domingo, outubro 11

Vestido de frade

Depois de cortar com a tesoura o pano marrom, minha mãe ficou na máquina de costura, fazendo aquela roupa, que parecia mais um vestido folgado de mulher. Quando ficou pronta, ela me chamou para que fosse experimentá-la. Ela chamou de hábito aquela roupa que ela passou a manhã toda costurando na velha máquina de costura, que foi de minha avó. Ora, toda menina vestia vestido, menino usava calça. Como era então que minha mãe foi arranjar aquela roupa de mulher para que eu vestisse no domingo quando fosse com ela para a missa? Quando andava, a barra do hábito roçava nos meus pés. Meu corpo ficava abafado quando estava vestido nele no domingo azul de verão. O suor escorria do peito, as costas coçavam.


A mãe cortou meu cabelo baixo, fez a coroinha na cabeça. Até alpercata de duas tiras ela mandou que calçasse. Agora tinha de ir à missa aos domingos vestido como um frade. Durante um ano. Tinha de cumprir a promessa que ela fez porque não tinha morrido com o fundo de panela que fiquei arremessando para o alto como se fosse um disco.

Encontrei o fundo de panela na Praça Camacã, perto da beira do rio. Com dificuldade desenterrei-o da terra molhada com a chuva que caiu durante a noite. Várias vezes eu o lancei para o alto, tentando fazer com que chegasse cada vez mais longe, como uma vez vi um menino fazer no areal deixado pela cheia do rio Cachoeira. Era um menino maior do que eu. Mas tinha confiança em mim: aquela brincadeira de lançar fundo de panela para o alto eu também sabia fazer. Era só aparecer uma primeira oportunidade.

Esperava que daquela vez o fundo da panela fosse subir mais alto. Quando o lancei como um disco bem para o alto, com todas as forças que pude reunir, mal tive tempo de vê-lo atravessar célere o espaço de cima, brilhando como um espelho na manhã com seus raios de sol que flechavam a terra. Voltou mais célere ainda e desceu como se quisesse me atingir.

Tudo foi bem rápido. Senti o corpo balançar quando ele me atingiu na testa. O sangue desceu pelo rosto, cambaleei e caí. Botei a boca no mundo, chamando por minha mãe. Não conseguia me levantar. Rolava na terra úmida. Gritava que não queria morrer. Soube depois que seu Isaías, que tinha uma oficina para consertar bicicleta no beco perto da padaria, foi quem me levou nos seus braços cabeludos para minha casa. Quando acordei, eu escutei a empregada dizer que cheguei desmaiado, a cara toda melada de sangue. Minha mãe prometeu que, se eu escapasse daquela, ia fazer uma promessa para São Francisco.

Felizmente, não era daquela vez que ia morrer. Ainda meio tonto, abri os olhos com dificuldade e vi o médico limpando com o algodão embebido no iodo o sangue que escorria do talho na testa. Deu doze pontos para fechar o corte. Cobriu-o depois com gaze e esparadrapo. Aplicou-me uma injeção oleosa para combater o tétano. Senti aquela dor terrível quando o líquido da injeção penetrou minhas carnes, mas daquela vez não chorei, não urinei nem borrei as calças.

O médico disse que o fundo da panela não varou minha testa e atingiu o cérebro porque tive muita sorte. Era morte certa, se o cérebro fosse atingido pelo fundo da panela. São Francisco não deixou que isso acontecesse, minha mãe observou. Achava que o santo de sua maior devoção havia escutado seus pedidos para que o filho não morresse. Ela tinha certeza disso.

E o pior de tudo isso estava para acontecer. Ia ser motivo de mangação pelos amigos. Bastava que um deles descobrisse a novidade e corresse para dizer aos outros. Não demorou. Aconteceu isso no primeiro domingo quando então fui à missa vestido como um frade, o crucifixo de madeira no peito, pendurado na corrente, o cordão grosso amarrado em volta da cintura.

Duduca, um lourinho, que só andava sorrindo quando via alguma coisa engraçada nos outros, não conteve o riso quando me descobriu vestido de São Francisco na missa das oito. Não parava de sorrir quando olhava para mim, os olhos cintilando de contente. Foi ele quem me botou o apelido de Ciroca Fradeco, assim que contou aos amigos como tinha me encontrado na missa vestido de frade.

Duduca era meu colega de aula, na turma do quarto ano primário do Colégio Divina Providência. Não era como eu um bom aluno. Quando escrevia, as letras pareciam uns garranchos, de tão feias. Tinha dificuldade em aprender as lições de português e as operações de aritmética. Estava sempre me pedindo ajuda para que explicasse as coisas na semana que antecedia às provas mensais. Esqueceu rápido que eu era o colega que o ajudava a aprender as lições de português ou as questões de matemática, as quais sempre demoravam para entrar em sua cabeça. Botou aquele apelido que me deixava chateado quando os colegas me chamavam de Ciroca Fradeco.

Minha sorte foi que a professora de português pegou Duduca dormindo na aula. Como castigo, ela passou para ele fazer uma composição sobre o rio Cachoeira com quinze linhas. Era para trazer na próxima aula. Duduca nunca tinha feito uma composição sobre qualquer assunto. Nem ele, nem qualquer colega de nossa classe.

Duduca podia até conhecer bem o rio Cachoeira, ter tomado banho muitas vezes em suas águas claras, nadado nos remansos e atravessado correntezas. Viajado de canoa de uma margem a outra, não ia saber escrever uma linha sobre o rio. Era só esperar, que ele ia aparecer lá em casa para me pedir que o ajudasse a fazer a composição que a professora passou como castigo. Se a composição que ele fizesse sobre o rio Cachoeira fosse aprovada pela professora, tirando uma nota boa, isso já ia lhe valer alguns pontos a seu favor na prova mensal de português.

No outro dia, como havia imaginado, ele estava lá em casa. De rosto sério, demonstrava que alguma coisa estava deixando-o muito preocupado. Pediu-me que ajudasse ele se sair bem com o dever que a professora havia passado para fazer sobre o rio. Estava com medo de não fazer a composição sobre o rio e tirar zero. Seria um desastre, se isso acontecesse. Certamente a professora ia tirar por isso alguns pontos de sua nota na prova mensal de português. E isso significava o pior. Faria a prova em desvantagem com os outros colegas. Insistiu que o ajudasse, já que eu tinha jeito para escrever, lembrando-me que uma vez tinha dito a ele que quando me tornasse um homem queria ser um escritor famoso.

Até gostava dele, estava sempre do meu lado quando um menino maior do que eu lá na rua implicava comigo no jogo de bola e me chamava para a briga no sério. Mas andava muito chateado com ele porque tinha me botado o apelido pirracento de Ciroca Fradeco. Pensando, pensando, aí eu falei que ia ajudá-lo contanto que ele deixasse de me chatear, chamando-me daquele apelido irritante, além de incentivar os colegas para que também mangassem de mim.

Os colegas respeitavam muito o Duduca porque era o mais forte entre todos nós. Pedi ainda que ele convencesse os colegas para não continuarem com a mangação. Respeitassem a promessa que minha mãe fez para que eu fosse à missa vestido de São Francisco.

Eu mesmo fiz a composição sobre o rio para o Duduca. Ele foi elogiado pela professora, que chegou a dizer que quando o aluno se entrega com interesse a um dever de aula parecendo difícil não existe tarefa que ele não consiga fazer. Claro que ele cumpriu a sua parte no trato que fizemos. Os colegas prontamente deixaram de me chamar pelo apelido de Ciroca Fradeco, o que não deixou de ser um grande alívio para mim.
Cyro de Mattos

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