domingo, maio 16

Meu silêncio é melhor que o seu

O avião levantara voo há mais de duas horas quando a mulher sentada ao meu lado me perguntou se poderia trocar de lugar comigo. Eu reservara uma cadeira junto ao corredor, porque gosto de me sentir livre para esticar as pernas. Trocar de lugar com ela significaria ficar entalado por mais oito horas. Num voo longo, é um pesadelo. Pior do que isso, só mesmo ficar entalado entre duas senhoras com bebês de colo. Disse-lhe que sim, sorrindo, pois sou o tipo de pessoa capaz de se deixar matar para não parecer indelicado; ou talvez seja apenas demasiado covarde para dizer que não. Tenho horror a conflitos.

A mulher não queria trocar de lugar por uma questão de comodidade; queria trocar de lugar para ficar mais longe do marido. Haviam começado a discutir ainda antes do avião levantar voo. Os dois se odiavam com o ódio formidável de quem já trocou juras de amor eterno. É uma ingenuidade, na qual tropeço o tempo todo, acreditar que o ódio resulta da ignorância mútua. O verdadeiro ódio exige anos de amor e de profunda intimidade.


A troca de lugar não serviu de muito. Decorridos três minutos, o homem debruçou-se sobre mim, como se eu não fosse uma pessoa, mas um estorvo:

— Está sentindo minha falta? — perguntou à mulher. Ela enfiou o rosto na revista de bordo, fingindo-se surda.

— Pode ficar calada — disse o homem. — Meu silêncio é melhor que o seu.

Calaram-se, ambos, por mais três minutos. Então, foi a vez de a mulher se debruçar sobre mim — o estorvo —, e disparar na direção do marido:

— Você me faz mal, me envelhece, me faz uma pessoa amarga e pessimista. Você me tira toda a luz.

— É mútuo — disse o homem, levando a mão direita à cabeça. — Está vendo esses cabelos brancos? É por sua causa. Além desta dor nas costas, que me está matando. Antes de você aparecer eu nunca tinha tido dores nas costas…

— Antes, você era jovem — zombou a mulher.

Coloquei os fones nos ouvidos. Escolhi um álbum do percussionista nigeriano Babatunde Olatunji. Mesmo assim, continuei a ouvir, ainda que abafada pela intensa batucada de Babatunde, a rouca troca de queixas do casal. Também a mim já me doíam as costas. Pedi licença à mulher e saí para o corredor. Caminhei até a cauda do avião. Um sujeito gordo cortou-me o caminho. Disse que se lembrava muito bem de mim. Estudáramos juntos numa escola em Londres. Nunca estudei em Londres. Ele, todavia, assegurou-me que sim, contando histórias divertidas daquela época. Quando, finalmente, regressei à minha fila, a mulher reocupara o lugar original. Uma outra senhora, cansada da discussão, decidira intervir:

— Porque não se separam? — perguntou, num tom de voz glacial.

O casal não se mostrou ofendido com a pergunta. “Por vezes, o ódio é o amor possível”, retorquiu o homem, muito sério. “Por vezes, só o ódio sustenta um casamento.”

Horas depois, o comandante anunciou a chegada, no horário previsto, pedindo aos passageiros para apertarem os cintos. Por essa altura já a mulher adormecera, com a cabeça encostada ao ombro do marido. Eram a imagem perfeita de um casal feliz.

José Eduardo Agualusa

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