domingo, maio 2

Salman Rushdie : 'Prefiro saber onde estão os babacas'

"Dom Quixote", de Miguel Cervantes, publicado originalmente em 9 de maio de 1605 com o título "As aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha", é considerado o primeiro romance da literatura universal, inaugurando o gênero literário que abraçou a modernidade e deixou o mundo antigo para trás. Sua influência está expressa na obra de inúmeros autores ao longo do tempo, tais como Dickens, Flaubert, Kafka, Borges e Nabokov.

A jornada do nobre cavaleiro e seu fiel escudeiro Sancho Pança é também a inspiração do mais recente livro do escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie, “Quichotte”, lançado na sexta-feira no Brasil. Não estamos mais em La Mancha, mas nos Estados Unidos de Donald Trump. O nobre errante, na visão de Rushdie, é um velho e atrapalhado vendedor de produtos farmacêuticos, Ismail Smile, que após perder o emprego se lança em longa viagem pela América na companhia do filho adolescente imaginário, Sancho.

Ismail espera conquistar o coração de uma jovem estrela de TV chamada Salma (de origem indiana, como ele), cujo programa de TV a transformou em uma espécie de “Oprah 2.0”. Ele nunca sequer a viu pessoalmente, mas envia cartas românticas com o pseudônimo “Quichotte”, com a vã esperança de que “o amor encontrará uma maneira” de aproximá-los.

Assim como o fidalgo de Cervantes enlouqueceu depois de ler uma enxurrada de romances de cavalaria, Quichotte teve o cérebro consumido pela cultura trash da TV e das redes sociais. Na insana jornada pelo país, em vez de moinhos de vento eles se deparam com violência, racismo, viciados em opióides, grilos italianos e armas falantes.

O resultado é uma poderosa sátira à sociedade americana, bem ao melhor estilo de Salman Rushdie. De seu apartamento em Manhattan, por videoconferência, o autor falou ao GLOBO.

Qual a influência de Dom Quixote em seu trabalho e qual o motivo da inspiração para escrever um romance que se passa nos Estados Unidos de hoje?
Aconteceu por acidente. Os dois romances que escrevi antes são ambientados na cidade de Nova York e então eu quis testar fazer um romance de estrada em que pudesse dirigir pelo país e relatar os acontecimentos. Até cogitei um livro de não ficção. Por uma série de coincidências, fui convidado a escrever algo sobre Cervantes e, mais de vinte anos depois, reli o seu grande livro e decidi que não renunciaria ao uso da imaginação, parti para a ficção, usando os personagens de Dom Quixote como modelo. Mas o personagem Sancho no meu livro tem mais a ver com Pinóquio (do romance “As aventuras de Pinóquio”, do escritor italiano Carlo Collodi) do que com o próprio Sancho Pança.

“Cândido”, de Voltaire, foi outro livro considerado no planejamento do romance. Queria que o meu Quichotte tivesse esperança mesmo diante de todas as dificuldades na América (racismo, violência, drogas, fake news). E ele tem uma esperança absurda, a começar pela garota com a qual não tem a menor chance, mas acredita que o amor encontrará um caminho.

A história se passa em uma época que você chama de "Era do Tudo-Pode-Acontecer". Poderia explicar?
Tem coisas do dia a dia que meu pai certamente acharia que é ficção científica. A começar pelo fato de termos um telefone nas mãos que, em tese, nos dá acesso a todas as informações do mundo.

Quando comecei a escrever este livro, por uma coincidência, fui convidado a um almoço em que um dos convidados era Elon Musk. Alguém perguntou a ele: “Ir a Marte é mesmo uma possibilidade? Quanto tempo vai demorar?”. Ele respondeu: “Sim, em sete anos”. Sete anos é tipo depois de amanhã. Coisas que pareciam impossíveis anteontem vão acontecer depois de amanhã.

A pandemia veio do nada e em questão de duas semanas mudou o mundo inteiro. Vivemos em uma época em que Donald Trump pode ser eleito e derrotado. Se você tivesse me descrito uma tentativa de golpe político em Washington iniciado pelo presidente dos Estados Unidos eu não acreditaria. Há alguns anos, Philip Roth escreveu um romance chamado "Complô contra a América", em que ele imagina como seria se o aviador fascista de extrema direita, Lindbergh, derrotasse Roosevelt na eleição presidencial. Quando li, pensei, isso jamais aconteceria na América. Roth estava certo e eu, errado.

O crítico americano Harold Bloom escreveu: “Não podemos conhecer o objeto da busca de Dom Quixote a menos que sejamos quixotescos”. Qual é a busca do seu Quichotte?
Na literatura persa há um famoso poema narrativo chamado "A Conferência dos pássaros", em que um grupo de trinta pássaros viaja buscando o deus dos pássaros. No caminho eles têm que atravessar uma série de vales alegóricos, passando por alguns testes morais. Peguei emprestada a ideia da jornada metafórica dos sete vales e levei para o meu Quichotte, em que os personagens fazem uma jornada física. O protagonista sente que para ganhar a mão da amada tem que ser digno dela, tem que passar pelos vales em busca de autoaperfeiçoamento. Foi também uma maneira de combinar algo das culturas Oriental e Ocidental. As duas jornadas, física e metafísica, se unem.

Há duas narrativas no livro, a história de Quichotte e a história do autor que está reescrevendo a história de Dom Quixote. É correto dizer que o romance é sobre a arte do romance?
Inicialmente pensei que o romance seria apenas sobre o meu Quichotte e seu Sancho e a jornada pela América em busca desse amor impossível. Em um certo ponto, outro personagem surgiu. No passado, sempre desaprovei metaficção, dizendo às pessoas: não escrevam livros sobre pessoas escrevendo livros. Então me vi fazendo exatamente o que digo às pessoas para não fazer. De certa forma, isso me permitiu dizer algo sobre a natureza do ato de criação. Além disso, as vidas do autor imaginário e seu personagem têm ressonâncias internas, ambos têm problemas com a irmã. Não foi minha escolha inicial ter duas narrativas. Acontece que, às vezes, os personagens se apoderam de você.

O senhor vive em Nova York há mais de 20 anos e convive com a elite intelectual do país. NY está longe de representar os Estados Unidos. É correto dizer que seu Quichotte é uma sátira da sociedade americana, ou pelo menos uma crítica ao consumo de cultura trash na televisão e nas redes sociais?
Sim, até certo ponto é um romance satírico. Discordo que Nova York não seja representativa da América. Vamos lembrar que 82 milhões de pessoas votaram contra Trump. Ele sempre fala sobre seus 72 milhões de votos, mas em qualquer eleição democrática, uma margem de votos de 10 milhões é grande. A ideia de que o mundo liberal é uma espécie de bolha é o oposto da verdade. Existem maiorias liberais, em coisas como controle de armas e assim por diante. Aborto é 50/50. Mas na maioria dos outros assuntos, há maiorias liberais e isso é o que se vê na América.

É claro que há um núcleo duro de pessoas de extrema direita que são perigosas, como vimos no ataque ao Capitólio em janeiro. Não estou convencido de que eles representam a verdadeira América. Na verdade, até a eleição, não sabia dizer se Trump era uma aberração ou se representava o novo normal. Agora há alguns motivos para acreditar que pode ter sido uma aberração.

Uma das razões pelas quais eu não mencionei o nome de Trump no livro é porque queria deixar claro que ele não é a causa das coisas que estão acontecendo na América. Ele é o efeito. As divisões na sociedade estavam lá antes dele. A descrença na verdade, uma das maldições da América agora, começou antes dele. Tudo começou com a internet.

Redes sociais estão diretamente associadas à divulgação de desinformação. Qual sua opinião sobre fake news e por que tantas pessoas não acreditam hoje em ciência, na grande mídia ou nas instituições?
É assustador. Acho que a descrença na ciência é a coisa mais assustadora porque hoje vivemos um verdadeiro milagre científico, vacinas criadas em menos de 12 meses. É interessante que a vacina Pfizer tenha sido seja desenvolvida por um casal de imigrantes turcos – num momento de tanto ódio aos imigrantes, eles produzem uma vacina para salvar o mundo. É realmente trágico que existam pessoas que desacreditam, que acham que o Bill Gates colocou um microchip na vacina que poderá controlar o seu cérebro.

Meu plano inicial era ser cientista. Estudante, minhas melhores matérias eram Matemática e Física. Só depois me rebelei e migrei para as artes. Muito mais do que qualquer romancista, os cientistas são os gênios do nosso tempo e seria bom se fossem reconhecidos como tais.

O senhor assinou a carta aberta publicada pela revista Harper’s, um texto sobre justiça e debate aberto pedindo o fim da cultura do cancelamento, publicada em julho do ano passado. No que diz respeito à liberdade de expressão, o senhor acha que pessoas têm o direito de ofender?
Sim, essa sempre foi minha opinião. O problema está em ambos os lados do espectro, pessoas de um lado tentando cancelar pessoas do outro lado e vice-versa. É muito importante em qualquer sociedade livre que as pessoas possam dizer coisas de que você não gosta.

As sociedades democráticas estabelecem limites de formas diferentes. No Reino Unido, por exemplo, há o Race Relations Act, que torna ilegal fazer declarações abertamente racistas. Você pode ser levado ao tribunal ou para a prisão. Quando morei na Inglaterra, nunca tive problema com isso. Pensava, ok, por que o racista deveria se safar? Nos Estados Unidos, a Primeira Emenda traça um limite diferente e permite muitas falas que o Race Relations Act britânico proibiria. Prefiro a ideia da Primeira Emenda porque acho melhor saber onde estão os babacas.

Prefiro a expressão à supressão. Quando você suprime as coisas, elas adquirem uma espécie de glamour. Deixe-os falar, aí saberemos quem eles são, onde estão e então podemos argumentar contra eles e derrotá-los.

Havia um filme feito sobre mim no Paquistão, que me fez parecer uma pessoa horrível – os heróis eram as pessoas que tentavam me matar. Quando o filme chegou ao Ocidente, foi banido porque era obviamente difamatório. Fui eu quem lutou para permitir que fosse exibido. A partir do momento em que deixou de ser censurado, desapareceu, porque era um filme muito ruim e ninguém queria ver.

É fácil permitir a liberdade de expressão de pessoas com as quais você concorda ou é indiferente. A defesa da liberdade de expressão começa quando alguém diz algo que você realmente não gosta. Nesse ponto você descobre se acredita na liberdade de expressão ou não.

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