quarta-feira, março 31
Dias chuvosos
Amanda Oleander |
Ela gostava mais da fazenda quando chovia. Acordar de manhã ouvindo o barulho da chuva nos telhados e claraboias trazia sempre uma grande sensação de conforto. Fazia planos de ler nos dias chuvosos - para por em dia minha leitura, dizia. Todos os livros que escolhia eram ambiciosos, mas nunca passava do primeiro capítuloJohn Cheever, "A Crônica dos Wapshot"
O dia em que explodiu Mabata-bata
O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado como prenda de lobolo do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava
para ele desde que ficara órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cacimbo das primeiras horas.
Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada.
“Deve ser foi um relâmpago”, pensou.
Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou?
céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança o seu voa incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buracando-o. Fica na cova e aí deita a sua urina.
Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escavar aquele ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só vez, conforme sucedeu-se.
Reparou em volta: os outros bois, assustados, espalharam-se pelo mato. O medo escorregou dos olhos do pequeno pastor.
— Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres.
A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras mas não encontravam saída. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não sabia mais nada. Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio na boleia do rabo do Mabata-bata, apostar nas brigas dos mais fortes. Em casa, o tio adivinhava-lhe o futuro:
— Este, da maneira que vive misturado com a criação, há-de casar com uma vaca.
E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que ia deixar. Calculou o dentro do seu saco: uma fisga, frutos do djambalau, um canivete enferrujado. Tão pouco não pode deixar saudade. Partiu na direcção do rio. Sentia que não
fugia: estava apenas a começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem parou à espera nem sabia de quê.
Ao fim da tarde a avó Carolina esperava Raul à porta de casa. Quando chegou ela disparou aflição:
— Essas horas e o Azarias ainda não chegou com os bois.
— O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar.
— Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos...
— Aconteceu brincadeiras dele, mais nada.
Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do casamento. De repente, alguém bateu à porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três.
— Boa noite, precisam alguma coisa?
—Boa noite. Vimos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde. Foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.
Outro soldado acrescentou:
— Queremos saber onde está o pastor dele.
— O pastor estamos à espera — respondeu Raul. E vociferou:
— Malditos bandos!
— Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. É bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado.
Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esse sacana do Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí?
— Avó: eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. Deve ser talvez deixou a manada fugentar-se. É preciso juntar os bois enquanto é cedo.
— Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso.
Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: é onde o Azarias conduzia os animais. Raul, rasgando-se nas micaias, aceitou a ciência do miúdo. Ninguém competia com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale.
Chegou ao rio e subiu às grandes pedras. A voz superior, ordenou:
— Azarias, volta. Azarias!
Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda à volta. Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho.
— Apareça lá, não tenhas medo. Não vou-te bater, juro.
Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos, habituados à penumbra desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta.
— Azarias?
Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina.
— Sou eu, Raul.
Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estoirava com ele também.
— Volta em casa, avó!
— O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há-de ouvir.
E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Por trás das sombras, uma silhueta deu aparecimento.
— És tu, Azarias. Volta comigo, vamos para casa.
— Não quero, vou fugir.
O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto para saltar e agarrar as goelas do sobrinho.
— Vais fugir para onde, meu filho?
— Não tenho onde, avó.
— Esse gajo vai voltar nem que eu lhe chamboqueie até partir-se dos bocados — precipitou-se a voz rasteira de Raul.
— Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria. — E voltando-se para o pastor: — Anda, meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu. Anda ajudar o teu tio juntar animais.
— Não é preciso. Os bois estão aqui, perto comigo.
Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito.
— Como é? Os bois estão aí?
— Sim, estão.
Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade do Azarias.
— Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois?
A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles os dois. Prometeu um prêmio e pediu ao miúdo que escolhesse.
— O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido.
Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens.
— Fala lá o seu pedido.
— Tio: próximo ano posso ir na escola?
Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento:
— Vais, vais.
— É verdade, tio?
— Quantas bocas tenho, afinal?
— Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde.
— Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui.
O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite.
O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:
— Vens pousar quem, ndlati?
Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos.
— Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me?
E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem da sua chama.
segunda-feira, março 29
Iniciativas
De vez em quando, faça partir um barco. Veja aonde vai. Se for difícil, suprima o mar e lance uma planície.
Mande um esboço de rochedo, o resto de uma floresta.
Jogue as iniciais do lenço. Faça descer algumas ilhas.
Mande a fotografia do lugar, com as curvas capitais e a cópia dos seios.
Atire um planisfério. Um zodíaco. Uma fachada de igreja. E os livros fundamentais.
Sirva-se do vento, se achar difícil.
Eles estão perdidos. Mas nem tudo o que fizeram está perdido.
Separe o que possa ser aproveitado e mande. Sobretudo as formas em que o sonho de alguns se cristalizou.
Remeta a relação dos encontros, se possível. E o horário dos ventos.
Mande uma manhã de sol, na íntegra.
Faça subir a caixa de música, com o barulho dos canaviais e o apito da locomotiva.
Veja se consegue o mapa dos caminhos.
Mande o resumo dos melhores momentos.
As amostras de outra raça.
Para quem já passou pelo desgosto de chorar a morte de um cão
James Charles (1851 – 1906) |
Estou de brincadeira. Eu gosto do meu cunhado. Faz mais de 20 anos que estou pegando a irmã dele. Estou só tentando me acalmar, me recompor para continuar escrevendo. Esta é uma curta história de sofrimento, dentre tantas do corolário humano. Há mais tristeza que felicidade, isso é fato. Todo mundo carrega uma desgraça a tiracolo para jogar na roda e impressionar os convivas. Os seres humanos são dramáticos. Não somos como os cachorros. A gente gosta de florear as coisas, de criar comoção, de desfilar os percalços, como se eles fossem exclusivos. As dores são todas iguais, só mudam de endereço.
Acabo de chegar do pet shop. Lá, fui informado pela veterinária responsável pelo estabelecimento que Lola, a cadelinha, personagem assídua das minhas crônicas, tinha morrido.
— Como assim, “morreu?”, eu quis saber, abilolado, aturdido, pois ela aparentava gozar uma saúde de ferro. Era a morte me pegando com as calças nas mãos. Moça, por favor, não chore, eu pedi, com a voz embargada, louco de vontade de chorar junto.
— Ataque cardíaco, ela disse com o rosto ensopado.
— Como assim, “ataque cardíaco?”, eu pensava que isso era uma particularidade dos seres humanos.
Enquanto acariciava Lola morta sobre a bancada, palpei, com minúcias, cada centímetro do seu corpo já enrijecido, para me certificar se havia ou se não havia algum sinal de ferimento, um hematoma, uma fratura, indícios de maus tratos. Isso é horrível, a gente desconfia das pessoas até nessas horas. Lucubrei que ela pudesse ter caído da maca ou ter sido eletrocutada, acidentalmente, durante a secagem do pelo. Sei lá. Quanta bobagem. Há muita criatividade e liberdade de expressão, em matéria de se conspirar. Apesar do sofrimento e da comoção coletiva dentro do pet shop, eu estava sendo eu mesmo, ou seja, aquele homem de sempre: centrado, aparentemente calmo, racional e capcioso, uma verdadeira lástima.
No final das contas, o que mais eu podia fazer senão aceitar, resignar-me frente as explicações fornecidas pela veterinária? Apesar de ser um animal jovem, Lola tinha sofrido um mal súbito, enquanto tomava banho. Um piripaque. Começou a babar, ficou ofegante e… Pimba! Uma arritmia. Um infarto, provavelmente. Quem diria: os cães também enfartavam. Esses bichos só faltavam falar mesmo, pois, enfartar eles já enfartavam. Tava ali a comprovação do fato. Apesar do fatídico e inesperado transtorno que acometeu a minha tarde, paguei a conta e parti. Claro: se eles eram tão inocentes quanto pareciam ser, não fazia o menor sentido que eu não os remunerasse. Era o trabalho deles. Não eram muito bons em dar más notícias, isso não, porém, era o trabalho deles. Aceitaram a grana com olhos inchados e sorrisos de constrangimento.
Consolei a minha companheira da forma que eu dei conta, nunca fui muito bom em acarinhar. Catei os trecos da Lola que estavam esparramados pela casa, guardei-os num depósito para, quem sabe, um dia, perdê-los. Não chorei, mas, fiquei triste, tão triste, que decidi escrever esse texto, uma espécie de tributo, não para Lola, uma cadelinha branca da raça “lhasa apso”, o animal mais feliz, dócil, brincalhão e adorável que conheci na vida, mas, àqueles que, melhor do que eu, entram de sola nos sentimentos, a ponto de amar os animais como se eles fossem alguém da família, às vezes, cometendo os excessos de que falou o meu querido cunhado. São essas as mesmas pessoas sensíveis que amam os amigos, os parentes (inclusive, os cunhados), um emprego, uma planta, um livro, uma banda de rock, um artista famoso do cinema, um desconhecido que pede ajuda.
Lola não era apenas uma cadela. Era o amor latindo dentro de casa, como se a alegria fosse durar para sempre. E todos nos já sabemos que isso, simplesmente, não é possível.
domingo, março 28
Um Brasil poético e solidário
Alci, Miguelzinho e Lazinho trouxeram espigas de milho, as primeiras colhidas no milharal de Ivo e Sueli, amigos e vizinhos, e Rosilene colocou na panela. Mais tarde, Alci voltou com imensa abóbora logo transformada em doce e ainda será quibebe e sopa, tudo em fogão de lenha. Neste recanto do sul de Minas, descoberto há cinco anos, conseguimos construir um pequeno refúgio. Marcia, arquiteta, decidiu que a casa teria grandes janelas e portas de vidro, abrindo para a floresta, para vales e montanhas e, do lado direito, para o Pico do Papagaio, um dos símbolos de Minas Gerais.
Fugimos de São Paulo e aqui estamos, evitando o colapso da covid. Momento exato. Minha idade me torna vulnerável e quero ainda gozar os anos que me restam. Não professo a teoria do genocida. Aqui, aos poucos, viemos penetrando na atmosfera da comunidade, lentamente porque é preciso ir com jeito. O mineiro é bom, solidário, generoso, mas confia com cautela. Marcia e Rita já apanharam o modo de eles falarem, as contrações, prêle, os termos próprios, o LI quando querem dizer ALI, e dezenas de expressões poéticas. Nossa casa é conhecida como a casa da dona Marcia e foi construída velozmente por três homens, não mais. Das fundações aos acabamentos, hidráulica, pintura, Marcinho, Geovanni e Genildo cuidaram de tudo. O muro de pedra foi erguido pelo Fortunato, que manejou pedras pesadíssimas. José Messias se encarrega da horta e ali buscamos couve, feijão, alface, almeirão, vagem macarrão, couve chinesa e já temos limão plantado. Ele é daqueles que têm mão santa, planta, germina, cresce. Os governantes não conhecem o interior do Brasil, é outro mundo distante de Brasília, ninho de escorpiões.
Todos os dias vinha a pergunta: “Chegaram os móveis da Marcia? E a geladeira?”. Os motoristas de cada caminhão que passava pelo Horlando ouviam a mesma indagação ansiosa: “Trouxe os móveis da Marcia? E a geladeira?”. As festas de final de ano chegavam. Suspense geral. Criou-se um clima, todos inquietos. A estrada de terra para nossa casa passa frente ao Horlando e um dia por ali circulou um caminhão-baú vindo de Lagoa Dourada e Camila gritou: “É a geladeira?”. O motorista respondeu: “Não, são os móveis da dona Marcia”.
Alegria. O caminhão seguiu rumo a nossa casa. Mas sendo estrada de terra, tinha chovido, a carga era pesada, em uma ladeira enlameada, ele atolou. E agora? Bem, o Miguelzinho passou por ali de moto, olhou, viu que eram os móveis, voou em busca do Alci com o trator, desencalharam o caminhão. Este chegou em casa à noite seguido por um bando de gente disposta a ajudar a descarregar. O que deveria ter durado três horas com o motorista e seu ajudante, virou menos de 40 minutos, todo mundo levando mesa, cadeiras, sofás, colchões, armários, rindo e brincando. Foi linda a solidariedade, a disposição, o companheirismo. Sentimo-nos aceitos.
Passamos o Natal sem geladeira. Certo dia, passou pelo Horlando uma caminhoneta com uma geladeira na traseira. Tomou nosso caminho. Camila deu o alerta: “Chegou a geladeira da Marcia”. Teve gente que veio verificar. Quem veio, tomou cerveja. Preciso dizer que um dia trouxe um livro meu para o Horlando. Ele tirou uma foto, ampliou, está no “shopping”, alertando que sou imortal em duas academias, a Paulista e a Brasileira. Pretendo trazer livros para todo mundo, montar uma biblioteca aqui que será cuidada pela Vitória, que adora literatura. Ah, sim acabaram de trazer amendoim e pinhões recém-colhidos. Este é um Brasil cordial que ainda existe.
Lembrem-se:
Faixa negra nas janelas no Movimento Luto pela vida.
A gota
“Há este céu duro,Empedrado de ventos…”Hilda Hilst
Após os bombardeamentos, a cidade ruiu, pedra sob pedra. O que antes era chão é agora um imenso tapete de cinzas. Por entre ruínas, nem gente, nem bicho, nem planta. Resta um único sinal de vida: dona Teófila e o seu marido, Diamantino. Vivem no que restou da antiga casa, sobrevivem do que sobrou na velha despensa. Todas as manhãs, dona Teófila pede ao marido que vá conferir as reservas de comida, as latas de conserva, os sacos de arroz, os garrafões de água. E o marido, que é cego, sorri, complacente e faz de conta que cumpre com o que lhe foi mandado.
– Devagar, Diamantinho – comanda Teófila. E acrescenta – Estás farto de saber que esta poeira é um veneno – O marido não percebe nada do que ela diz, as palavras dela enroscam-se no tecido da máscara que lhe cobre o rosto. A própria voz de Teófila lhe parece estranha, depois de atravessar o pano que ela teima em usar sobre a boca e o nariz.
Desde os bombardeamentos que não chove, nem sopra a mais ténue brisa. Os sulcos das rodas e as pegadas de Diamantino são o único desenho vivo sobre a perpétua poeira dos escombros. Acontece como na superfície lunar: toda a pegada se torna eterna.
O percurso é o mesmo de sempre: dirigem-se às ruínas da casa dos vizinhos, os Pimentas. Ali se senta Dona Teófila numa mutilada sombra enquanto vai desatando falas, como se alguém escutasse do outro lado do muro. E vai revelando, num longo rosário, peripécias e segredos do marido. Aos poucos, ali se desfiam lembranças de uma vida conjugal que o próprio Diamantino desconhecia. Até que, cansado de tanto esperar, o homem a faz regressar à realidade.
– Ponha na sua cabeça, mulher: não há ninguém do outro lado do muro, está tudo morto, mais do que morto – vai avisando Diamantino. E depois, entediado, ele reclama – Porque tanto insistes em falar de mim, mulher?
– Para que essa maldita Marlu morra de ciúmes – responde Teófila.
Um sol implacável escoa por entre uma espessa e persistente bruma. Apesar desse céu fechado – de onde para sempre se ausentou o sol e a lua – Dona Teófila não abdica do seu guarda sol. Protege-se, diz ela, da poeira que cai das nuvens.
– Os pássaros já começaram a voltar – afirma Teófila. – Gostava que os pudesses ver, Diamantinho.
– A verdade é que não os escuto – avisa o marido.
– Mas já andam por aí – insiste Teófila. – Não tarda que comecem a cantar.
– Mas e onde pousam esses pássaros se as árvores morreram?
– Se fosses mulher educada, saberias da existência dos albatrozes. Pousam no próprio voo, morrem sem tocar no chão.
Na velha cidade tudo se tornou chão: um chão tão deitado e macio que eles não escutam os próprios passos. E um outro chão vertical, feito desse céu de onde se penduram restos de paredes. Diamantino traz a máscara descaída sobre o queixo. A mulher corrige-lhe esse descuido enquanto adverte:
– Esse pano está imundo, da mesma cor deste mundo. Assim que voltarmos a casa vais lavar esse trapo.
– Não vou desperdiçar água, os panos que esperem.
– Olha, está a passar agora uma garça! – proclama Téofila, com entusiasmo. E repete o anúncio da celestial descoberta, sabendo das dificuldades auditivas do marido – É pena não veres, é tão branca, parece um anjo…
– Porque é que mentes, mulher? Os pássaros, a vizinha, a garça, os bombardeamentos. Tudo mentira, tudo pura mentira.
– Às vezes, meu velho, mentir é a única maneira que nos resta de rezar.
O marido insiste: já não há gente vivendo entre as ruínas. Teófila opõe-se. Há gente, sim. Se o marido fosse mulher e não fosse cego, saberia que os sobreviventes deambulam como sombras por detrás dos escombros. Já não restam portas nem paredes, é verdade. Mas as pessoas têm artes mágicas de se enclausurar. Somos os mais competentes carcereiros de nós mesmos. É o que diz dona Teófila.
– Quando falas, mulher – reclama o homem – espalhas cuspe e levantas poeira e ambos são mortais venenos.
– Tem que haver pessoas, Diamantino – insiste a esposa. – Se assim não fosse, já teríamos morrido. É que o ar precisa de gente – prossegue Teófila. – Se tivesses estudado, Diamantino, saberias que o ar, para se manter vivo, precisa de ser respirado. As pessoas são o nosso oxigénio.
Diamantino levanta os braços da cadeira e limpa o rosto com a própria máscara. As mãos e os gestos parecem desencontrados como acontece com quem nunca viu o seu próprio corpo.
– Falas de mim, Diamantino, falas dos meus cuspes e das minhas poeiras e devias ter vergonha na cara – acusa Teófila – Porque continuas a sonhar com essa maldita Marlu. Eu bem te escuto a murmurar o nome dela. Tens que passar a dormir de máscara, para não me contaminares.
– Não entendo nada do que dizes, mulher – comenta Diamantino.
– Às vezes me pergunto como é que um cego sonha? – interroga-se Teófila – Desconfio que à noite deixas de ser cego.
Diamantino sorri com um riso oblíquo. A mulher fala sozinha. É então que o marido se apercebe que Teófila se levanta e caminha por si mesma. O cego sabe que o vestido dela é de um vermelho intenso, como sabe que a sua camisa é azul-marinho e imagina que aquelas duas manchas coloridas visitarão os seus sonhos. No início, Diamantino percebe que a esposa vai atravessando a rua. Aos poucos, ele vai deixando de escutar o suave ruído dos passos dela e, de novo, todos os silêncios voltam a tornar-se indistintos.
Usando a cadeira de rodas como se fosse uma bengala, Diamantino transpõe a praça até chegar aos destroços da casa da Marlu Pimenta. Deve ser ali que a sua esposa se encontra. O cego vai evoluindo, cauteloso, entre as brumas até que esbarra com um vulto. E logo se apercebe que ali se aglomeram sombras, imóveis e silenciosas como pedras. Assusta-se, primeiro, o cego Diamantino. Depois, escuta uma das sombras que lhe dirige a palavra.
– Veio ao funeral, Diamantino?
– Funeral? Funeral de quem?
– Da Marlu. Morreu esta noite.
Diamantino tomba desamparado sobre a cadeira. Leva os dedos ao rosto para certificar-se da existência de alguma furtiva lágrima.
– Não sei o que dizer – murmura ele, enfim — Sempre pensei que Marlu não tivesse sobrevivido aos bombardeamentos.
– O que passa, Diamantino? – espanta-se um dos vizinhos – Desde que ficou viúvo, não houve tarde em que o senhor não tivesse levado a passear a nossa querida Marlu.
– Ainda ontem saíram os dois, já não se lembra? – pergunta um outro vizinho.
Diamantino retira-se, os sapatos raspando as cinzas. Regressa a casa, o universo pesando-lhe nos ombros. Sempre soube vencer o escuro. Mas reconhece que lhe faltou discernimento para admitir que, apesar das cinzas, a cidade se mantinha viva, na companhia dos vivos. Se alguém enviuvara tinha sido apenas ele.
Dirige-se ao velho poço e ali se deixa ficar sentado na cadeira de rodas, o braço estendido sobre uma sombra aberta entre um pequeno monte de pedras. Num dado momento, escuta passos de alguém que se aproxima. São passos de mulher, isso ele está certo. E reconhece o silêncio de quem chegou. Depois, o cego faz pender mais o braço sobre o chão, aponta para a sombra entre as pedras e pergunta:
– Já germinou?
– Já despontam duas pequenas folhinhas – responde uma voz toldada pela comoção.
Do braço de Diamantino tomba uma gota de suor. E ele jura que é a chuva que regressa. Como jura que um vulto de mulher se vai afastando por entre o nevoeiro. Às vezes, mentir é a melhor forma de rezar.
sábado, março 27
Do diário (sábado, 10-10-1964)
Os homens tristes, geralmente, fazem graçaAntia Marônio
Já esperava. A continuação da chuva iria trazer uma porção de lembranças. As que envelhecem.
Chovia assim, quando fizemos a casa. Eu não tinha a menor ideia de como se fazia uma casa. Ensinaram-me.
Com um barbante, desenha-se no chão o formato da casa. Depois, na linha do barbante, cavam-se os alicerces, levantam-se as paredes. Depois é só fazer o telhado e cobrir o chão com lajotas. Caiam-se as paredes e pintam-se as janelas de azul. A casa fica linda e todas as pessoas se beijam. As mais íntimas, na boca. Então, faz-se a cerca de casuarina e plantam-se os coqueirinhos no derredor da casa. Compram-se os móveis, a geladeira, as roupas de cama e mesa, as louças, os talheres e as redes. Aí, habita-se a casa. Com as melhores intenções. Feito isto, a família se reúne e todos se olham, com os olhos em brasa.
As redes ficam no terraço, vazias. Os peixes pulam na água para divertir as crianças, crentes que elas ainda estão.
Triste de quem tem memória. Envelhece antes do tempo. Chora sem ter de que (pobre chora à toa). Dramatiza tudo.
Continua chovendo. Uma chuva que se adensa nos corações e a eles lembra o que era para esquecer.
Chovia igual a hoje, quando fomos ver a casa, onde viveu Van Gogh. Anvers-sur-l'Oise. O domingo cinzento. A praça. As mulheres passando para a missa. A caminho do cemitério, uma velha igreja, onde fomos fotografados, "sorrindo para a nossa objetiva". O cemitério e, lado a lado, Théo e Vicente. Algumas flores mortas. Além, o muro e o trigal, onde o artista se matou.
Voltamos à casa. O pequeno quarto onde Van Gogh dormia dava para um muro cinzento e sujo. A cadeira. Aquela cadeira, que ele pintou, tantas vezes.
Eu e Cícero Dias, Cícero, lendo um jornal, ria, sem parar, porque um casque-bleu tinha sido comido, via oral, por um africano. Levantei-me e pedi à patrone que me vendesse três fotografias em cores. Ela começou a rir. Em meu triste francês, tinha lhe pedido três fotografias, "em cólera".
Voltamos a Paris, no anoitecer. Chovia igual a hoje e o porteiro do hotel me esperava com um telegrama. De amor ou de morte? De amor. Aquele amor de que se fez a casa, desde o barbante, que lhe desenhou o formato.
sexta-feira, março 26
O adolescente Lenz conhece a crueldade
O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de uma empregada, a mais nova e a mais bonita da casa.
- Agora vais fazê-la, aqui, à minha frente.
A criadita estava assustada, claro, mas o estranho é que parecia que ela estava assustada com ele, e não com o pai: era o facto de Lenz ser um adolescente que assustava a criadita e não a violência com que o pai a disponibilizava ao filho, sem qualquer pudor, sem sequer ter o cuidado de sair. O pai queria ver.
- Vais fazê-la à minha frente - repetia.
Estas palavras do pai marcaram Lenz durante anos. Vais fazê-la.
O acto de fornicar a criadita era reduzido ao mais simples: a um fazer. Vais fazê-la, era a expressão, como se a criadita ainda não estivesse feita, como se fosse ainda uma matéria informe, que esperasse o acto dele, Lenz, para ser acabada. Esta mulher ainda não está feita antes de tu a fazeres, pensou o adolescente Lenz, de uma forma clara, e os gestos seguintes foram os gestos de um trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado mais experiente, neste caso o seu pai: vais fazê-la.
- Despe as calças - foi a segunda frase do pai. - Despe as calças.
O adolescente Lenz despiu as calças. E todas as ordens que se seguiram foram dirigidas exclusivamente a si; ou seja: o pai não dirigiu uma única frase à criadita - ela sabia o que havia a fazer e fez o que tinha de fazer, máquina que não tem alternativa. Ao contrário do adolescente Lenz que, apesar de tudo, poderia dizer ao pai: não quero.
- Despe as calças - ordenou o pai.
Lenz é conduzido, depois, quase empurrado, pelo pai até à criadita, que está deitada e espera.
- Avança - disse o pai, com rudeza.
E o adolescente Lenz, determinado, avançou sobre a criadita.
A caça
2
Lenz calça as botas e prepara-se para a caça. Primeiro o ritual de domínio sobre os pequenos objectos imóveis: as botas, a arma, o colete pesado.
Aqueles movimentos eram os que melhor contribuíam para formar o ser humano. E que bom atirador ele era.
Por seu turno, os elementos ágeis da natureza reivindicavam uma desobediência que não era tolerável. Lenz ia caçar devido a uma certa determinação política. Um coelho era um adversário minúsculo, mas obrigava-o a tomar uma posição em cima da terra, dentro do mapa de combate. Um opositor mesquinho - um coelho - obrigava Lenz a uma tensão muscular, a um ligar da astúcia: não bastava a pontaria nem a capacidade mecânica da arma, era ainda necessária uma atenção intelectual, uma atenção da inteligência; só as coisas imóveis dispensavam esta atenção de Lenz.
Entre ele, Lenz, e a peça de caça, ainda viva, havia uma negociação prévia: ele recusava-se a matar umúnico animal nos primeiros minutos. Havia a exigência de habituação, um respeito em relação a um espaço que se invade. Aquela não era a sua casa.
Os vinte minutos em que não disparava eram o limpar dos pés ao tapete à entrada de uma casa estranha. A estranheza existia no bosque e, não havendo porta de entrada nem tapete, Lenz percorria, durante vinte minutos, os caminhos que a natureza, com a sua estupidez muito própria, deixara espontaneamente para os homens passarem.
Havia no bosque uma outra lei. No bosque a moral era indelicada, rude, era o mesmo que entrar no quarto da criadita, enquanto adolescente; naquele quarto dos fundos, com cheiros muito diferentes dos que existiam na casa principal, na casa dos pais. No quarto da criadita ser delicado era ser fraco e constituiria de tal forma um erro absurdo que até a criadita protestaria perante qualquer gesto carinhoso do filho do patrão.
No bosque as virtudes não haviam sido invadidas pela sensação de mofo; uma outra potência estava suspensa sobre o seu caminhar por entre as árvores robustas, mas tortas, que escondiam centenas de existências animais; existências que eram, afinal, peças de caça, num resumo extraordinariamente sintético também das relações humanas.
Lenz não tinha ilusões: só não entrava numa qualquer rua da cidade com a mesma cautela e com a arma preparada para disparar porque, naquele outro espaço, algo ainda inibia o ódio: a mútua vantagem económica.
O aparente equilíbrio entre vizinhos do mesmo prédio era o que existia num homem de elevada estatura, um instante antes de, desamparado, pousar o primeiro pé num pântano. A frase primeiro o senhor, dita por alguém, num café, a um outro cliente que entrasse ao mesmo tempo, aceitando assim beber algo depois de o primeiro ser servido, era uma frase de guerra, de pura guerra.
Todas as frases de simpatia podiam ser vistas, segundo um outro olhar, como frases de ataque. Ao deixar passar o outro à frente, um homem não estava a aceitar ser segundo mas sim a preparar o mapa do terreno para poder controlar visualmente o homem que por instantes se julgava em primeiro lugar. A vantagem de alguém estar à nossa frente, dissera uma vez o pai de Lenz, é estar de costas viradas para nós. Não importa o lugar onde estamos mas o campo de visão e a posição relativa.
No entanto, Lenz cedo percebera que era necessário um suporte, um sítio ao qual o corpo se encoste sem medo de ser atraiçoado; no fundo, uma parede que não corra o risco de desabar. A família seria a sua parede, o ponto a que poderia encostar a nuca (pois mesmo num ataque vigoroso quem ataca tem nuca, e essa fragilidade jamais pode ser esquecida).
Lenz preparou a arma, encostou o aço da coronha ao peito - peito que batia com força - e pensando na criadita que há mais de dez anos, debaixo dos incentivos do pai, o servira pela primeira vez, Lenz apontou e disparou.
Ouviu depois um guincho, que noutra situação juraria poder ter saído das rodas de um carro e, após um segundo de estupefacção inexplicável, começou a correr na sua direcção. Em breve, o sangue se tornou marcante naquela parte do bosque, porém Lenz não conseguiu apanhar o animal.
Tinha conseguido ferir o inimigo, mas não eliminá-lo. Ainda não o poderia comer.
quinta-feira, março 25
Livraria 3D
Turno da madrugada
Mariana Ianelli
quarta-feira, março 24
Assim começa...
Professor, tínhamos em nossa aldeia um costume bem antigo de batizar as crianças com o nome de partes do corpo humano, como Chen Nariz, Zhao Olho, Wu Intestino, Sun Ombro… Nunca procurei saber a origem dessa prática, talvez tenha surgido por acreditarem que um nome humilde daria vida longa, ou pelo fato de as mães considerarem o filho parte da própria carne. Esse é um costume que caiu em desuso. Os pais de hoje não querem mais dar nomes estranhos aos filhos. As crianças da aldeia agora recebem nomes sofisticados de personagens de novelas de Hong Kong, Taiwan, Japão ou Coreia. Quem tinha o nome à maneira antiga, na maioria dos casos, acabou optando por outro mais elegante. Naturalmente, há aqueles que mantiveram o original, como Chen Orelha e Chen Sobrancelha.
Chen Nariz — pai de Chen Orelha e Chen Sobrancelha — foi meu colega na escola primária e meu amigo na juventude. Entramos na escola primária de Dayanglan no outono de 1960. As memórias mais marcantes que tenho daquela época de fome são, em grande parte, relacionadas à comida. Por exemplo, a história de quando comi carvão. Muitos pensam que é invenção minha, mas juro por minha tia que tudo aquilo aconteceu de fato, não inventei nada.
Era um carregamento de carvão de alta qualidade, produzido na mina de Longkou. Dava para ver nitidamente o nosso reflexo nele, de tão reluzente. Nunca mais encontrei um carvão brilhante como aquele. O charreteiro da aldeia, Wang Pé, trouxe o minério de carroça desde a sede do distrito. Wang Pé tinha a cabeça quadrada e o pescoço grosso. Sofria de gagueira. Quando falava, seus olhos saltavam e o rosto corava. Era pai de um casal de gêmeos, Wang Fígado e Wang Vesícula, meus colegas de escola. Fígado, o menino, era alto, mas Vesícula, a menina, nunca cresceu muito, era uma miniatura — praticamente uma anã, para usar uma expressão grosseira. Diziam que, no ventre da mãe, Fígado tomou para si todos os nutrientes, e por isso Vesícula saiu miudinha daquele jeito. O carvão chegou bem na hora da saída da escola. Os alunos, de mochila nas costas, cercaram a carroça para ver o minério ser descarregado. Com uma grande pá de ferro, Wang Pé ia tirando o carvão da carroça e despejando-o no chão. As pedras faziam barulho ao cair umas sobre as outras. Wang Pé tirou da cintura um pano azul para enxugar o suor do pescoço. Nisso, viu ali os dois filhos e ralhou: “Vão já para casa cortar capim!”. Wang Vesícula deu meia-volta e saiu correndo — ia balançando o corpo, sem muito equilíbrio, como uma criança dando os primeiros passos; era mesmo um encanto. Wang Fígado afastou-se um pouco, mas não saiu dali. O menino admirava o trabalho do pai. As crianças de hoje não experimentam mais o fascínio que Fígado sentia naquele tempo, nem que o pai seja piloto de avião. Mas a carroça, ah, aquela carroça! Corria ruidosa levantando poeira atrás das rodas. Era guiada por um cavalo militar da reserva que, nos tempos do Exército, transportava explosivos. Dizem que ganhara a marca de ferro na garupa em reconhecimento aos relevantes serviços prestados no front. A tração ficava a cargo de um burro de temperamento irritadiço, perito em coices, especialista em mordidas. Apesar do mau gênio, tinha uma força espantosa e uma velocidade excepcional. Wang Pé era a única pessoa capaz de controlar aquele burro louco. Muita gente na vila invejava sua ocupação, mas, só de ver o burro, mudava de ideia. O animal mordeu duas crianças: uma foi Yuan Bochecha, filho de Yuan Rosto, a outra foi Wang Vesícula. Certa vez Wang Pé parou a carroça em frente a sua casa e a filha foi brincar perto do burro, que abocanhou a menina pela cabeça e a levantou do chão. Todos tratávamos Wang Pé com a maior consideração. Ele tinha um metro e noventa de altura, ombros largos, a força de um touro. Era capaz de erguer nos braços uma pedra de moinho de cem quilos, e erguia até acima do cocuruto. Tínhamos especial admiração pelo seu chicote. Quando o burro louco mordeu a cabeça de Yuan Bochecha, Wang Pé puxou o freio e ficou em pé sobre os timões da carroça, uma perna de cada lado, brandiu o chicote e começou a fustigar a garupa do animal. A cada chicotada era um fio de sangue que escorria, um som de couro que se rasgava. De início, o burro louco ainda dava coices. Passado algum tempo, começou a tremer, dobrou as pernas dianteiras, arriou a cabeça e mordeu a terra, enquanto a garupa erguida continuava debaixo de açoite. Wang Pé só parou, a contragosto, depois que o pai de Yuan Bochecha veio pedir que poupasse o animal. Yuan Rosto era secretário do Partido na aldeia, uma alta autoridade local. Wang Pé não ousaria desobedecê-lo. Quando o burro louco mordeu Wang Vesícula, esperávamos assistir a outro espetáculo daqueles, mas Wang Pé não desferiu uma única chibatada. Pegou um punhado de cal da beira da estrada e passou na cabeça da filha, em seguida a carregou para dentro de casa. Poupou o burro, mas deu uma chicotada na mulher e um pontapé no filho. Apontávamos para aquele burro marrom enquanto fazíamos comentários. Era tão magro que mostrava os ossos; as covas dos olhos eram tão fundas que caberia um ovo em cada uma. Tinha um olhar triste, zurrava de um jeito que às vezes parecia estar chorando. Não conseguíamos entender como um burro magro daquele podia ter tanta força. À medida que falávamos, íamos chegando perto dele. Wang Pé descansava a pá, encarava-nos cheio de fúria e corríamos assustados. Aos poucos, o monte de carvão diante da cozinha da escola crescia e a carga da carroça diminuía. Puxamos o ar com o nariz, todos ao mesmo tempo, porque farejamos um aroma diferente. Era um cheiro parecido com o de resina de pinheiro, ou de batata assada. O olfato levou nossos olhos até aquele monte de carvão brilhante. Wang Pé tocou os animais e afastou-se da escola. Em vez de sair atrás da carroça, como sempre fazíamos, só para matar a vontade de pular para cima dela, indiferentes ao risco de levar uma chicotada na cabeça, ficamos com os olhos fixos no monte de carvão e nos aproximamos dele devagarzinho. Velho Wang, o cozinheiro, passou carregando uma vara nos ombros, com um balde d’água pendurado em cada ponta. Seu corpo balançava. A filha dele, Wang Renmei, também era nossa colega de escola, e mais tarde se tornaria minha esposa. Era uma das poucas crianças que não receberam o nome de partes do corpo, porque o cozinheiro era um homem culto. Tinha sido diretor da granja de uma comuna, mas perdeu o cargo e foi mandado de volta para a aldeia porque certa vez falou algo que não devia. Velho Wang nos olhou desconfiado. Achava que talvez quiséssemos entrar na cozinha para roubar comida, quem sabe? Enxotou-nos dali: “Fora, seus pirralhos! Aqui não tem nada para vocês, vão para casa mamar nas suas mães”. Claro que ouvimos o que ele disse, até chegamos a considerar a sugestão, mas percebemos que ele estava só ralhando com a gente. Tínhamos entre sete e oito anos, quem é que mama nessa idade? Além do mais, ainda que quiséssemos, nossas mães eram umas mortas de fome, tinham os peitos colados nas costelas, como é que sairia leite dali? Ninguém foi discutir o assunto com Velho Wang. Ficamos debruçados sobre o monte de carvão, parecendo geólogos amadores diante de uma nova descoberta; farejávamos como cães à procura de comida em meio ao entulho. Antes de continuar, é preciso agradecer a Chen Nariz e também a Wang Vesícula. Foi Chen quem primeiro pegou um pedaço de carvão, colocou-o diante do nariz e cheirou. Franziu a testa como quem reflete sobre alguma questão profunda. Tinha um nariz enorme, do qual adorávamos caçoar. Depois de refletir por um momento, ele arremessou contra uma pedra maior o carvão que tinha na mão. O carvão se partiu com um ruído e exalou aquele cheiro. Catou uma lasquinha, seguido de Wang Vesícula, provou com a ponta da língua, virou os olhos e voltou-se para nós. Vesícula fez o mesmo: lambeu o carvão e olhou para nós. Depois se entreolharam, sorrindo, com muito cuidado e, em fortuita sincronia, mordiscaram um pedacinho, mastigaram, depois morderam mais um pedaço e mastigaram com força. Seus rostos transbordavam de excitação. O narigão de Chen Nariz ficou vermelho, orvalhado de suor. O narizinho de Wang Vesícula estava preto, coberto de cinzas. Ouvíamos, encantados, o som que faziam ao mastigar. Víamos, assombrados, eles engolirem o carvão. E engoliram mesmo. Ele disse em voz baixa: “É gostoso, pessoal!”. Ela gritou com a vozinha fina: “Venha logo, meu irmão, vamos comer!”. Ele pegou outro pedaço e mastigou com mais força ainda. Ela tomou um pedaço maior com sua mãozinha e deu a Wang Fígado. Imitando-os, partimos o carvão, pegamos uma lasca e mordiscamos para sentir que gosto tinha, e até que era bom, apesar de um pouco áspero. Generoso, Chen Nariz cou um tipo de carvão: “Pessoal, comam deste, que é gostoso”. Ele tinha na mão uma pedra translúcida, amarelada, parecida com âmbar: “Este aqui tem gosto de resina de pinheiro”. Na aula de ciências, aprendemos que o carvão se formou a partir de florestas soterradas há muitos séculos na crosta terrestre. O professor de ciências era o diretor da nossa escola, Wu Jinbang. Não acreditamos nele, nem na cartilha. As florestas são verdes, com poderiam se transformar em carvão preto? Achávamos que o diretor e a cartilha estavam falando bobagem. Só quando descobrimos carvão com gosto de resina de pinheiro é que percebemos que nem o diretor, nem a cartilha estavam tentando nos enganar. Quase todos os trinta e cinco alunos de nossa turma se encontravam ali, com exceção de algumas meninas. Cada um de nós segurava um pedaço de carvão, que íamos mordendo e mastigando com grande ruído. Em cada rosto se via uma expressão de deslumbramento e mistério. Era como se estivéssemos num teatro de improviso, ou envolvidos em algum jogo esquisito. Xiao Lábio Inferior pegou uma lasca de carvão, olhou-a de todos os ângulos com cara de desprezo e não comeu. Não comeu porque não tinha fome e não tinha fome porque seu pai era o zelador do armazém de grãos da comuna. O Velho Wang, cozinheiro, ficou estarrecido. Saiu correndo com as mãos cobertas de farinha. Nossa, ele tinha as mãos cobertas de farinha! Naquela época, a cantina só atendia ao diretor da escola e ao coordenador pedagógico, além de dois diretores de comuna lotados na aldeia. O Velho Wang gritou espantado: “O que estão fazendo? Estão… comendo carvão? E isso lá se come?”. Com sua mãozinha miúda, Vesícula ergueu um pedaço e ofereceu, numa voz macia: “Tio, é uma delícia, experimente!”. O Velho Wang abanou a cabeça e disse: “Wang Vesícula, você, uma menina tão delicada, está seguindo o mau comportamento desses marmanjos?”. Vesícula deu mais uma mordida e disse: “Mas é gostoso mesmo, tio”. Era fim de tarde, um sol vermelho deitava-se no poente. Os dois diretores de comuna que sempre faziam suas refeições ali chegaram de bicicleta.
Eles também ficaram olhando para nós. Velho Wang tentava nos enxotar agitando uma vara. O diretor Yan — parece que era vice-secretário — mandou o cozinheiro parar com aquilo. Fazendo cara feia, acenou com a mão, deu meia-volta e se meteu na cozinha.
terça-feira, março 23
Foto #3: Molduras
Era, de facto, muito bonita a minha mãe. Apesar de a fotografia ser a preto-e-branco, adivinha-se o cabelo arruivado e os olhos esmeralda das heroínas descritas pela Jane Austen. As sombras realçam o rosto oval, o pescoço alto, tranças enroladas à volta da cabeça com um laçarote de cada lado. Tirei a fotografia nas vésperas de ir para o Brasil, tinha 11 anos, 1950, 11 anos e lá fui eu sozinha para estudar no Brasil, quem numa aldeia ia além da quarta classe?, os rapazes ainda podiam fazer o seminário, mas uma rapariga… o tio Alfredo que vivia em São Paulo bem recebeu o dinheiro que o meu pai lhe deu para os meus estudos, mas pôs-me a lavar pratos, ainda lá fiquei dois anos, a sorte foi o João Candeias ter-me levado ao consulado de Portugal, eu não tinha dinheiro para regressar, mesmo que tivesse não saberia como comprar a viagem, pouco mais era do que uma criança. Na fotografia, a compostura da minha mãe e a solidez do seu olhar atiram-na para o início da idade adulta. A adolescência é uma invenção muito recente.
No quadro, os corpos existem apenas do peito para cima, lado a lado, sobressaindo de uma nuvem cinzenta que esfuma as sobreposições dos ombros. O resultado é uma gigante minhoca heptacéfala com olhares desencontrados. Do lado direito da minha mãe, está o pai dela. O nivelamento dos rostos não permite revelar quão alto era o meu avô Venâncio. Um homem bonito com orelhas de abano, casaco, colete, gravata. Parece esculpido em madeira. Foi um homem mau, confessa a minha mãe. A minha avó Marquinhas está do lado esquerdo da minha mãe. O talento do fotógrafo não conseguiu disfarçar-lhe a fealdade da monocelha, do nariz adunco, dos lábios finos, mas o que mais impressiona é a sua tristeza. Sempre a conheci de luto, perdeu dois filhos antes de eu nascer, lamenta a minha mãe, voltou a perder outro já eu andava por cá, isto contando só os nascidos, que muitos foram os abortos que a pobrezinha teve, ainda por cima o que o meu pai lhe batia, graças a Deus o teu pai nunca me bateu. Para a minha mãe, um marido bater ou não na mulher é o resultado de a vida ser uma roda de sorte e azar, não tem que ver com crime ou com respeito e amor. Ao lado da avó Marquinhas está a sua outra filha, a irmã da minha mãe, a minha tia Odete. A fotografia apresenta-a ainda criança, terá uns 7 anos, um cabelo penteado com o risco ao lado, farto e liso, negro, cortado a direito pouco acima dos ombros. O vestido claro não lhe aligeira o olhar pesado de quem pressente um trágico destino, Sofreu tanto e morreu tão nova, exclama a minha mãe.
A emoldurar a família nuclear, existe um casal do lado direito e uma mulher do lado esquerdo. O homem tem cabelo e bigode brancos, mas uma cara jovem, apesar de rude, Acho que eram os padrinhos da minha mãe, o Lopes e a mulher, como é que ela se chamava?, tem uma camisa muito branca com gola subida de folhos, medalhão com a cruz de Cristo, cabelo apanhado. A mulher do lado esquerdo da minha tia Odete tem feições vagamente familiares, olhos escuros, nariz demasiado grande, rosto baço.
Ultimamente a minha mãe deixa-se ficar a olhar para o quadro, Gostava de saber quem são aquelas pessoas, têm de ser importantes para estarem ali, diz, o quadro foi feito em Lisboa, a Amelinha, a filha do dr. Cabral, trouxe as fotografias e mandou-o fazer, a minha mãe vendeu alqueires de trigo às escondidas do meu pai para arranjar dinheiro com que o pagar, quando recebeu o quadro embrulhou-o em lençóis e escondeu-o numa das arcas da sala de entrada, se o meu pai tivesse descoberto que ela tinha gasto dinheiro com isto, dava-lhe uma tareia de criar bicho, eu tinha voltado já do Brasil quando a Amelinha chegou de Lisboa com o quadro, nos dias em que o meu pai ia à feira do gado de Mirandela ou a outra lonjura dessas, a minha mãe tirava-o da arca, desembrulhava-o e ficávamos as três, a minha irmã, a minha mãe e eu a olharmos para ele, gostávamos de passar a mão na moldura de madeira, aqueles repenicados de metal brilhavam mais do que a prata, era o nosso segredo, como é que esqueci quem é aquela gente?
Não é de agora que a minha mãe não sabe quem eles são. Encontrei o quadro no fundo de uma arca, no início dos anos 80, quando entrei à socapa na casa dos meus avós, que estava para obras, depois de ter sido vendida a um emigrante francês. Já então a minha mãe se interrogou, Como é que esqueci quem são estes? Haviam passado mais de duas décadas desde a última vez que, juntas, a minha mãe, a minha avó e a minha tia se haviam visto refletidas no vidro do quadro. Até esse dia, talvez o quadro nunca tivesse chegado a conhecer outro repouso que não o do sombrio fundo da arca.
Três desconhecidos vigiam-me. Ou protegem-me. É difícil distinguir uma coisa da outra. Três desconhecidos. Nesta casa. Desde sempre. Na casa a que eu voltei. A casa que era dos meus pais. Depois da minha mãe. E agora? De quem é esta casa, agora?
segunda-feira, março 22
"Adeus, futuro": um clássico
As duas pessoas que atendiam ao balcão estavam tão familiarizadas com a cola Cisne, os guaches Pelikan, o papel Cavalinho e umas borrachas muito ásperas a milhas de cheirarem a morango como com o Ford Anglia em miniatura que faltava na colecção de Dinky Toys do meu irmão ou o escafandro do Action Man que acabara de chegar; e, quando a minha avó, na vizinhança de um aniversário, lhes perguntava por um livro que fosse bom para um rapazinho de 9 anos, também não tinham hesitações em aconselhar um dos volumes daquela colecção de biografias com capa dura que incluía Lincoln, Pasteur, Marie Curie e muitas outras personalidades. Mesmo não se tratando de gente de letras, as pessoas que então vendiam livros sabiam, regra geral, o que estavam a vender.
Já eu era estudante universitária, e de letras, quando tive de responder a um apertado inquérito sobre as minhas leituras numa livraria-galeria das Avenidas Novas para conseguir trazer para casa Comunidade, de Luiz Pacheco. Ao que parece, era o último exemplar que existia na loja, e o livreiro decidira que só o venderia a quem o merecesse (ufa!). Mas essa atenção informada deteriorou-se muito com a industrialização da edição e a substituição das livrarias independentes por hipermercados e cadeias de lojas despersonalizadas. Hoje em dia, não é assim tão raro termos de soletrar o nome de um autor (mesmo conhecido) para o funcionário da livraria o introduzir no computador e nos dizer se, afinal, tem ou não o livro que procuramos. E a ignorância grassa: um dia destes, mandaram-me procurar Octavio Paz na estante dos autores portugueses (lá soar soa) e há uns tempos, numa livraria do centro da capital, um senhor ao meu lado perguntou à funcionária se tinha alguma coisa de Charles Dickens e a reacção imediata dela foi: "Isso é o quê?"
Ainda apalermado com a pergunta, o cliente lá replicou: "Ó minha senhora, é um clássico." E, diante daquela explicação, a rapariga apontou então uma mesa próxima e disse-lhe: "Procure ali." Não resisti a ver o que havia na mesa: Sófocles, Ovídio, Lucrécio, Platão... Adeus, futuro.
Como as obras de Shakespeare podem nos ajudar a sobreviver à pandemia
O veterano teatrólogo Amir Haddad abre o livro com bom humor, garantindo que Shakespeare é o seu “sistema imunológico”. Já a professora Emma Smith, da Universidade de Oxford, prega o poder regenerador das comédias — enquanto outros coautores recomendam para os nossos dias as tragédias, especialmente “Rei Lear” e “Hamlet”, citadas à exaustão, sempre com interpretações instigantes. São peças que provocam descobertas a cada leitura.
Breve e marcante é o comentário de Andréa Pachá, contando que obras como “Romeu e Julieta”, sobre o aprisionamento do “amor eterno na gaiola do cotidiano”, propiciam fundamentos mais humanos às suas decisões como juíza em varas de família. Essa necessidade da aplicação prática da “filosofia do Bardo” no meio jurídico é tema também da procuradora federal Maria Candida Kroetz.
domingo, março 21
Sobreviver é preciso
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Jamais imaginei que usasse um dia versos de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, para ilustrar uma crônica. Nunca pensamos tanto na morte e valorizamos tanto a vida. A vida que passa diante dos olhos, no voo da borboleta, no mato acumulado em volta da árvore e que dá flor, no miado do gato de rua, sempre à mesma hora, no pio dos pássaros que visitam o telhado, nos urubus brincando de ciranda entre as nuvens, nas elegantes gaivotas e seu sóbrio silêncio. A vida que se reafirma na graça dos bebês, na inocência dos pequenos, na beleza dos jovens, na tenacidade dos adultos, na persistência dos idosos.
A morte também está no obituário do jornal de todo dia, cada vez com mais colunas e nomes de todas as idades e profissões. Em conversas com os motoristas de táxi, quase sempre sobre perdas: o salário que não cobre as despesas, os parentes desempregados, a aposentadoria que ainda demora, o medo que representa cada passageiro, os boatos assustadores.
Assim sobrevivemos um ano e iniciamos outro, ainda sem certezas. Hoje devo tomar a primeira dose da vacina, defendendo a vida como Severina. Ela ainda me encanta, apesar dos altos e baixos, atualmente, mais baixos que altos. Ainda pulsa em cada ação, desejo, sonho, na fome, na sede, na saudade. O outono vem chegando, com sua brisa fresca e cores amenas. Tempo considerado de recolhimento, mesmo para nós, há tanto recolhidos. Se o presente não nos pertence, o futuro pertencerá. Há que se ter esperança.
O cheiro dos livros
Bibliófilos reconhecem-se uns aos outros por certos gestos, vícios, bizarrias. Você vê um sujeito acariciando dissimuladamente a capa de um livro — e logo desconfia. Vê-o abrindo um volume com mal disfarçada volúpia; aproximando o rosto para o cheirar — e aí tem a certeza.
Volto a pensar nos manuscritos do deserto da Judeia, e nos lentos escribas, agachados, desenhando palavras em papiros, que depois enrolavam e guardavam cuidadosamente. Imaginariam eles que as suas palavras chegariam tão longe? O meu alento vem dessa capacidade de resistência da palavra escrita.
José Eduardo Agualusa