Amor dá muito por aí. Dessa qualidade é que não. Amor que dura, que resiste, que desafia, risonho, contente dele mesmo, todos os obstáculos, o maior deles do cotidiano, do avesso sem graça da vida. Felizes? Onde é que existe isso? Infelizes, que a vida é mais disso.
História que assisti, por acaso, venho acompanhando desde a adolescência, que reencontro, pelas esquinas da vida, meio assustada de que continue durando, apesar de tantos e tamanhos pesares, Ele era feioso, doente, pobre. Filho de pais separados, jogado em orfanato, colégio grátis, ao acaso dos pedidos da mãe, sem recursos, valente como ninguém. Conheceu o gosto das “solitárias” de colégio, aluno gratuito, mal alimentado, triste. Acabou fraco do peito, como se dizia naquele tempo. Foi parar numa estação de cura nem sei como. Onde conheceu – parece fita de cinema! – a moça mais bonita do lugar. Uma deusa moça, de riso branco e alegre, alta, forte, rica. Nenhum dos dois teve nunca outro namorado. A família dela achou uma loucura. Era. Que futuro havia naquilo? Nenhum. Mandou-a estudar na Alemanha. Contei que eram de lá? Aquela Valquíria soberba se apaixonar pelo brasileirinho doentio, pobre e infeliz! Dois anos de Universidade em Munique, com muito esporte, dinheiro e passeios, dariam cabo no capricho. Não deram. Voltou, a carta de maioridade na mão, dizendo que sabia muito bem o que fazer com o seu nariz meio arrebitado e voluntarioso. Ele ficara aqui brigando com a vida, com os micróbios que lhe corriam o peito, estudando, trabalhando como podia. Casaram, que ela queria cuidar dele. Cuidou. Deu-lhe um par de filhos fortes, alegres, o viço dela, a inteligência, a valentia, a força escondida que ele trazia dentro do peito maltratado. Ela o contagiou da sua saúde, da sua beleza serena, da sua confiança alegre na vida. Ele esqueceu a infância ruim, a pobreza, a doença. Tinham um velho carro, duas crianças novas, foram armando a tenda aqui e ali, ao acaso da sua vida de professor. Onde armassem a barraca era bom vê-los, na vida que veio vindo. A ternura igual, contentes um do outro, a voz mansa, os gestos parecidos, engraçados, cheios de casos, fortes de terem vencido tantos obstáculos assim juntos, tranquilos, de mãos dadas. Ela sempre bonita, um bonito de árvore, de planta viçosa de curva de rio que o olhar descobre de repente. Um bonito que faz bem. Ele sarou, foi conhecer o gosto da vida que a infância lhe tinha negado, praia, sol, banho de mar, manhã de pescaria, sono de sesta, na rede, quando o vento traz do fundo da casa um cheiro morno de pomar.
Passo anos sem vê-los. Quando os vejo de novo, sempre juntos, o seu bem-querer calado parece que cresceu, dentro da terra, em que fortes raízes deram flor e sombra, fruto e calor. Agradeço, sem palavras, que continuem assim. Estão olhando vitrinas, preparando uma viagem, fazendo fila no açougue, comprando entrada de cinema ou sapatos para as crianças. Que crianças? As crianças já ficaram moços.
Foram felizes? Não sei, que a vida não é muito disso. Reveses, fracassos, trambolhões. Uma moléstia a mais pegou-o de jeito uns anos atrás. Jogou-o, quase entrevado, numa cadeira de rodas. Só pretexto para que ela pudesse servi-lo melhor, que amar também é servir, substituir-lhe as pernas que fraquejavam, os gestos desajeitados, a velha melancolia de menino enjeitado pela vida que, de vez em quando, ainda o mordia, do fundo da felicidade serena que ela lhe dera.
Vi-os de novo, num desses dias. Era um aniversário qualquer. Ela me acompanhou até a porta, amor, doçura, sofrida bondade transbordando dos olhos claros.
– Sabe que eu adoro ele? Foi a melhor coisa que a vida me deu. Não sei o que seria de mim sem ele.
Deve ser um caso de amor.
Elsie Lessa, "Crônicas de Amor e Desamor"
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