domingo, outubro 4

O sol quando se põe não é para todos

Sou uma desorientada espacial. Invejo aqueles que sabem sempre onde estão, que indicam com segurança os pontos cardeais e se comportam como se o mundo, enigmático e mudo para mim, lhes fornecesse informações que os conduzem com segurança a todo o lado. Imagino os cérebros deles diferentes do meu, com mapas interativos no hipocampo ou no córtex frontal a revelar-lhes, segundo a segundo, os melhores atalhos para os destinos que traçam e a permitir-lhes escolher sem hesitação casas com orientação nascente-poente. Antigamente era obrigada a abordá-los na rua, Sabe dizer-me, por favor, como faço para ir para…, adivinhando-lhes o desdém ou a complacência no sorriso que me dispensavam, atarantava-me ao decorar o emaranhado de indicações cheio de esquerdas e direitas em que invariavelmente me perdia, Depois do café com o toldo amarelo era a primeira à esquerda e segunda à direita ou primeira à direita e segunda à esquerda? Já não preciso de nada disso, agora tenho dentro do meu telemóvel milhares de mapas com que umas quantas aplicações me guiam pelos lugares mais extraviados do mundo. No entanto, continuo sem saber onde vai cair a sombra do que me rodeia.

Que belo sítio, pensei, quando estendi a toalha de praia, incapaz de antever que, em breve, a enorme parede de rocha derruiria sobre mim a sombra das volumosas ampliações que o hotel Albatroz, encavalitado lá em cima, sofrera nas últimas décadas. Até isso acontecer, estranhei que, com tanto espaço disponível, a maioria dos banhistas se argamassasse mais à frente, incumprindo os alertas que existiam por toda a praia sobre a necessidade de distanciamento social. Os vizinhos mais próximos do que pensei ser o meu privilegiado lugar eram os pais de um bebé com poucos meses, depois, dois velhos convalescentes, uma mulher de chapéu e lenço como as atrizes dos anos cinquenta acompanhada por um macambúzio de auriculares e óculos escuros, mais além era difícil distinguir os magros dos gordos, os altos dos baixos, os negros dos caucasianos, os novos dos velhos, os calados dos barulhentos, a distância e o sol esborratavam-mos, Aqui estão elas, as bolinhas de Berlim, tão quentinhas e amarelas, tenho muitas só para si, apregoou o homem carregado com duas enormes caixas plásticas, uma em cada ombro, tinha um corpo pequeno e compacto. Para lá da massa indistinta de corpos, estendia-se a zona concessionada, uma dúzia de chapéus de sol com a inscrição The Charm of the Atlantic Coast. Usufruía-se do prometido charme, duas espreguiçadeiras e uma mesinha sob um chapéu de sol, por 25 euros ao dia. Quando fui comprar um refresco ao bar, avistei um casalinho a beber vinho branco em copos altos, bastante afastado de um outro, estrangeiro e mais velho, que dividia a atenção entre a leitura de livros de bolso e a vigilância de três filhos pequenos e louros em brincadeiras à beira-mar. De resto, eram apenas chapéus de sol num fim de verão, mal aconchegando mesinhas vazias e espreguiçadeiras sem ninguém.

Gildásio Jardim Barbosa


Naquele quarto decrescente de praia, o céu destapava-nos a todos, azul e amplo, o vento amainava, o mar entretinha os mais novos com um carrossel de ondas, ouviam-se os gritos e as gargalhadas dos seus corpos jovens quando a água os empurrava baixo e cima, era uma tarde perfeita de praia apesar do rugido da gigantesca máquina do ar condicionado do hotel pendurada na parede de rocha. Cinco estrelas, vista frontal de mar, 50 quartos para não fumadores, um restaurante e bar/lounge, uma piscina exterior, business center aberto 24 horas, transporte de/para o aeroporto, serviço de babysitter, serviço de limpeza a seco/lavandaria, salas de conferências, soberbo pequeno-almoço, internet sem fios e estacionamento, o meu telemóvel está convencido de que sabe tudo, quer que eu confirme se estou onde ele julga que eu estou e que dê a minha opinião, 540 hóspedes deixaram comentários sobre o hotel, atribuindo-lhe uma pontuação média de 9,7 em 10. Nenhum deles referiu a sombra do hotel que avançava. Os banhistas moviam-se para o sol cada vez mais encurralados. Entre a maré a subir e o Charme da Costa Atlântica, uma massa humana aprisionada despedia-se do verão.

Grande parte da areia já estava à sombra, quando as gaivotas invadiram a praia. Começaram a andar entre nós em aflições guinchadas de fome, algumas delas iguais às das ilustrações, asas escuras, cabeça e peito brancos, patas e bico amarelo-clarinhos, a maioria desconforme com os livros escolares, gaivotas imperfeitamente pintalgadas, com falhas na plumagem, pernas mutiladas por anzóis, bicos cortados. Apanhavam tampas de garrafas de água, bocados de esferovite, de cartão, caroços secos de maçãs, beatas, lixo deixado na areia. Estacavam à nossa frente e viravam a cabeça para nos fixar demoradamente com o despudor de que só os outros animais são capazes. Uma delas parou tão perto de mim que lhe tocava se estendesse o braço. Não reagiu aos meus assobios nem às minhas outras tentativas ridículas de comunicação. Lembrei-me de como em certas praias, na maré baixa, dezenas, centenas de gaivotas pousam numa só perna, perfiladas numa enigmática formação veneradora do pôr do sol, Porque farão aquilo? Não dei conta de o bando de crianças se ter formado. Eram mais de uma dúzia, bronzeadas pelo sol gentil, os corpos espigados a crescerem com vontade, Vamos matar esta, gritavam ao escolherem uma presa, Esta, vamos matar esta, a gaivota perseguida conseguia levantar voo para gáudio da pequenada, Também quero matar uma, dizia um dos que iam na cauda do grupo, Há gaivotas para todos, garantiam os mais velhos, Aquela ali é coxa, é fácil de apanhar. Os meninos louros da zona concessionada não faziam parte do bando, não entendiam por certo as palavras dos outros, mas reconheciam-lhe o propósito e acompanhavam-no, entretidos, como os adultos. Os gritos das gaivotas abafaram os das crianças. Até que tudo se calou. Game over.

Saí apressada da praia.

Não foram registados quaisquer contactos de proximidade com elevado risco de contágio, garantiu-me a Stayaway Covid no meu telemóvel, quando o atirei para dentro da sacola. E se também eu estiver a transformar-me numa personagem de um jogo de computador? Será que vou começar a matar por aí?

Sinto-me perdida nesta irrealidade, Alguém sabe dizer-me, por favor, como faço para ir para casa?

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