Era de manhã. O sol içava-se entre a neblina de agosto. As flores da buganvília tinham caído para o chão do quintal. Numa das casas da frente, o cão ladrava e arrastava a corrente de ferro pelo pátio. Dias antes, eu havia perguntado à vizinha do lado se sabia por que motivo o cão estava tão desassossegado, Os donos foram de férias, respondeu-me.
O telemóvel continuava em alta voz, para que a minha irmã e eu pudéssemos ouvir ao mesmo tempo as informações que a enfermeira nos transmitia. No dia anterior, a nossa mãe dera entrada nas urgências, depois de ter andado de hospital em hospital a fazer as análises, TAC e ressonâncias com que os médicos tentavam identificar o mal que a levava de nós a cada dia, Deve haver um engano, ontem fizeram-lhe o teste no hospital de São Francisco Xavier, temos aqui o papel que confirma o resultado negativo, consegui dizer. A enfermeira manteve a paciência ao prosseguir, Um falso positivo é muito raro, a sua mãe foi transferida para o covidário, não tem quaisquer sintomas, mas vai ter de ficar internada umas semanas, enquanto testar positivo fica adiada a maioria dos exames que tem de fazer… Era uma enfermeira simpática, esforçada, compassiva, no entanto, deixei de a ouvir, enredada no enquanto ela testar positivo. É assim que todos passámos a dizer. Pondero se incorremos num erro de sintaxe, como se isso fosse de repente preocupante, Há uma figura de estilo que, numa oração, omite palavras subentendidas, lembrei-me incompreensivelmente apaziguada, Zeugma, é isso, zeugma, soa a nome de deusa. As palavras da enfermeira iam desaparecendo como se o meu cérebro fosse uma peneira de malha larga, O ecocardiograma transesofágico e o mielograma vão ter de esperar, como sabem no atual contexto de pandemia foram suprimidas as visitas, para compensar faremos uma videochamada por dia, os médicos poderão falar telefonicamente com os familiares às segundas, quartas e sextas, estiveram em contacto com a doente nos últimos dias?
Tínhamos almoçado todos juntos há menos de vinte e quatro horas. Apesar da sua preocupante fraqueza física, nada fazia a minha mãe mais feliz do que ver-nos reunidos à volta da mesa, a família que soube construir é o seu maior orgulho, a sua obra mais querida. Possivelmente a minha mãe já estava infetada nesse almoço, possivelmente infetou alguns de nós, possivelmente foi infetada por algum de nós, Têm de telefonar para a linha SNS24 o mais breve possível, avisou a enfermeira, ser-vos-ão dadas instruções de como devem proceder.
Quase meio ano antes, eu mudara-me para a casa da minha mãe depois de ela me ter confessado envergonhada que não se sentia capaz de continuar a viver sozinha, Tenho medo do vírus, ouço as informações que passam na televisão, há muita coisa que não entendo, tu sabes o que temos de fazer para não apanharmos o vírus? Sei, mãe, respondi, não te preocupes. Como se veio a provar, menti-lhe. Mas que importância tem a verdade nas coisas do amor?
Quando desligámos o telefone, a Lina e eu ficámos em silêncio. Havia muito para dizer, por exemplo, Temos de nos afastar, pode dar-se o caso de alguns de nós estarem infetados e outros não. As estatísticas que eu acompanhava nos últimos meses toldavam-me as palavras. Uma mulher que tivesse mais de 80 anos e problemas cardíacos pertencia ao grupo dos mais vulneráveis, cuja taxa de letalidade rondava os quinze por cento. A minha mãe era uma dessas mulheres. Ainda por cima dizia-se sem forças há meses. Queixava-se de um enorme e irreparável cansaço, emagrecia como que sugada vorazmente pelos ossos, definhava, os médicos a que a levávamos não percebiam o que se passava com ela. Por isso, exames e mais exames. Eu queria lembrar a competência dos hospitais públicos, a força e o apego à vida da nossa mãe, o caso da idosa de quase 100 anos que sobrevivera à Covid depois de ter estado ligada a um ventilador, mas ouvi-me dizer, A mãe vai morrer.
E só então consegui respirar devidamente. Como se o medo calado me inundasse os pulmões.
Pouco depois, a Lina e o Paulo foram-se embora. De acordo com as instruções da SNS24 ficaríamos longe uns dos outros, a Lina e o Paulo, o Coca e a Catarina e os meninos, o Luís. Aqui em casa, o Pedro e eu dormiríamos em quartos separados e não tomaríamos as refeições juntos. Faríamos compras online. Não sairíamos de casa, a não ser para passeios higiénicos. Que raio de coisa é um passeio higiénico de que agora tanto se fala? Mediríamos a febre duas vezes ao dia. Estaríamos especialmente atentos aos sintomas.
Ninguém nos disse que estaríamos especialmente sós.
O resto era esperar. Frouxamente unidos por ecrãs de telemóveis e tablets, em gestos e palavras de desfazer receios. Esperar. Esperar que a minha mãe não começasse a ter febre. Que a minha mãe não viesse a ter falta de ar. Que a minha mãe não tivesse de ser ventilada. Que a minha mãe não morresse. Nem a minha mãe nem nenhum de nós. O resto era esperar. Que a hidroxicloroquina, o gengibre e as demais mezinhas fizessem efeito e não deixassem o vírus replicar-se. Que as instruções das autoridades de saúde fossem as certas e que os médicos e enfermeiros e auxiliares fizessem bem o seu trabalho. Esperar que o tempo passasse. Encolhida como em criança, ao jogar às escondidas, por detrás da porta da despensa escura. Se alguém fosse apanhado, se eu fosse apanhada, esperar que o último corresse depressa até o coito, 1, 2, 3, salva todos. O resto era começar a contar. Catorze dias. Vinte mil, cento e sessenta minutos.
Esperar.
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