapiedado, para castigar a minha permanente impermanência. Mudar, mudar sempre, para regressar a fingir-se igual, eis o engano a que o vaivém das estações nos conduziu. Como se, anos mais tarde, não fossem evidentes as marcas do tempo, esse lavrador inútil da minha pele, esse descuidador do meu corpo. Pois que viesse o outono, que viesse logo, que não se fizesse esperar. Mas o outono não vinha. Ficava ali suspenso, emperrado no final do mês, a estragar-me demoradamente os dias com a sua iminência chuvosa, Chuvas verdadeiras, em setembro as primeiras.
Os horários do novo ano letivo tardavam a ser afixados, ninguém sabia da lista dos livros, A minha mãe conhece uma contínua e diz que as aulas não começam antes do fim de outubro, esclarecia o Delarmando para minha frustração. Eu não gostava da escola, mas precisava de escapar ao suplício da espera que alguma coisa acontecesse, sem que nada acontecesse, a minha cama cansada de mim, o teto do meu quarto esburacado pelos meus olhos, uma discussão de vizinhos sobressaltava o prédio por uns minutos, mas logo a normalidade se instalava, opressora, a abominável normalidade, a minha mãe praguejava por ter deixado queimar as batatas fritas, o meu pai indispunha-se com o desacerto das receitas e das despesas do nosso orçamento familiar, Um homem trabalha trabalha e depois morre, aconteciam coisas assim, coisas de nada, a vida cumpria-se lenta e previsível como a gota que caía do esquentador avariado no pequeno recipiente de plástico verde pousado na bancada de mármore, plim, plim. Imaginava que um óvni aterrava nos rochedos do Guincho e quadriculava a pele de toda a gente, eu tinha visto imagens de como haviam ficado uns abduzidos americanos, ou que o sr. Ferreira era espião do KGB e a Cacilda sua cúmplice em vez de sua mulher, mas nada acontecia, fora do meu corpo nada acontecia e por isso agigantava-se o desespero de ver as minhas coxas arredondarem, o peito continuava a crescer apesar do meu esforço de dormir todas as noites de barriga para baixo, a cintura afinava-se, engolida pelo final das costelas, os dias cada vez mais iguais mostravam-me cada vez mais diferente, Estás a ficar uma mulherzinha, afiançava a Cacilda agradada, a Cacilda que morreu de muito velha no hospital de Cascais depois da Teresa, do sr. Ferreira e da Luísa, Estás a ficar uma mulherzinha, e eu sem saber como parar essa desgraça, a vagabundear pelos dias imaginando outras vidas, Tem uma imaginação que pode ser perigosa, escreveu a professora de Religião e Moral no meu boletim, uns anos antes.
Em adulta fiz as pazes com setembro. Houve um setembro em que me libertei imprudente e expectante do emprego em que definhava, outro em que o Luís e eu combinámos casar daí a três meses, outro em que trouxemos o Clude para nossa casa, outro em que percorri a Sardenha de ponta a ponta, outro em que o Tomás nasceu, outro em que me curei de um desamor, outro em que antes de adormecer ouvi barulhos na cozinha e fui destemida até lá, Não te largo mais, disse-me a Eliete que tinha chegado não sei como. Se um ano fosse um dia, setembro seria o seu fim de tarde. Dou-me bem com fins de tarde. Caminho até ao mar, vejo o sol desaparecer na linha do horizonte que entorto nas fotografias do Instagram, é já amanhã no outro lado do mundo. Regresso a casa e rego a horta.
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