Há em São Paulo bairros que nascem anônimos, crescem obscuros e vão vivendo sua vida sem merecer a atenção da imprensa, a não ser em esporádicas ocorrências policiais, e sem despertar a inspiração de nenhum cronista. Não era o caso do lugar no qual João S. Glória vivia desde o seu nascimento. Famoso, tradicional e representativo eram alguns dos termos empregados, quando se citava o bairro, e um cronista havia escrito que ali se podia ver a face mais expressiva de São Paulo. João S. Glória concordava com isso e, embora modesto, acreditava ter contribuído para que o bairro fosse tão bem avaliado. Desde os 50 anos, quando tinha se aposentado, vinha trabalhando como secretário na associação de moradores. Estava com 70 e, nessas duas décadas, havia registrado, com seu estilo único, os debates nas reuniões, as propostas levadas à câmara e à prefeitura e as conquistas que ele e os outros associados tinham obtido com seu trabalho.
Os colegas de associação louvavam a habilidade com que ele redigia as atas e principalmente os requerimentos encaminhados às autoridades. Nos parágrafos finais dessas petições ele punha todo o seu engenho. Começava-os com palavras que impunham respeito e denotavam a qualidade do escriba. Não usava o portanto, que considerava pobre, curto e desgastado. Recorria a expressões que ocupavam maior espaço e que, assim lhe parecia, soavam por mais tempo nos ouvidos de quem as lia, embora a leitura não fosse feita em voz alta: em consequência disso, em decorrência do exposto, em vista dos argumentos supramencionados.
Nos seus 20 anos de secretariado, João S. Glória havia servido a dois presidentes que tinham morrido e se transformado em nomes de rua no bairro, o que, na opinião dele, era uma honra não totalmente merecida. O primeiro presidente tinha vindo de outro bairro e às vezes, sem perceber, mostrava estar arrependido da mudança. O outro, que, assim como João S. Glória, morava ali desde o nascimento, era meio descuidado com certos pormenores que, no fundo, tinham muita importância. Um de seus deslizes era se referir à Praça Castro Alves como Praça Castro Álvares. De qualquer forma, eram agora nomes de rua, o que um secretário jamais seria. Isso magoava João S. Glória, que sonhava com uma placa em que seu nome estivesse, talvez acompanhado de alguma daquelas palavras que ele achava tão aristocráticas: benfeitor, benemérito.
O novo presidente, o terceiro ao qual ele servia, havia tomado posse fazia seis meses quando João S. Glória teve a mais forte emoção de sua vida.
“João”, disse o presidente, “acabo de saber que foi aprovada a construção do centro cultural do bairro. Como você batalhou tanto por ele, quero lhe dizer que, se depender de mim, ele terá seu nome. Acho que não vai haver problema. Rua parece que só pode ter nome de morto, mas centro cultural, que eu saiba…”
Os dois estavam sozinhos na sede da associação, mas para João S. Glória era como se ali houvesse mil pessoas. Ele ouvia aplausos e já via seu nome, grande, na fachada do prédio que dali a três anos estaria pronto: Centro Cultural João S. Glória. Na saída, o presidente deu carona a João. No caminho, perto da Praça Castro Alves, um caminhão sem freios, descendo uma ladeira, estraçalhou o pequeno carro.
O bairro chorou a morte do presidente e do secretário. O presidente virou nome de rua. O centro cultural, quando inaugurado, tinha o nome de um antigo benemérito, que não era João S. Glória.
Raul Drewnick
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