quinta-feira, maio 6

Um gato à chuva

Apenas dois americanos estavam hospedados no hotel. Não conheciam nenhuma dos hóspedes com quem se cruzavam na escada, sempre que iam para o quarto ou de lá saíam. Instalados no segundo andar, a janela dava para o oceano e permitia abranger o quadro do jardim público com o seu monumento aos Mortos da Grande Guerra. Desde que fizesse bom o tempo encontrava-se sempre um pintor com o respectivo cavalete, neste jardim, onde havia bancos verdes distribuídos sob palmeiras imponentes O talhe esguio destas árvores, num fundo alacre pelo colorido dos hotéis , despertava o interesse dos artistas .Grande percentagem de italianos vinha de longe ver o monumento que era de bronze e luzia quando molhado. Nesta altura chovia. A água gotejava das palmeiras e formava poças nas veredas de saibro. O mar rolava ao longo da praia sob a chuva , investindo e retirando-se para voltar a quebrar-se de encontro à areia, atrás da cortina da chuva. Os automóveis , que estacionavam junto do monumento, tinham desaparecido. Em frente , um criado postado à entrada do café contemplava a praça solitária.

Voltaram pela vereda e entraram. A criada deteve-se um pouco para fechar o guarda-chuva. Quando a americana passou diante do escritório, o hoteleiro, da sua mesa, cumprimentou-a novamente. Ela sentiu um aperto na garganta, e , perante aquele homem alto, julgou-se muito pequena mas, ao mesmo tempo, muitíssimo importante. Por momentos, dominou-a o sentimento de ser extraordinariamente importante.

George estava outra vez a ler.

Ela foi sentar-se em frente do toucador e mirou-se no espelho de mão. Observou o perfil, primeiro de um lado, depois doutro. Em seguida a nuca e o pescoço.
- Não te parece que seria boa ideia eu deixar crescer o cabelo? – perguntou, inspeccionando , de novo, o perfil.

George reparou-lhe na nuca, desguarnecida como a de um rapaz.
George não lhe ligava. Lia o seu livro. Pela janela a mulher olhava para a praça que acabava de se iluminar.

A americana, de pé , junto da vidraça, olhava para fora. No jardim, mesmo debaixo da janela, um gato estava aninhado sob uma das mesas verdes de onde a água escorria. Encolhia-se todo para evitar a chuva.

– Vou lá abaixo e trago aquele bichano - disse a americana.

- Vou lá eu - propôs o marido , ainda na cama.

- Não, irei eu . O pobrezinho faz tudo para se abrigar debaixo de uma mesa.
O marido continuou a ler. Estava deitado com a cabeça apoiada em dois almofadões.

- Não te molhes.

Ela desceu. O proprietário do hotel levantou-se e cumprimentou-a. A sua mesa estava ao fundo do escritório, que era um compartimento escuro. Era um cavalheiro idoso e muito alto.

- Il piove – disse ela que simpatizava imenso com o hoteleiro.

- Si, si, Signora, brutto tempo. Está péssimo!

Falava de pé , no fundo do escritório, que era um compartimento escuro. A senhora nova gostava muito dele e da sua calma , quando recebia qualquer reclamação. Apreciava –lhe o porte digno, a afabilidade e, enfim, a maneira como compreendia o cargo. Admirava-lhe o rosto grave e idoso, as grandes mãos.
Neste estado de espírito, abriu a porta e olhou para fora. Chovia fortemente. Um homem, com impermeável de borracha, atravessava a praça deserta , em direcção ao café. O gato devia estar algures , à direita. Talvez ela pudesse seguir junto à parede, abrigada pelo telhado. Esperava no limiar , quando um guarda-chuva se abriu por detrás dela. Era a criada de quarto do seu andar.

- Não há necessidade de V.Ex.ª se molhar! – disse, em italiano e a sorrir.
Certamente fora ordem do hoteleiro, sempre atento e gentil. Resguardada pelo guarda-chuva, que a criada segurava , ela seguiu pela vereda de saibro até debaixo da sua janela. A mesa lá estava, muito verde e luzente sob a chuva, mas o gato desaparecera. A senhora sofreu uma súbita decepção!

A criada olhou-a .

- Ha perduto qualque cosa, Signora?

- Estava aqui um gato – respondeu a rapariga americana.

- Um gato?

- Si, il gatto.

- Um gato? – exclama a empregada rindo - Um gato à chuva!

- Sim, debaixo da mesa. – disse a americana. Oh! Como eu tenho empenho nele! Queria um bichano!

Quando a americana falava inglês, a expressão da criada fechava-se.

- Faça favor de vir, Signora! É preciso voltar para dentro, se não encharca-se toda!

Sim … certamente –concordou a americana.

Depois, subiu a escada e abriu a porta do quarto. George lia, estendido na cama.

- Então, encontraste o gato? –inquiriu, pousando o livro.

- Desapareceu.

- Onde se meteria?– comentou, levantando os olhos do livro.

Ela sentou na cama.

- Não supões como eu queria aquele gato! – exclamou . - Não sei porquê, mas tinha enorme empenho nele! Queria aquele pobre bicho. Que engraçado estar um gato lá fora à chuva!

- Eu gosto assim.

- Já estou tão farta dele . Estou tão farta de parecer um rapaz!

George mudou de posição na cama. Não tinha desviado os olhos dela , enquanto a ouvia.

- Tu és muito bonita! – comentou.

Ela pousou o espelho no toucador e foi até à janela olhar para a rua. A noite caía.
- Quero apanhar atrás os meus cabelos, esticá-los bem lisos, e fazer um rolo no pescoço que possa sentir perfeitamente. Quero ter um gato sobre os joelhos, que rosne quando o acaricie!

-Ah! Sim? – volveu-lhe George.

- Quero comer à mesa no meu serviço de prata e quero velas! Quero que já seja Primavera, quero escovar os meus cabelos diante do espelho! E quero uma gatinho e vestidos novos.

- Oh! Cala-te e pega num livro! – atalhou o marido. Pôs-se a ler outra vez.
Sua mulher foi olhar através da janela. Já era completamente noite e continuava a chover sobre as palmeiras.

- Mas quero um gato! Quero um gato, pronto! Quero um gato imediatamente! Se não posso ter cabelos compridos , e se não posso divertir-me, ao menos posso ter um gato!

Alguém bateu à porta.

- Avanti – disse George, erguendo os olhos .

A criada surgiu à porta. Apertava nos braços um enorme gato, cinzento como uma carapaça de tartaruga.

- Queiram desculpar. O patrão mandou-me trazer isto para a Signora.
Ernest Hemingway, “As torrentes da Primavera seguido de Um gato à chuva”

Nenhum comentário:

Postar um comentário