segunda-feira, outubro 26

Nada era pior

Não existia nada pior no mundo do que tomar remédio de óleo de rícino. Como outros meninos lá da rua, todos os anos tinha de beber um copo com aquela droga de remédio, que dava enjoo quando descia na garganta. O cheiro do remédio no copo cheio provocava um frio no corpo todo, de tal forma era o medo quando pensava que tinha de beber outra vez aquele purgante pior do que o pior dos castigos. Não havia menino lá da rua que tivesse tomado aquela coisa pastosa e dissesse ser aquilo algo que se podia enfrentar sem fazer cara feia. A melhor coisa que se fazia quando fosse tomar aquele troço era fechar os olhos e pedir que ele descesse rápido pela garganta.


Disse que daquela vez não tomaria o remédio. Arranjasse minha mãe outro tipo de remédio para combater as lombrigas na barriga. Ela advertiu que a vida era feita também de momentos nem sempre bons. O remédio ia matar todas as lombrigas da barriga. Se tomasse o purgante de óleo de rícino, ao invés daquela palidez no rosto, eu ia ficar corado. Meu apetite voltaria. Bem alimentado iria crescer como um menino sadio. Afastaria assim minha indiferença para fazer os deveres da escola. Para não falar no fôlego que ia ter no jogo de bola ou em qualquer brincadeira que exigisse esforço. Ia ser o mais veloz nadador no rio Cachoeira, entre todos os meninos lá da rua.

Não adiantava minha mãe argumentar para encorajar-me a beber o purgante terrível, que deixava qualquer menino assustado só em ouvir falar nele. Preferia ficar pálido, magro com pele e osso. Sem o fôlego e vontade de correr no jogo de bola quando a partida fosse disputada, o placar desfavorável para a minha equipe, já em boa parte do segundo tempo. Era melhor passar como jogador desinteressado do resultado sendo desfavorável ao meu time do que beber aquela droga com gosto de óleo, cheiro horrível, que dava tontura no corpo, fazendo as vistas ficarem turvas quando chegava a hora de bebê-la. Gritei, esperneei, esmurrei a porta. Derrubei a cadeira, chutei o travesseiro, quis rasgar o lençol da cama. Chorei forte para que o mundo todo ouvisse., cerrei os dentes para que não entrasse uma gota daquela droga em minha boca.

Meu pai foi chamado para interferir e convencer-me de que o remédio era para fazer bem à minha saúde. Ele não era homem de muita conversa nessas horas. Com o cinturão grosso preso na mão, advertia que me dava cinco minutos para beber o purgante de óleo de rícino para matar os vermes na barriga, se não quisesse provar de outro remédio ali mesmo. Uma boa surra com o cinturão grosso. E ainda ficar sem ir à matinê do Cine Itabuna no domingo para assistir ao filme “O Pirata dos Sete Mares”, estrelado por Paul Henreid, um dos meus ídolos. O jeito foi chamar por Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, minha madrinha, para que me encorajasse para beber aquela porqueira. Livrasse-me daquele castigo e fizesse com que eu não sentisse nada quando o remédio entrasse na boca, descesse lento na garganta como um bolo de pasta repelente e fosse se alojar lá dentro na barriga.

Costumava beber o remédio de madrugada, em jejum, O efeito já era visto durante o dia. Expelidas da barriga, as lombrigas iam descendo mortas pelo vaso sanitário. Não sabia como era que aquelas iscas grandes nasciam e se criavam dentro de minha barriga. Minha mãe não deixava de ter suas razões quando insistia para que eu bebesse o purgante com óleo de rícino, se não quisesse que acontecesse comigo o que se passou com o filho do dono da venda.

Carlito Caburé nunca quis tomar a droga daquele remédio para combater os vermes que estavam engordando dentro da barriga dele. Ele já estava com a cor tão pálida que parecia não ter sangue no rosto. Os braços e as pernas pareciam que não tinham carne, de tão murcha. Não morreu por um triz. O pai teve de amarrar os braços dele na cabeceira da cama enquanto a mãe enfiava de vez na boca dele o gargalo da garrafa de guaraná com o óleo de rícino. Quando ele acabou de beber o remédio, esbravejou, xingava a Deus e o mundo.

Meu resguardo demorava três dias após tomar o remédio de óleo de rícino. A comida agora era leve. Nada de comida oleosa, com fritura, ensopado de carne ou galinha. Nem peixe com dendê. Era somente chá com torradas na refeição matinal. Canja de galinha no almoço. De novo chá com torradas na refeição do jantar. Sobremesa com doce nem implorasse, minha mãe tinha todo o cuidado em minha alimentação especial, para que assim o remédio tivesse um efeito rápido. Minha refeição devia ser leve para que o purgante fizesse uma lavagem rigorosa em minhas tripas. Qualquer comida gordurosa poderia alimentar e fortalecer algumas lombrigas, que tivessem resistido ao purgante. Se isso acontecesse, o remédio de óleo de rícino teria um efeito fraco e, fatalmente, devia ser repetido.

Da última vez que bebi aquela nojeira, com a cara feia de sempre, minha mãe presenteou-me com um ioiô. Enquanto durava o resguardo, ficava agora o tempo todo em pé, na beira da cama, jogando o ioiô para lá e para cá. Exercitava-me fazendo malabarismos com o ioiô no quarto. Treinava de manhã, à tarde e antes de dormir. Preparava-me assim para enfrentar Ney Gaguinho, o filho do vizinho, que morava no sobrado ao lado, Naquela brincadeira de jogar o ioiô, ele fazia malabarismos inacreditáveis. Quando lançava o ioiô, puxando-o rápido pelo cordão, deixava de boca aberta quem estivesse assistindo.

Depois que eu recebi alta, comecei aos poucos a me alimentar com as comidas que mais gostava: ensopado com carne de carneiro, galinha ao molho pardo, carne-de-sol fritada, doce de batata-doce na sobremesa. Aí um dia chamei o Ney Gaguinho para jogar ioiô comigo, para ver quem era melhor para fazer malabarismos com o brinquedo. Dessa vez foi ele quem ficou espantado com os malabarismos que eu fazia. Deixava que o ioiô fosse para qualquer direção, puxando-o em seguida pelo cordão com habilidade e ligeireza. A facilidade que demonstrava em fazer os mais incríveis malabarismos com o ioiô arrancava agora aplausos demorados dos amigos.
Cyro de Mattos

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