Der Reisende ("O viajante", em tradução livre), um romance de 1938 escrito por Ulrich Alexander Boschwitz, conta a história do empresário Otto Silbermann, que foge de Berlim logo após a Noite dos Cristais, evento de perseguição aos judeus que marcou o início do Holocausto.
Muitos de seus amigos judeus haviam sido levados pelos nazistas. E Silbermann decidiu pegar uma série de trens através da Alemanha, na tentativa, sem sucesso, de deixar o país.
O autor do romance, cujo pai era judeu e a mãe protestante, na verdade fugiu da Alemanha nazista em 1935. Foi primeiro para a Suécia, depois para a Noruega e, em seguida, para a Inglaterra. Isso foi logo após a promulgação das leis antissemitas e racistas de Nurembergue, em 15 de setembro de 1935. O pai de Boschwitz havia morrido durante a Primeira Guerra Mundial, e sua irmã, emigrado para os territórios palestinos em 1933.
Boschwitz escreveu o romance no exílio. Publicado pela primeira vez no Reino Unido em 1939 sob o título The Man Who Took Trains (O homem que pegava trens), o livro não teve muito impacto na época e saiu de circulação. Ulrich Boschwitz morreu em 1942, aos 27 anos, quando o navio em que viajava foi torpedeado por um submarino alemão no Atlântico Norte.
Mas quando a primeira edição em língua alemã saiu, em 2018, foi aclamada como uma descoberta literária.
Com base no manuscrito original em alemão e nas próprias notas do autor, uma nova tradução foi publicada em inglês e em cerca de 20 idiomas (uma versão em português ainda não está disponível).
The Pessenger (O passageiro), como foi titulado em inglês, está na lista de mais vendidos do jornal Sunday Times do Reino Unido.
O editor alemão Peter Graf tem contribuído para este ressurgimento literário. Nos últimos anos, ele especializou-se em desenvolver novas edições de livros esquecidos ou negligenciados em seu tempo.
Uma das publicações mais destacadas é Blutsbrüder (irmãos de sangue, em tradução livre), de Ernst Haffner. O romance, publicado pela primeira vez em 1932, mostra um grupo de jovens sem-teto, durante a República de Weimar, que vivem de roubos, tráfico de mercadorias roubadas e prostituição em Berlim.
A notável reportagem social contemporânea foi republicada em 2013, e é graças a esse livro que O viajante também obteve nova vida.
Após a publicação de Irmãos de sangue em hebraico, Reuella Sachaf, sobrinha de Boschwitz que vive em Israel, leu uma entrevista com Graf em um jornal e entrou em contato com ele. Ela contou sobre o romance de seu tio e o manuscrito, que foi mantido no Arquivo do Exílio Alemão da Biblioteca Nacional em Frankfurt.
Graf diz ter passado dois dias lendo o livro na própria biblioteca e que rapidamente soube que o romance tinha grande potencial.
Com sua agência (Walde + Graf), ele projeta livros para clientes. Ele também é editor de romances como O viajante, publicado em cooperação com outras editoras, e é diretor administrativo de uma pequena editora berlinense, "Das kulturelle Gedächtnis”, especializada em redescobrir obras de diferentes épocas.
Além de Berliner Briefe (cartas de Berlim), de Susanne Kerckhoff, de 1948, seu catálogo também inclui obras de Dante e Voltaire. Sua seleção anual de publicações é restrita a oito livros. Um trabalho de nicho, admite Graf - sua seleção curatorial foi premiada na Alemanha em 2020.
Graf rapidamente percebeu que O viajante seria grande demais para sua própria editora, razão pela qual a publicação foi administrada pela editora Stuttgart Klett-Cotta, que também publicou o romance de estreia de Boschwitz, Menschen neben dem Leben (pessoas em paralelo à vida, em tradução livre), um ano mais tarde.
Junto com sua linguagem poderosa, diz Graf, O viajante é "o mais antigo confronto literário com os pogroms de novembro".
Além de ampliar o conhecimento histórico sobre o que aconteceu na era nazista, o romance oferece uma descrição concreta que ajuda os leitores a visualizar o passado. Atrocidades envolvendo vários milhões de vítimas são frequentemente abstratas demais, diz Graf, mas "a história de Boschwitz, embora fictícia, permite ao leitor desenvolver um sentimento mais forte de empatia" com as vítimas do nazismo.
Carlos Ruiz Zafón criou um monumento para livros esquecidos ou negligenciados com seu sucesso mundial, A sombra do vento, e o cemitério de livros esquecidos descrito nele. Mas por que os livros são esquecidos?
O mercado já estava inundado de novas publicações no final do século 19 e durante a República de Weimar, o que tornava impossível o sucesso de todos os títulos, explica Graf.
O homem que pegava trens, por exemplo, não surgiu como um livro de interesse quando foi publicado pela primeira vez no Reino Unido no final dos anos 30; o valor documental do romance se desenvolveu ao longo do tempo.
É crucial publicar o "livro certo no momento certo", diz Peter Graf, que descobriu que Heinrich Böll já havia tentado publicar o romance de Boschwitz nos anos 60. "Talvez este confronto com o Holocausto tenha chegado muito cedo na jovem República Federal da Alemanha", comenta.
A história por trás da redescoberta de O viajante, com a sobrinha do autor contatando ativamente a editora, foi um golpe de sorte para Graf - mas também um caso excepcional.
Para encontrar livros esquecidos que merecem ser reeditados, Graf pesquisa arquivos literários, às vezes encontrando referências em bibliografias, e lê resenhas dos anos 20.
Para contribuir para sua relevância, novas edições precisam de links com o presente, diz Peter Graf. O viajante, por exemplo, apresenta paralelos com o atual problema de migração do mundo. A pandemia, por sua vez, leva a questões existenciais. "Vivemos em tempos difíceis e temos que deixar nossa zona de conforto", aponta o editor.
Em períodos de incerteza, muitos leitores recorrem a material histórico, talvez na tentativa de melhor compreender as dificuldades da experiência humana.
"Não creio que a literatura mude o mundo", diz Graf, "mas ela pode sensibilizar os leitores por um momento".
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