— Com um cego de Itambé, mestre Zé. Andei com este homem feito guia um tempão. Depois me pus homem e ele não me quis mais.
— Ah! Já sei, era aquele cego de nascença que mataram para roubar, no Oratório? Era um homem malcriado, cheio de novidades.
— Não era mau, mestre Zé. Meu pai me deu a ele, quando eu tinha sete anos. Eu digo ao senhor, foi homem bom que me ensinou muita coisa. A gente aprende muita coisa, mestre, mas só enxada é que dá feijão e farinha.
◦◦◦
Era dia de feira em São Miguel e pela estrada começava a passar gente para as vendagens. Passou o cego Torquato e parou na porta para pedir esmola. Gostava, sempre que o cego passava pela sua porta, de puxar conversa com ele.
O mestre José Amaro naquele dia queria falar. Nunca se vira na sua cara uma satisfação igual.
— Então, seu Torquato, como vai a vida?
— Que vida, mestre. Que vida pode ter um pobre cego! Ando por este mundo contando os dias. Se não fosse o amor de Deus e a caridade dos homens, já me tinha acabado, seu mestre.
— Qual, seu Torquato, o senhor ainda tem a sua família.
— Uma mãe entrevada, seu mestre, um irmão quase cego como eu...
— E o povo de Gurinhém, seu Torquato? Estão dizendo que a feira de lá está se acabando.
— É medo da tropa, seu mestre, é medo da tropa. O povo arrepunou com o tenente. É um dar sem conta. O homem é brabo mesmo. Acredite o senhor que até o padre Antônio já sofreu uma desfeita. O pobre do padre dá tudo aos necessitados. Foram dizer ao tenente que o padre andava com conversa com o homem. Ora, o padre Antônio não é criatura para esconder o que faz. Contou tudo. Estivera com o bando, conversara com o capitão, e foi por aí afora. O tenente deu o mal dentro e disse o diabo para o reverendo. E ouviu o diabo. O padre Antônio é manso assim, como se vê, mas na hora ninguém faz dele o que quer. Gritou para o tenente, o tenente gritou para ele. Eu só sei é que ele tomou o trem no Pilar, e foi à cidade. As folhas da Paraíba deram. Eu ouvi no Pilar um sujeito lendo uma crítica do jornal. O padre é duro. O tenente está fazendo o diabo. É por isto que o povo está correndo da feira. Surra de tropa não é brincadeira.
— Eu quero ver esta valentia é com o capitão. No Ingá foi aquilo que se viu.
— Eu não sei de nada não, seu mestre. Sou um pobre cego, vivo do coração dos outros. Uma coisa porém eu digo: este capitão nunca me fez mal. Uma vez eu vinha com o meu guia na estrada nova. Era na boca da noite. Voltava do Sapé e, quase chegando no Maraú, me senti cercado de gente. O meu guia me disse baixinho: “É cangaceiro, seu Torquato.” E era mesmo. Me deram dinheiro. Nunca tive tanto dinheiro na mão. O capitão Antônio Silvino me chamou de parte para saber o que se falava dele na feira do Sapé. Eu disse tudo. Falei de Cazuza Trombone que estava com muitas praças dentro de casa. E de Simplício Coelho que contava goga na loja, dizendo a Deus e ao mundo que na mesa dele cangaceiro não se sentava. Ah!, contei. Este Simplício Coelho uma vez eu estava sentado na calçada dele, tocando a minha viola, e mandou um caixeiro dizer para o pobre cego sair. Bicho malvado.
— Foi por isto que o capitão fez aquela desgraça na loja quando atacou o Sapé?
— Eu não sei por que foi. Agora, seu mestre, o senhor acha direito tratar um pobre cego como cachorro?
Apareceu a velha Sinhá com uma coité de farinha e o guia abriu o saco.
— Deus vos pague, Deus vos dê o santo reino da glória.
José Lins do Rego
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