Mas que cena tão condizente com uma crônica do Rubem Braga, pensei. Um entardecer, duas crianças, uma mulher com o joelho tocando o chão, as mãos em concha guardando um beija-flor.
Na crônica do Rubem poderia aparecer uma senhora com embrulho e bolsa, que gritaria Beija-Flor!, como se fosse um meteorito. E os passantes, cientes da irrelevância de seus destinos, descobririam a vocação para multidão, ao se aglomerar em torno do passarinho. Isso despertaria a atenção da polícia, que chegaria para também averiguar os boatos de um comunista cuspidor da bandeira nacional no cerne do povaréu.
Nesta crônica a rua permanece vazia e faz um frio de torturar carioca (dezesseis graus). Passarinho protegido pelas minhas mãos, caminhamos os três em silêncio para a casa, cientes de um prazer aconchegante, a ilusão de salvar o mundo através do resgate de um beija-flor.
Na crônica do Rubem poderia aparecer uma senhora com embrulho e bolsa, que gritaria Beija-Flor!, como se fosse um meteorito. E os passantes, cientes da irrelevância de seus destinos, descobririam a vocação para multidão, ao se aglomerar em torno do passarinho. Isso despertaria a atenção da polícia, que chegaria para também averiguar os boatos de um comunista cuspidor da bandeira nacional no cerne do povaréu.
Nesta crônica a rua permanece vazia e faz um frio de torturar carioca (dezesseis graus). Passarinho protegido pelas minhas mãos, caminhamos os três em silêncio para a casa, cientes de um prazer aconchegante, a ilusão de salvar o mundo através do resgate de um beija-flor.
Numa crônica do Rubem, as duas crianças colariam as cabeças em cima do bichinho, disputando o controle do conta-gotas com água e açúcar. A disputa ficaria guardada por anos, para retornar como consolo doído, pedaço de infância que se manifesta porque há contraste, na vida sem a graça certa dos adultos.
Nesta crônica a menina enjoa do beija-flor e se tranca no quarto, onde liga o iPad e procede com a formação em música ruim americana. O menino perambula pela sala, pensando no que mais pode bagunçar.
Nesta crônica a menina enjoa do beija-flor e se tranca no quarto, onde liga o iPad e procede com a formação em música ruim americana. O menino perambula pela sala, pensando no que mais pode bagunçar.
“Gabriel, se você não subir para tomar um banho eu vou dar um grito” grita a mulher com a mão na cintura, a essa altura já sem combinar com uma crônica do Rubem, e junto à panela suja, pia cheia, pacote de biscoito aberto, quinze copos de água na sala e um rastro de meias e sapatos como um tapete conceitual.
Se reencarnação existir, se eu puder escolher qualquer coisa para voltar, eu gostaria de ser mulher ou criança numa crônica do Rubem Braga. Uma vida breve – uma dúzia de parágrafos – mas envolta em lirismo, e sem conter sequer uma faca suja de manteiga. Na vida seguinte eu pegaria pesado, voltaria, sei lá, presidente do Brasil ou delegada da Delegacia de Atendimento à Mulher.
Numa crônica, as duas crianças colariam as cabeças em cima do bichinho, disputando o controle do conta-gotas com água e açúcar.
Não se fazem mais lirismos como antigamente, mas eu aceito de bom grado esse que me tocou, o de um beija-flor machucado se recuperando numa caixa de sapatos da Vans, junto à louça acumulada e de um telefone pessimista, que só me informa do pior. Banho tomado, as crianças colaram as cabeças sobre a caixa de sapatos e fizeram cafuné no beija-flor. E eu pensei, olha ali de novo, uma cena de uma crônica do Rubem, alegrando o meu fim de dia.
Numa crônica, as duas crianças colariam as cabeças em cima do bichinho, disputando o controle do conta-gotas com água e açúcar.
Não se fazem mais lirismos como antigamente, mas eu aceito de bom grado esse que me tocou, o de um beija-flor machucado se recuperando numa caixa de sapatos da Vans, junto à louça acumulada e de um telefone pessimista, que só me informa do pior. Banho tomado, as crianças colaram as cabeças sobre a caixa de sapatos e fizeram cafuné no beija-flor. E eu pensei, olha ali de novo, uma cena de uma crônica do Rubem, alegrando o meu fim de dia.
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