sexta-feira, outubro 30

O exílio do senhor Palácios

Todas as manhãs, contanto que fizesse sol, o velho José Palácios saía para passear. Ivete, a filha, via-o afastar-se, apoiado à bengala, um vulto esguio, alto, sempre vestido de branco. Regressava à hora do almoço, tão silencioso como quando partira — mas com um leve sorriso a iluminar-lhe o rosto.

José Palácios nunca fora um homem de esbanjar palavras. Ivete lembrava-se dele quando ainda eram sete pessoas em casa, toda a gente falando ao mesmo tempo durante as refeições, e aquele silêncio sólido crescendo como uma nuvem negra à cabeceira da mesa. Quando se zangava, apenas erguia um sobrolho, e logo todas as vozes se calavam, a mãe assustada, aconteceu alguma coisa, José?, enquanto os irmãos trocavam olhares inquietos. Ela, a caçula, de cabeça baixa. Tinha muito medo dos silêncios do pai. Contudo, também havia silêncios bons. Ivete lembra-se de estar sentada nos joelhos do pai, ambos calados, ouvindo o sol descer sobre o capinzal. Não há nada que envelheça tanto uma pessoa quanto assistir à decadência dos pais. Agora também ela estava reformada, e eram dois velhos numa casa demasiado pequena para tantos silêncios.

Susa Monteiro


Ivete não sabia para onde o pai ia, sempre que, depois de terminar a sua xícara de café, acompanhada por duas torradas com manteiga, saía a passear. O velho não tinha amigos (nunca tivera) e, aos 98 anos, parecia-lhe improvável que mantivesse uma amante secreta. Sempre que lhe perguntava, onde é que o pai vai?, recebia como resposta um daqueles silêncios ásperos, que desde criança tanto a incomodavam.

Certa manhã, decidiu segui-lo. José Palácios cruzou dois quarteirões, em passadas lentas e esforçadas. Ivete soube para onde o velho se dirigia ainda antes de avistar os compridos muros, sobre os quais se erguiam altas copas verdes — o Jardim Zoológico. Deteve-se, surpresa. Enjaular animais selvagens, ou exibi-los em circos, eram práticas que enfureciam o pai. Ouvira-o algumas vezes — com as suas raras palavras — indignar-se quer contra quem colocava animais em zoos, quer contra quem lá os ia visitar.

O velho Palácios fora caçador profissional. Nunca falava desse tempo. Um dia, um amigo de Ivete aparecera em casa com um livro sobre caçadores de elefantes, que comprara num alfarrabista. Tinha um capítulo inteiro dedicado a José Palácios. O velho agradecera a oferta. Na manhã seguinte, Ivete encontrou o livro no caixote do lixo, com as páginas arrancadas e rasgadas. Acho isto uma crueldade — disse ao pai, mostrando-lhe o volume esventrado. O velho, sentado na cama, em cuecas, pousou o jornal, tirou os óculos e olhou-a sem dizer palavra.

E agora ali estava ele, parado diante da ilha dos elefantes. Àquela hora havia pouquíssimas visitas. O velho parecia saído de um postal antigo, assim, todo de brim branco, bengala de pau preto e fulgurante chapéu panamá.

Um dos elefantes viu-o, e avançou a trote em direção ao fosso. Deteve-se diante dele, erguendo a tromba, ao que o velho respondeu levantando a mão, num aceno cúmplice. Parecem amigos de infância, pensou Ivete, parecem parentes próximos, e então deu-se conta da humidade súbita, uma neblina espessa, que descia do céu e ia pouco a pouco desbotando as árvores, as pessoas, os animais e os edifícios.

Olhando para o pai como para um desconhecido, Ivete sentiu que pela primeira vez o reconhecia: um homem nos confins do seu exílio. José Palácios e o elefante, um diante do outro, eram como dois reis no degredo.

A mulher recuou em silêncio. Encontrou a casa maior, mais desolada, a sala escura e fria, os quartos alheios, cheirando a bolor e abandono. Devíamos voltar para África, disse ao pai, nessa noite, enquanto lhe servia a sopa. O velho sorveu o caldo em silêncio, uma lenta colher após a outra. Não quero morrer aqui, acrescentou Ivete. José Palácios ergueu os olhos:

Há muitos anos matei um elefante, disse. Uma fêmea. Percebi demasiado tarde que ela tinha uma cria pequena. Entreguei essa cria a um jardim zoológico.

Calou-se. Ivete deu-lhe a mão. Estamos velhos, eu e tu. Continuou José Palácios. Eu, demasiado velho para morrer. Quero dizer, para morrer decentemente, para escolher o lugar onde morrer.

Chovia lá fora. Um cão ladrou algures, muito longe. Uma porta bateu. Pareceu a Ivete que o ar se enchia do cheiro vivo do capim húmido, macerado, ela sentada nos joelhos do pai, ouvindo o sol cair sobre a savana.

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