seja mesmo uma boa maneira de passar o tempo, já estou cansado de bater pernas pelos lugares de sempre e só ver essa tristeza de casas vazias, janelas e portas batendo ao vento, mato crescendo nos pátios antes tão bem tratados, lagartixas passeando atrevidas até em cima dos móveis, gambás fazendo ninho nos fogões apagados, se vingando do tempo em que corriam perigo até no fundo dos quintais.
Pensei que ia ser fácil escrever a nossa história, estando os acontecimentos ainda vivos na minha lembrança. Mas foi só eu me sentar aqui, pegar o lápis e o caderno, e ficar parado sem saber como começar. Mamãe diz que não vai ler os meus escritos porque não tem cabeça para leitura e também porque já sabe
tudo melhor do que eu. Está claro que é mais um truque para me deixar à vontade. Ela é esperta, pensa em tudo. Preciso ter muito cuidado para não deixar o caderno esquecido por aí, principalmente se eu resolver falar no meu procedimento em casa de tio Baltazar.
Será que eu estaria aqui escrevendo se tio Baltazar não tivesse vindo para cá com a ideia de fundar a Companhia? Não estou pensando que a culpa foi dele; a ideia era boa e entusiasmou todo mundo. Mas a história que vou contar começa mesmo é com a chegada de tio Baltazar. Quem podia imaginar naquele tempo de alegria e festa que um sonho tão bonito ia degenerar nessa calamitosa Companhia Melhoramentos de Taitara? Pobre tio Baltazar, como estaria sofrendo se ainda vivesse. Acho que foi pensando no sofrimento dele que mamãe não chorou muito quando finalmente recebemos a notícia.
Eu tinha onze anos quando tio Baltazar chegou da primeira
vez. Estava casado de novo, mas veio sozinho e com fama de
muito rico. Relembrando aqueles tempos, meu pai me disse que
depois de alguns dias aqui tio Baltazar pensou em desistir da
Companhia e voltar. Agora eu pergunto de novo: se ele tivesse
voltado naquela ocasião, será que ainda estaria vivo? E se ele não
tivesse fundado a Companhia, será que teríamos passado por tudo o que passamos? Mas perguntar essas coisas agora é o mesmo
que dizer que se o bezerro da vizinha não tivesse morrido ainda
estaria vivo. Estou aqui para falar do que aconteceu, e não do
que deixou de acontecer.
Tio Baltazar. Um nome, a fama, muitas fotografias — assim
era que eu o conhecia. Parece que ele achava absolutamente
necessário a pessoa tirar retrato todo mês, ou toda semana. Frequentemente mamãe recebia uma fotografia dele tirada em estúdio de retratista ou ao ar livre por algum amigo.
Lembro-me especialmente de uma, tirada ao volante de um
lustroso carro esporte que os entendidos aqui diziam ser de fabricação italiana e muito caro: tio Baltazar aparecia com o braço
esquerdo descansando na porta do carro, o cabelo repartido no
meio, camisa de gola aberta dobrada sobre o paletó xadrez igual
aos que os artistas de cinema estavam usando, piteira com cigarro
na boca, sorriso de rico no rosto simpático. Essa fotografia, com
dedicatória para mamãe, fez o maior sucesso entre nossos amigos, além de vê-la muitos queriam mostrar a outros. Entre zelosa
e vaidosa, mamãe emprestava; mas se a pessoa demorava a devolver, eu recebia a missão de ir buscá-la, um documento daquela
importância não podia passar muito tempo em mãos profanas.
Se estou aqui para contar a verdade não posso esconder o
meu desapontamento quando vi tio Baltazar descendo do carro
em nossa porta. No primeiro momento pensei que fosse outra
pessoa, um amigo ou empregado. O cabelo era bem mais ralo e
não estava mais repartido ao meio, acho que porque essa moda
já tinha passado. E o rosto não era tão moço como o das fotografias. Mas o que me decepcionou mesmo, até me assustou, foi a
falta de um braço. Onde estava o braço esquerdo que descansava
na porta do carro na fotografia famosa? Vendo-o sair do carro
ajudado pelo chofer, a manga vazia do paletó metida no bolso, a
bela imagem de um tio campeão em muitos esportes virou fumaça ali mesmo. Eu já tinha visto pessoas sem perna, sem braço,
sem mão, até um homem sem nariz eu vi de joelhos ao meu lado na igreja na Semana Santa: mas não eram meus tios. Fiquei
tão decepcionado que fui me esconder no porão e nem apareci
para o jantar. É difícil entender, mas pensando no meu procedimento naquele dia parece que eu acusava tio Baltazar de ter
cortado o braço só para me humilhar diante de meus amigos.
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