Se lhe perguntassem por que é que ele se tinha queixado à polícia, por carta anónima, duma velha que dependurava os cobertores nas traseiras do prédio, sem que isso afectasse ninguém, e muito menos os empregados duma empresa que não moravam ali, ele responderia, rindo: “É só p’ra chatear.” Do mesmo modo, quando telefonava para a Câmara, disfarçando a voz , a denunciar um vizinho que fazia obras clandestinas numa casa de banho, era “só p’ra chatear”. Também era “só p’ra chatear” o gesto de deixar o elevador encravado no nono andar para que um casal de idosos, com o seu velho cão, tivesse de se arrastar pelas escadas.
Comprazia-se, naturalmente, com a incomodidade dos outros. Uma acção que tivesse como motivação “chatear” parecia-lhe absolutamente justificada, desde que não fosse ele o chateado. Uma representação popular – aliás falsa e caluniosa – que atribui o incêndio de Roma a Tibério Nero Enobarbo, para depois celebrar a catástrofe, a toque de cítara, poderá não andar longe do feitio de Quintão Malpique, descontando o pendor artístico.
Desde que descobrira a Internet, aliás tardiamente, tinha sido um alvoroço. Aplicava boa parte das horas de serviço a escrever comentários anónimos nos blogues alheios e nas páginas que os admitissem.
Mário de Carvalho, "A arte de morrer longe"
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