segunda-feira, fevereiro 28

Marinha

 


O menino corre

Aos quatro anos de idade descobri pela primeira vez que podia ler. Eu tinha visto uma infinidade de vezes as letras que sabia (porque tinham me dito) serem os nomes das figuras colocadas sob elas. O menino desenhado em grossas linhas pretas, vestido com calção vermelho e camisa verde (o mesmo tecido vermelho e verde de todas as outras imagens do livro, cachorros, gatos, árvores, mães altas e magras), era também, de algum modo, eu percebia, as formas pretas e rígidas embaixo dele, como se o corpo do menino tivesse sido desmembrado em três figuras distintas: um braço e o torso, b; a cabeça isolada, perfeitamente redonda, o; e as pernas bambas e caídas, y. Desenhei os olhos e um sorriso no rosto redondo e preenchi o vazio do círculo do torso. Mas havia mais: eu sabia que essas formas não apenas espelhavam o menino acima delas, mas também podiam me dizer exatamente o que o menino estava fazendo com os braços e as pernas abertas. O menino corre, diziam as formas. Ele não estava pulando, como eu poderia ter pensado, nem fingindo estar congelado no lugar, ou jogando um jogo cujas regras e objetivos me eram desconhecidos. O menino corre.

E contudo essas percepções eram atos que podiam acontecer com estalar de dedos - menos interessantes porque alguém os havia realizado para mim. Outro leitor - minha babá, provavelmente – tinha explicado as formas, e, agora, cada vez que as páginas revelavam a imagem daquele menino exuberante, eu sabia o que significavam as formas embaixo dele. Havia um prazer nisso, mas cansou. Não havia nenhuma surpresa.

Então, um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora esquecido), vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter durado muito; talvez o carro tenha parado por um instante, talvez tenha apenas diminuído a marcha, o suficiente para que eu lesse, grandes, gigantescas, certas formas semelhantes às do meu livro, mas formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de repente eu sabia o que eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida, sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém realizara a mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos em um diálogo silenciosamente respeitoso. Como conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era todo-poderoso. Eu podia ler.

Qual a palavra que estava naquele cartaz longínquo, isso eu já não sei (parece que me lembro vagamente de uma palavra com muitos “as”), Mas a impressão de ser capaz de repente, de compreender o que antes só podia fitar é tão vívida hoje como deve ter sido então. Foi como adquirir um sentido inteiramente novo, de tal forma que as coisas não consistiam mais apenas no que os meus olhos podiam ver, meus ouvidos podiam ouvir, minha língua podia saborear, meu nariz podia cheirar e meus dedos podiam sentir, mas no que o meu corpo todo podia decifrar, traduzir, dar voz a, ler.

Alberto Manguel, "História da leitura"

Nestes tempos...

 


A atriz

Existiu outrora uma grande atriz. Uma mulher que alcançara tamanhos triunfos que todo o mundo da arte a adorava, curvado a seus pés.

O incenso da adoração perfumara-lhe a vida por muitos anos e vedara-lhe os olhos para as outras coisas, de sorte que ela a nada mais aspirava.

Não obstante, chegou o dia em que conheceu um homem, a quem amou com toda a força da alma. Então a arte, os triunfos e as nuvens de incenso nada mais significaram para ela – o amor era toda a sua vida. Mas embora pensasse assim, o homem que ela amava tornou-se ciumento – ciumento do público que não mais lhe interessava.

Pediu-lhe que desistisse da sua carreira e abandonasse o palco para sempre. Ela acedeu sem resistência, e disse:

– O amor é melhor do que a arte, melhor do que a fama, melhor do que a própria vida.

E logo abandonou alegremente o palco e todos os triunfos para dedicar sua vida ao homem que amava.

O tempo transcorreu, o amor do homem começou rapidamente a diminuir e a mulher que tudo havia sacrificado por ele percebeu-o; a certeza disso caiu-lhe n`alma como a neblina fria do entardecer, envolvendo-a da cabeça aos pés numa mortalha de desespero. Tratava-se, porém, de uma mulher corajosa, decidida, e embora com a mágoa estampada no rosto, não se deixou abater. Compreendeu que teria de sobrepujar a crise da sua vida, a crise da qual dependia o seu destino.

Com perspicácia e cruel clarividência, sentiu a realidade que lhe despedaçava o coração. Sacrificara a carreira ao seu amor e agora este amor fugia-lhe. Se não encontrasse meios para reanimar a chama que bruxuleava e breve se apagaria totalmente, ficaria solitária nos escombros da sua vida arruinada.

E a mulher, que fora uma grande atriz, percebera que a sua arte, em vez de ser um estímulo ou uma inspiração nesta fase penosa da vida, demonstrara o contrário – era desvantagem e obstáculo. Alheara-se da orientação dos diretores de cena e das ideias e conselhos dos autores. Até então nada fizera sem eles – cada pensamento, cada entoação de voz e, mesmo, cada gesto era-lhe sugerido, pois esta é a arte do ator. E, agora, quando se via obrigada a pensar, criar e agir por si mesma, sentia-se desamparada, sem recursos, como uma criança repentinamente às voltas com um grande problema. Mas à medida que os dias se passavam, impunha-se cada vez mais ação pronta e enérgica.

Um dia, quando andava de um lado para o outro, com o gérmen selvagem do desespero a crescer-lhe no íntimo a cada minuto que passava, um homem foi vê-la. Fora empresário do teatro onde ela trabalhara. Viera pedir-lhe que representasse numa nova peça. Ela recusou. Que faria no palco com essa arte falsa que transforma aqueles que a praticam em fantoches, fantoches irremediáveis, movidos por cordéis manejados pelas mãos dos autores e diretores de cena?

Agora, encontrava-se face a face com a verdadeira tragédia da vida, ao lado da qual todas as falsas tristezas do palco nada mais eram senão lantejoulas e bambinelas. Contudo, o empresário insistiu, dizendo-lhe que a oferta significava dinheiro , zumbindo-lhe em torno com a persistência de uma mosca no outono, que não quer ser enxotada.

Não quereria pelo menos ler a peça? Para livrar-se dele, leu-a, e reconheceu que a tragédia impressa era a tragédia da sua própria vida. A mesma situação: o problema estava resolvido.

O destino viera em auxílio da atriz numa peça teatral. Devia representá-la dominando inteiramente cada detalhe do enredo. Estudou, então, a parte que lhe competia e representou-a para um grande auditório. Atuou com fervor do gênio que jamais ultrapassara durante a sua carreira e o aplauso que retumbou de todos os lados foi a homenagem irresistível tributada pelos espíritos e corações dos homens àqueles que possuem gênio.

Quando tudo chegou ao fim, voltou para casa fatigada e um tanto surpreendida com os gritos e aplausos da multidão, ainda a ressoar nos ouvidos. Dera-lhe o máximo, pusera-lhe aos pés o poder e a maravilha da sua alma. Tudo que lhe restava agora era um sentimento de impotência e fragilidade. Chegara à casa entristecida e carregada de flores. Repentinamente, observou que havia dois pratos na mesa preparada para a ceia e lembrou-se de que, nesta noite, fora resolvido o seu destino. Esquecera-o até então. Naquele momento o homem que ela amara entrou, indagando:

– Cheguei na hora?

Ela olhou para o relógio, e respondeu:

– Chegaste na hora, mas demasiadamente tarde.
Oscar Wilde

sábado, fevereiro 26

Tá na mesa!

 


Confetes

Feito aquele enredo dos Três Mosqueteiros (olha aí a sugestão pra fantasia), os três dias de carnaval são quatro. Isso já dá uma ideia da bagunça. Uma pequena ideia.

Durante os três (quatro, cinco...) dias de pagode, imperam os disparates dos súditos de Momo Primeiro e Único, fora os outros trinta - Cidadão Samba, Cidadão Recreativista, Rei do Carnaval, as respectivas Rainhas e Princesas, D. Higiênico Sales, Marechal de Cama-e-Mesa Átero Escler Ozze, e menos votados.

Marmanjo trajando fralda suja nos fundilhos com creme de abacate...

Neros coroados de arruda tangendo mudas harpas de tábuas de privada...

Zorros de sapato-tanque ao lado dos fiéis Bêbados, isto é, Tontos...

Grandes astros internacionais cuja maior graça reside no fato indiscutível de não serem astros, nem grandes, e internacionais lá pras negas deles...

Árabes de lençol e toalha santista (os mais refinados) em busca de um oásis que venda caipirinha...

O imortal General da Banda. Melhor um General da Banda que outra banda dos generais...

Marte, o Deus da Guerra, de batom e cílios postiços, com os bordados da capa (diviiina) feitos pela mamãe (dele)...

Odaliscas de cocar bebendo uísque nacional, melindrosas com o que a baiana tem na piteira, gregas com o chapéu de tirolesa, cheirando lança...

A rainha do Carnaval (uma delas) apertada pra fazer xixi, perguntando pelo “Wanderley Cardoso”…

Cartolas enormes, próprias pros palhaços que “dirigem” nosso futebol...

Blocos de Sujo muito mais limpos que o jet-set...

Buda, logo atrás de um Preto Velho, empurrado por tapuias de cueca zorba...

A freira que é barbadinho com o hábito levantado... A Rainha Louca sentada num Círio de Nazaré. É louca mesmo, sô...

O nomezinho daquela doce gueixa é Oswaldo, torneiro-mecânico de profissão...
Que qui a cobra tá fazendo ali na Cleópatra? A transação não foi no seio?...
Santos Dumont estacionando o 14-BIS no Aterro pra ir tomar uma loura com a escurinha...

A moça nua em cima da mesa: duas listrinhas claras - tirou o bustiê, arrancaram a tanga - no corpo queimado. Zebra estilizada?...

Acima a depilação! Quer dizer, embaixo, por favor, não...

Um jacaré de rancho dança frevo em Irajá tomando mamadeira cheia de maracujá...

O Fantástico Marajá de Laori ameaçando dar uma sandalhada no Esplendor de Assurbanípal...

O Incrível Hulk, bastante emagrecido, tomando cachaça e escarrando sangue num coreto da Penha...
Escravas de correntes douradas e sandálias havaianas...

Chope, chope, chope pra afastar o calor...

Coxas, coxas, coxas pra aumentar o tesão...

A fantasia de legionário, miragem de todas as juventudes...

Palha, ráfia, isopor, paetê, fita - materiais que o BNH usará no futuro...

A Princesa Isabel sofrendo com as cólicas menstruais no desfile do Grupo III...

Um pierrô - até que enfim! - corneando o arlequim...

Mais nobreza decadente: o Rei Sol palmeando um cabo da PM...

Zumbi dos Palmares no repique, morcegos brincando à luz do dia, Clóvis na linha do trem para todo o sempre...

Aquele tampinha, perto da cabrocha e do rubro-negro de patinete, ali ó, não é o tal do general Jaruzelski?...

E, comandando a Ala do Bochincho, Tamandaré batendo o pé: - Sem minhas guias e colares por cima das medalhas, nem morta!...

Por aí afora, O negócio é aproveitar. Porque depois restauram a moralidade, refazem a Lei, recompõem a ordem, e aí, durante uns trezentos e sessenta dias imperam a seriedade do general que manda assassinar desafetos como qualquer dono de boca-de-fumo, a austeridade de um Ministro da Justiça contrabandeando joias, desfalques, desvios, escândalos!

A não ser no Carnaval, o Brasil é a maior zona.
Aldir Blanc, "Brasil passado a sujo"

Mundo encantado

 


Validades

Agora que estamos todos tão apegados a prazos de validade, etiquetas pespegadas a tudo, me pergunto a validade de uma crônica. O que escrevi muito antes e o que você lê agora é uma inutilidade antecipada – pré-datada pra mim, pós-lida pra você.

Prazos válidos, ou não mais válidos, são categorias novas de dissabores pra mente. Ao redor, tudo se invalida: aos poucos, repentinamente, sutilmente. Nossa leitora ótica interior nem foca direito essa vastidão de inquietações atreladas ao rigor do calendário. Inquietos com o cronômetro etiquetado em produtos, viramos fiscais de prateleiras. Pero, sempre sobra uma infinidade de prazos a trazer aborrecimentos desde o fundo da geladeira, ou dos confins do firmamento.

O Universo, com seu código de barras previsto pra definhar em 5 bilhões de anos, não me azeda. Já o carimbo de validade no meu iogurte matinal não prevê o azedume precoce do laticínio à luz invernal. À noite, o céu coalha-se de constelações feitas de prazos de validade: luzes que venceram há milhões de anos, feixes de lúmen que ainda piscam, rumo a alhures do tempo.

Numa escala menor, o prazo de validade do cachorro é uma coleira mais curta que 15 anos. O cérebro humano vai se invalidando após umas seis décadas. Um sorvete invalida-se ao sol. A mata atlântica tem validade por mais 10 ou 12 gerações, não mais. Os joelhos da calça nova do menino valem por três ou quatro temporadas na pracinha. Os seios empinados tem prazos aprazados pela lei da gravidade. Um pneu largado ao léu expõe sua validade poluidora por centenas de anos.

Tudo vence, vai vencer ou já está vencido. Um canalha eleito não vale nem por um mandato mas dura o dobro, às vezes o triplo. Medicamentos tem prazos precisos, embora precisemos confiar na qualidade da falsificação. O outono expirou e a respiração espirra. Uma rosa é uma rosa é uma rosa até que seu próprio prazo a despetale toda. As pirâmides estão no início, na metade ou no fim da sua validade? O carbono 14 tem seu prazo particular de existência mas vive dando prazos aos outros elementos.

O impalpável também tem prazos: o amor pode ser interminável por um momento e efêmero por um século. A carteira de habilitação você revalida mas o prazer da viagem não. O assombro vale enquanto as sombras não se explicam. O imponderável não foi impresso na folhinha porém depois todo mundo aponta que o voo valia até a data tal. O que vai ser da eternidade quando acabar o seu prazo de validade?

José Guaraci Fraga

sexta-feira, fevereiro 25

Preparando-se para o feriadão

 


Um enterro e outros carnavais

Recordei outros carnavais quando fui ao enterro de d. Faride, mãe do meu amigo Osman Nasser. Quando eu tinha uns catorze ou quinze anos de idade, Osman beirava os trinta e era uma figura lendária na pacata Manaus dos anos 1960.

Pacata? Nem tanto. A cidade não era esse polvo cujos tentáculos rasgam a floresta e atravessam o rio Negro, mas sempre foi um porto cosmopolita, lugar de esplendor e decadência cíclicos, por onde passam aventureiros de todas as latitudes do Brasil e do mundo.

No fim daquela tarde triste — sol ralo filtrado por nuvens densas e escuras —, me lembrei dos bailes carnavalescos nos clubes e dos blocos de rua. Antes do primeiro grito de Carnaval, a folia começava na tarde em que centenas de pessoas iam recepcionar a Camélia no aeroporto de Ponta Pelada, onde a multidão cantava a marchinha Ô jardineira, por que estás tão triste, mas o que foi que te aconteceu? e depois a caravana acompanhava a Camélia gigantesca até o Olympico Clube. Não sei se era permitido usar lança-perfume, mas a bisnaga de vidro transparente refrescava as noites carnavalescas, o éter se misturava ao suor dos corpos e ao sereno da madrugada.

Não éramos espectadores de desfiles de escolas de samba carioca; aliás, nem havia TV em Manaus: o Carnaval significava quatro dias maldormidos com suas noites em claro, entre as praças e os clubes. A Segunda-Feira Gorda, no Atlético Rio Negro Clube, era o auge da folia que terminava no Mercado Municipal Adolpho Lisboa, onde víamos ou acreditávamos ver peixes graúdos fantasiados e peixeiros mascarados. Havia também sereias roucas de tanto cantar, odaliscas quase nuas e descabeladas, princesas destronadas, foliões com roupa esfarrapada, mendigos que ganhavam um prato de mingau de banana ou jaraqui frito. Os foliões mais bêbados mergulhavam no rio Negro para mitigar a ressaca, outros discutiam com urubus na praia ou procuravam a namorada extraviada em algum momento do baile, quando ninguém era de ninguém e o Carnaval, um mistério alucinante.
Quantos homens choravam na praia, homens solitários e tristes, com o rosto manchado de confetes e o coração seco.

“Grande é o Senhor Deus”, cantam parentes e amigos no enterro, enquanto eu me lembro da noite natalina em que d. Faride distribuía presentes para convidados e penetras que iam festejar o Natal na casa dos Nasser.

Ali está a árvore coberta de pacotes coloridos; na sala, a mesa cresce com a chegada de acepipes, as luzes do pátio iluminam a fonte de pedra, cercada de crianças. O velho Nasser, sentado na cadeira de balanço, fuma um charuto com a pose de um perfeito patriarca. Ouço a voz de Oum Kalsoum no disco de 78 RPM, ouço uma gritaria alegre, vejo as nove irmãs de Osman dançar para o pai; depois elas lhe oferecem tâmaras e pistaches que tinham viajado do outro lado da Terra para aquele pequeno e difuso Oriente no centro de Manaus.

Agora as mulheres cantam loas ao Senhor, rezam o Pai-Nosso e eu desvio o olhar das mangueiras quietas que sombreiam o chão, mangueiras centenárias, as poucas que restaram na cidade. Parece que só os mortos têm direito à sombra, os vivos de Manaus penam sob o sol. Olho para o alto do mausoléu e vejo a estrela e lua crescente de metal, símbolos do islã: religião do velho Nasser. É um dos mausoléus muçulmanos no cemitério São João Batista, mas a mãe que desce ao fundo da terra era católica.

Reconheço rostos de amigos, foliões de outros tempos, e ali, entre dois túmulos, ajoelhado e de cabeça baixa, vejo o vendedor de frutas que, na minha juventude, carregava um pomar na cabeça.

A cantoria cessa na quietude do crepúsculo, e a vida, quando se olha para trás e para longe, parece um sonho. Abraço meu amigo órfão, que me cochicha um ditado árabe:

Uma mãe vale um mundo.
Daqui a pouco será Carnaval…
Milton Hatoum, "Um solitário à espreita"

Traça em casa

 


Ná havendo novidade

O tempo apagará para sempre o que fomos até não termos sido nada. E as palavras que deixarei são provisórias como todas as palavras que se pronunciaram no mundo. Ná havendo novidade, dizia o velhote sem pernas. Mas havendo ou não havendo novidade será assim. A sua cadeira de rodas desaparecerá também. Mesmo o teu nome, António Lobo Antunes, não terá sequer a sombra de uma sombra.

Era um camponês alentejano, já idoso, seja o que for que isso signifique, com uma diabetes muito grave, condenado a uma cadeira de rodas porque lhe amputaram as pernas. Os resultados das análises eram uma miséria mas continuava a não tomar a medicação, a beber, a comer o que não devia quando tinha dinheiro para comer. Morava num sítio perdido onde ninguém passava. A sua única frase à despedida foi

– Ná havendo novidade a gente vê-se daqui a dez anos
e lembro-me tantas vezes desta frase. Ná havendo novidade. Ná havendo novidade o meu futuro é muito claro. Faltam-me quatro livros, contando este em que estou a trabalhar agora. Ná havendo novidade o último estará pronto em 2022 e não torno a escrever porque a obra ficará finalmente redonda e o círculo definitivamente fechado. Não consinto que mais nada meu seja publicado, rascunhos, planos, esboços, falsas partidas, seja o que for. Proíbo que desrespeitem a minha vontade. Proíbo que me traiam. Nem uma palavra mais. Claro que também não farei estas crónicas a partir do momento da saída desse livro de 2022. Depois disso, e ná havendo novidade, irei ler esses textinhos. Se achar que têm alguma qualidade reúno-os num livro com o título Crónicas. Publica-se esse volume e acabou-se.

Susa Monteiro

Como dizia Newton não sei o que o futuro pensará de mim, mas sei o que eu pensarei dele, como sei o que penso acerca do que fiz. Simplesmente as pessoas não têm direito ao que eu penso. Têm direito ao que eu fiz e é um pau. Digam o que lhes der na gana: é igual ao litro. As opiniões flutuarão com os tempos, inevitavelmente, e as águas deixarão de se agitar a pouco e pouco quando eu for apenas um nome, uns retratos, umas lembranças vagas. Depois as lembranças desaparecerão como desaparecerão os retratos. Fica o nome e a obra. Depois…

Dos dez grandes dramaturgos de que Aristóteles falou nem uma peça resta. Nem uma linha. Temos Eurípides, Ésquilo, Sófocles, que Aristóteles omitiu: parece que dava mais importância aos outros, não há certeza de espécie alguma a esse respeito. De Safo sobrevivem meia dúzia de palavras. A única vez que Cristo escreveu fê-lo com o dedo na terra, ninguém conhece o que rabiscou. Tudo o que fizemos não passou disso: escrevemos com o dedo na terra e nem a mulher adúltera, a única pessoa que estava com Ele, o soube. Como o não soube quem declarou que ele escreveu com o dedo na terra. Mas teria escrito de facto ou esboçado apenas uns riscos?

Ao fim e ao cabo esboçámos apenas uns riscos. Mesmo que não os tenhamos apagado com a mão o tempo encarregar-se-á disso por nós. Vaidade das vaidades, garante o Eclesiastes, tudo é vaidade: o tempo apagará para sempre o que fomos até não termos sido nada. as palavras que deixarei são provisórias como todas as palavras que se pronunciaram no mundo. Ná havendo novidade, dizia o velhote sem pernas. Mas havendo ou não havendo novidade será assim. A sua cadeira de rodas desaparecerá também. Mesmo o teu nome, António Lobo Antunes, não terá sequer a sombra de uma sombra. Ao escrever isto lembrei-me de um poema babilónico com mais de dez mil anos. Ficou o início

Ó casa de bambu escuta

ó casa de bambu compreende
e isto comove-me até às lágrimas. Como me comove um poema de Bachô
(estou a aportuguesar-lhe o nome)
feito no século dezasseis:
Os quimonos secam ao sol.
Ai as mangas pequenas
Da criança morta.

Ontem não te vi em Babilónia diz a inscrição numa pedra que aproveitei para um livro. De facto não vimos ninguém em Babilónia nem sequer a nós mesmos.

Vaidade das vaidades, eu preocupado com a minha pobre obra. Pela janela aberta chegam os gritos dos presos no recreio da cadeia lá em baixo. Parecem alegres, riem, cantam. Ná havendo novidade daqui a quarenta anos estão cá fora a aliviarem os bolsos do pagode. Quanto a mim, ná havendo novidade, daqui a dez estarei com o amigo alentejano, sem pernas, a comermos à colher um pacotão de açúcar.
António Lobo Antunes

quinta-feira, fevereiro 24

Iluminação

 


A bondade

Endureçamos a bondade, amigos. Ela também é bondosa, a cutilada que faz saltar a roedura e os bichos: também é bondosa a chama nas selvas incendiadas para que os arados bondosos fendam a terra.

Endureçamos a nossa bondade, amigos. Já não há pusilânime de olhos aguados e palavras brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de coração reto, e aos não flexíveis e submissos.

Reparai que a palavra se vai tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das vossas palavras foi sempre – ou quase sempre – mentirosa. Alguma vez temos de deixar de mentir, porque, no fim de contas, só de nós dependemos, e mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa estulta estupidez.

Os bons serão os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta porque é a própria arma da vida.

E, assim, só se chamarão bons os de coração reto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reivindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito. E deles, só deles, será o reino da terra.
Pablo Neruda, “Nasci para Nascer”

Mergulho de cabeça

 


Ficar em casa

Quentin Bell 
Passar quatro dias e quatro noites em casa, vendo o Carnaval passar; ou não vendo nem isso, mas entregue a uma outra e cifrada folia, que nesta Quarta-Feira de Cinzas abre suas pétalas de cansaço, como se também tivéssemos pulado e berrado no clube. Não ligar televisão, esquecer-se de rádio; deixar os locutores falando sozinhos, na ânsia de encher de discurso uma festa à base de movimento e de canto. Perceber apenas o grito trêmulo, trazido e levado pelo vento, de um samba que marca a realidade lúdica sem nos convidar à integração. Beneficiar-se com a ausência de jornais, que prova a inexistência provisória do mundo como arquitetura de notícias. Ter como companheiro o irmão gato Crispim, exemplo de abstenção sem sacrifício, manual de silêncio e sabedoria, aventureiro que experimentou a vertigem da luta livre nos telhados e homologa a invenção da poltrona. Penetrar no vazio do tempo sem obrigações, como num parque fechado, aproveitando a ausência de guardas, e descobrindo nele tudo que as tabuletas omitem. Aceitar a solidão; escolhê-la; desfrutá-la. Sorrir dos psiquiatras que falam em alienação do mundo e recomendam a terapêutica de grupo. Estimar a pausa como valor musical, o intervalo, o hiato. O instante em que a agulha fere o disco sem despertar ainda qualquer som. Andar de um quarto para outro sem ser à procura de objetos: achando-os. Descobrir, sem mescalina, as cores que a cor esconde; os timbres entrelaçados no ruído. Olhar para as paredes, ou melhor: olhar as paredes, em torno dos quadros. Sentir a casa como um todo e como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, à nossa revelia, contra o nosso desdém. Habitar realmente a casa, quatro dias: como ilha, fortaleza, continente: infinito no finito. Reconsiderar os livros; arrumá-los primeiro com método, depois com voluptuosidade, fazendo com que cada prateleira exija o maior tempo possível; verificar que é preciso antes tirar a poeira de um, remover a boba capa de celofane que envolve a encadernação de outro. Reler dedicatórias; abrir ao acaso livros de poetas que preferimos e que infelizmente não são os mais modernos nem os mais célebres; copiar meia estrofe por onde corre um arrepio verbal; separar volumes que não nos falam mais nada e que devem tentar seu destino em outras casas. Sentir chegada a hora dos álbuns de pintura com pouco ou nenhum texto, e dos volumes iconográficos que nos contam Paris ou a vida de Mallarmé. Viajar em fotografias; sentir-se imagem flutuando entre imagens; a terra domesticada em figura, tornada familiar sem perda de sua essência enigmática. Reconhecer que muitos livros comprados a duras penas, pedidos ao estrangeiro ou longamente mineirados nos sebos, não têm mais do que essa oportunidade de comunicação durante o ano; deixar que fiquem a sós conosco e nos confiem seu segredo. Admitir a fome, sem exigência de horário, e matá-la com o que houver à mão; renunciar à ideia de almoço e jantar, em reverência ao sagrado direito que assiste a todos, inclusive e principalmente às cozinheiras, de brincarem o seu Carnaval; achar mais gosto nessa comida, porque não é a regulamentar nem é seguida de nada: todas as obrigações estão suspensas, e só valem as que soubermos traçar a nós mesmos. Descortinar na preguiça um espaço incomensurável, onde cabe tudo; não enchê-lo demais; devassá-lo à maneira de um explorador que não quer ser muito rico e tanto sente prazer em descobrir como em procurar. Assim vosso cronista passou o Carnaval: sem fugir, sem brincar, divertido em seu canto umbroso.

Carlos Drummond de Andrade, "A bolsa & a vida"

quarta-feira, fevereiro 23

Leitura no café

 


Caminho da manhã

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles escorre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.

Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.”
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Livro Sexto"

Construir o 'castelo'

 


Moral

Ah, a palavra “moral”! Sempre que aparece, penso nos crimes que foram cometidos em seu nome. As confusões que este termo engendrou abarcam quase toda a história das perseguições movidas pelo homem ao seu semelhante. Para além do facto de não existir apenas uma moral, mas muitas, é evidente que em todos os países, seja qual for a moral dominante, há uma moral para o tempo de paz e uma moral para a guerra. Em tempo de guerra tudo é permitido, tudo é perdoado. Ou seja, tudo o que de abominável e infame o lado vencedor praticou.

Os vencidos, que servem sempre de bode expiatório, “não têm moral”.
Pensar-se-á que, se realmente glorificássemos a vida e não a morte, se dessemos valor à criação e não à destruição, se acreditássemos na fecundidade e não na impotência, a tarefa suprema em que nos empenharíamos seria a da eliminação da guerra. Pensar-se-á que, fartos de carnificina, os homens se voltariam contra os assassinos, ou seja, os homens que planeiam a guerra, os homens que decidem das modalidades da arte da guerra, os homens que dirigem a indústria de material de guerra, material que hoje se tornou indescrivelmente diabólico. Digo “assassinos”, porque em última análise esses homens não são outra coisa. A sangue-frio, anos antes de estalar qualquer conflito, preparam-se para obrigar os outros a obedecer-lhes; enumeram mentalmente todas as formas concebíveis de horror e destruição, e dedicam-se à tarefa calmamente, deliberadamente, implacavelmente, esperando apenas pelo momento certo para levarem à prática os seus planos.

(...) Confrontados com uma nova guerra - porque uma guerra engendra sempre outras - não poderemos esperar que estas “vítimas” se mostrem caridosas e magnânimas. Tendo sofrido contra vontade, exigirão inevitavelmente que os seus filhos e filhas paguem o mesmo tributo... Portanto, o que eu digo é que, se esta escravidão de sacrifício e vingança não é imoral, se não é a forma mais absoluta da imoralidade, então esta palavra não tem sentido. Não estamos a ser destruídos e corrompidos pelos escritos pornográficos ou obscenos; estamos a ser destruídos e condenados, em todos os sentidos, pela guerra e pelo planeamento da guerra.
Henry Miller, "O Mundo do Sexo"

terça-feira, fevereiro 22

Passeio da manhã

 


A manhã daquela rua

Diziam, isso diziam, que Dona Maria José tinha hálito de jacaré. Por ela, Ananias sabia de todas as histórias trágicas que vendem jornal. Estava o dia inteiro enferrujando as mãos no tanque. Só dava uma folga quando a preta Bangu pedia um pouco o tanque da rua emprestado. Mas enquanto Bangu não chegava, lá ia ela com um pano no cabelo, se sacudindo toda, passando os vincos do rosto a sol, com os seios grandes, mais ou menos polimorfos e quase líquidos, lembrando balões vazios ou garrafões de vinho.

E assim mergulhando em montes de espuma, com a saia arregaçada deixando à vista as pernas finas e arqueadas, limpava o cocô das fraldas dos meninos, clareando marrons das cuecas e o amarelo do pijama do farmacêutico.

Do outro lado do valão, Dona Cordélia, também utilizando o seu tanque, ficava esperando o momento de Dona Maria José contar o pedaço da radionovela da Nacional, que perdia sempre porque o marido e os filhos não davam tempo de nada. E mesmo que quisesse, a verdade escondia que ela não possuía aparelho de rádio.

Foi quando Dona Maria José resolveu não contar ainda o capítulo da radionovela e sim outra coisa que a impressionara muito.

– Foi sim. Deu dezessete facada nela. Imagine que monstro, Dona Cordélia. E ela não tinha nada com o tal do Francisquinho. Era uma santa. Ele, Marcolino Mendonça, que já tinha sido cabo de puliça, portanto otoridade, devendo de dar o exemplo, foi lá na hora e pronto... Cringue-cringue-cringue. O sangue tingiu o chão. Ela, Mariazinha, tinha jurado de pé junto que não tinha nada... nad... na... n... e o demonho não acreditou, puxou a faca, enfiou a faca, puxou a faca, enfiou a faca. Ela, tão linda no retrato do jornal. Ele, com aquela cara de assassino papa-figo. Cordeiro conhecia ela.

Cordeiro, o marido de Dona Maria José, conhecia todo mundo. Dona Cordélia, que não sabia ler e que, quando tinha tempo via figura de revistas, ficava excitadíssima do outro lado do valão enfiando as mãos no tanque; espremia a roupa com força, espremia estranguladoramente o sabão, como se defendesse todas as mulheres assassinadas, injuriadas, violentadas. Só tinha tempo de dizer antes que o suor corresse frio pela espinha: que coisa, mas não é?

Ananias não lia jornal, mas se deitava na sombra, ao lado de Sulamita, grudando-se em Tricolinete, espiando o capinzal queimado, sem querer apanhar o sol, mas doido para escutar tudo. Isso, quando era dia de folga. Uma manhã, Antão dava aula para os filhos de Dona Bárbara e outros meninos que apareciam e, na outra, era ele. Porém, Antão estava ficando santo demais. Começara aos poucos a empurrar tudo para cima dele e enfiar-se no mundo estranho dos seus pensamentos. Muitas vezes, Antão o descobria naquela posição e o botava para dentro, só mandando com os olhos.

Porque fora pensar naquilo. Seus ouvidos habituados descobriram o som dos passos de Antão do outro lado da casa. Esqueceu-se de que era um anjo de 86 anos e correu pressuroso para o lado contrário. Viu que o irmão caminhava lentamente para o portão. Na certa o procurava para ver se ele se encontrava brincando com a criançada.

Ananias olhou o portão e se postou mansamente ao lado de Antão. Os dois espiavam o avançar da luz.

A rua branca do subúrbio se perdia igual, indiferente, imutável. Todas as casinhas se projetavam dentro de uma cerca de crótons ou outro arbusto semelhante. Os pés de jamelão eram quase infalíveis em cada quintal. Os de tamarindos, apesar de muitos, apesar de grandes e velhos, rareavam mais.

Gente passava levando marmitas em direção à fábrica. Os homens da pedreira se encaminhavam para o Murundu.

O peixeiro aparecia perto com o cesto na cabeça e uma porção de gatos fazendo miau atrás. Parava e os gatos paravam. Andava e os gatos repetiam o miau.
Mulheres malvestidas, despenteadas coçando a cabeça, dando cafuné nos piolhos, vinham olhar a rua e gritar por qualquer coisa. Ou chamar um filho ou brigar com as vizinhas. Meninos barrigudos com o pipiu de fora, remelentos, seguravam nas saias da mãe e olhavam a rua sem compreender ainda o seu significado.
Seu Edmundo passou lento, lento na caminhada igual de todos os dias. Ia comprar o jornal, jogar no bicho e trazer o pão. Essas coisas, essas três coisas, sobretudo o bicho, ele pagava. O resto, não, porque a aposentadoria não chegava pra nada.

Gente fazia grupinhos, se cumprimentava e falava de doenças longes. A Nega Eugênia, que praticava pequenas sessões de macumba, era casada com seu Benedito Carpinteiro, que por sinal era branco, surdo e morfético e ainda fazia linguiça para vender, veio de lá fazendo arrepios nos meninos-remelas. Olhou os santos sem malquerença ou inveja e também não deu bom-dia. Mas eles nem notaram.

O prestamista Jacob tinha que surgir num dia bonito desses. Pois se ele aparecia nos dias feios de chuva, quanto mais hoje. Jacob tinha boca de ouro, riso pregado, calças de listas e paletó de casimira, engraxado de tanto suor. O suor fazia ilhas nas costas, escorregava pelas pernas, pingava nas botinas e criava grudes de poeira nelas. Batia nos portões e ouvia: hoje não tem. Saía. Batia noutro e: hoje tem. Diminuía mil-réis na conta. Quando essa conta fosse acabando, ele venderia para o São João. Quando a do São João ficasse magra, ele engordava a do Natal. Jacob foi batendo e sumindo.

Também Fiote passou, gordo, grande e vermelho com os olhos inchados contornando espirais na poeira da rua. De noite ele voltaria grande, gordo e mais bêbado, com os olhos mais vermelhos ainda.

Tudo passava no começo do dia. Tudo passava no começo da noite. No meio, então, estagnava. Aquilo era a rua. E quando a rua parava, meninos jogavam bola de meia, bolas de gude, rodavam arcos, levavam surras das mães, soltavam papagaios, laçavam pipas, atiravam marimbaus que muitas vezes erravam o alvo e vinham achatar-se na cabeça de um infeliz passante. A rua pertencia a todos. Os fios da Light se enchiam de caveiras de papagaios e arraias. Vinha o carro da Light e fazia um escarcéu dos diabos; retiravam os bambus balouçantes, endireitavam os fios, faziam ameaças, se pegassem o autor, capavam, multavam e etc...

Entretanto, a molecada era coletiva. Ninguém traía ninguém, porque a rua era deles. Aquela confusão de rua, com brinquedos coloridos simples.

Os palavrões sobravam. Surgiam precocemente nas menores idades e chegavam a ser bonitos, tal a ingenuidade da força com que eram ditos.

Uma vez Dona Bárbara agarrou um pelas orelhas e perguntou se sabia o que era filho da... então ela se vestiu de ternura e explicou que ele estava xingando a mãe do outro e que a mãe não tinha culpa de nada. O menino ficou sabendo e xingava agora com mais vontade, porque sabia o que atingia no palavrão. Era muito melhor.

A rua era aquilo. O sol se espojando no verão. Tricolinete fuçando rapidinha alguma poça de lama em volta de algum cano rebentado. A amarela Sulamita, magra, comprida, gata-cauda, dormindo com uma réstia de olho amarelo aparecendo, se esticava no meio da areia. Raça Dura não dava bola para ela e ficava, no máximo, no portão, enquanto Antão permanecia, depois acompanhava-o para pensar e endurecer-se.

A poeira aumentava na rua quando vinha um jogo de bola de borracha, quando vinha carroça, quando vinha a tropa de mulas carregadas em busca do mercado; os burros faziam aquele barulho e deixavam escapar bolotas verdes rolando nos caminhos e atulhando o chão. De tarde o sol teria secado tudo. Carros de rodas de borracha, só o da Light. Mais raro, o doutor no carro dele. Uma vez a cada século a assistência plequeteava o sino. Aí a rua se alvoroçava em peso e todo mundo corria para saber. Dona Maria José abandonava o tanque e chegava ao destino antes da assistência. Adivinhava o local por instinto e servia na certa de mestre de cerimônias para o estudante de medicina e dava uma mãozinha para os enfermeiros. Os portões se apinhavam de gente querendo saber o que era o que não era. A molecada disparava atrás da assistência, cujo sininho fazia piedosamente pelec-pelec.

A linguagem da curiosidade ligava a rua e o que foi e o que não foi habitava os olhares ansiosos. Os boatos surgiam e se apagavam como luz de farol. Já Dona Cordélia se sentiria doente espiritualmente e lavaria a roupa devagar, suavemente, como se fosse feita da fragilidade da espuma do sabão...

Agora não havia ninguém doente. A rua vivia a manhã calma. Os meninos voltariam a reinar. Estragariam novamente os fios da Light e pintariam o céu de quadradinhos de todas as cores, quadradinhos que ondulariam no vento. O peixeiro gritando, sem a sua sombra, que os gatos comiam desapareceria ao longe.
José Mauro de Vasconcelos, "Rua Descalça"

Leitura no parque

 


Começando com amor e algemas

Amor, que houve com tuas algemas? Por que afrouxaram, por que não me apertam mais? É noite e, se te escapo, onde irás me procurar?

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Na opinião dos detratores da beleza, um arco-íris não passa de um dos truques mais baratos de Deus.

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Quando não os merecermos mais, que morramos antes que morram nossos sonhos e nossos ideais.

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Houve épocas melhores para escrever. Como aquela em que os fracassos artísticos tinham uma escala obrigatória em Paris.

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Às vezes a esperança resolve tentá-lo novamente e põe diante dele uma cena que o emociona: uma criança maltrapilha, um cego vendendo vassouras, um gato atropelado. Seus olhos se enchem de lágrimas, como tantos anos antes, e ele sente o apelo da poesia. Mas não lhe vem nenhum verso, como se não fosse o homem sensível que, quando jovem, teve a presunção de se dizer poeta.

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Só anda com os de sua categoria. Não é mais um versejador qualquer, é um poeta de antologia.

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A primeira lição literária que os novatos aprendem é que escrever não pode ser simplesmente escrever, embora não deva ser muito diferente disso.

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Quem hoje me vê caidaço, tão perto já do meu fim, não sabe o esforço que faço para me manter assim.

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Ler Dostoiévski aos doze anos, em 1950, quase nunca tem outro efeito ou importância além de se poder dizer, setenta anos depois, que se leu Dostoiévski aos doze anos, em 1950.

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A rua da amargura não é um logradouro; é um lugar-comum.

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Era um defunto imponente, como se estivesse na centésima e festiva representação de uma peça de teatro cujo título fosse A ressurreição.

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Um dia, deu-se conta de que era uma versão aprimorada de Clark Gable, o que seria importante se não fosse 2022 e alguém, além dos oito associados do clube de cinéfilos, soubesse quem era Clark Gable.

Raul Drewnick

segunda-feira, fevereiro 21

Cesta básica

 


Primeiras letras

Quando eu tinha 3 anos, tinha um irmão de 10 e torcia do fundo do meu coração, para ser igual a ele quando crescesse. Não que houvesse alguma chance. Meu irmão mais velho já havia pulado duas séries na escola e tinha uma compreensão invejável de tudo, de física atômica e programação de computadores ao alfabeto cirílico. Mais ou menos nessa época, meu irmão começou a ter uma séria preocupação comigo. Um artigo que leu no Haaretz dizia que os analfabetos são excluídos do mercado de trabalho e o incomodava muito que seu irmão de 3 anos viesse a ter dificuldade para encontrar emprego. Assim começou a me ensinar a ler e escrever com uma técnica singular que chamava de “método do chiclete”. Funcionava da seguinte maneira: meu irmão apontava uma palavra que eu tinha de ler em voz alta. Se eu lesse corretamente, ele me dava um pedaço de chiclete não mastigado. Se cometesse um erro, ele grudava o chiclete que mascava no meu cabelo. O método funcionou como mágica e, aos 4 anos, eu era a única criança na creche que sabia ler.

Etgar Keret, ”Sete anos bons" 

Árvore mágica no café

 


Navegação nas Galápagos

A lua cheia ia descendo na alheta de boreste...

Não, assim não dá. Tenho de reprimir a minha vultosa cultura naval e explicar ao leitor ignaro que acontecia o seguinte: era noite de lua cheia; aliás, já era madrugada, coisa de 4 horas, pouco mais. Sendo assim, a lua já atravessara a maior parte do céu e agora descia lá atrás de nosso barco, um pouco à nossa direita. Se a lua estivesse baixando exatamente sobre nossa popa, isso queria dizer que estávamos navegando exatamente em direção a Leste. Certo? Mas não; ela descambava para trás e para a direita, isto é, nós navegávamos para Leste e também para o Sul.

Mais para Leste que para o Sul. Digamos: Leste-Sueste. Na roda dos ventos graduada de 0 a 360 graus, o rumo era mais ou menos 125. Acho que estou sendo bastante claro, a não ser para os leitores mineiros, goianos e outros mato-grossenses e homens de terra adentro, que, aliás, é melhor que não me leiam, pois comecei esta narrativa em pleno mar e irei até o fim sem pisar terra firme; sinto que os que chegaram até aqui já começam a se sentir mareados.

Aguentem-se. Quando eu era rapazola alguém me deu a ler O Tufão, de Conrad, em tradução brasileira. Achei formidável, embora não entendesse nenhuma daquelas manobras com enxárcias, bujarronas, mastaréus e paus de giba, joanetes e sobregatas, traquetes e gurupés. Eu não sabia o que queria dizer nada disso. Nem por isso senti menos os açoites do vento e o terror das vagas; não naufraguei porque eu já era um homenzinho — mas sofri muito. Nenhuma tempestade do cinema sonoro e colorido me impressionou tanto como aquela. Veja-se a força da literatura e o impacto violento das palavras, sobretudo as desconhecidas, sobre o espírito humano.

Mas navigare est necesse; voltemos ao nosso barco. Esclareço que estou falando da noite de 27 de fevereiro de 1983, domingo, ou melhor, da madrugada de 28, segunda-feira. O oceano é o Pacífico, a pouco mais de 90 graus de longitude Oeste de Greenwich; isto quer dizer uns 900km à esquerda do ponto mais esquerdo da América do Sul, para quem olha um mapa; quanto à latitude, é zero; estamos na altura da linha do Equador. Passamos esta linha do Sul para o Norte esta noite mesmo; e agora voltamos a cruzá-la em sentido contrário. É que demos a volta ao Cabo Wolf, ponta norte da ilha Isabela (ou Albemable), a maior de todas as Galápagos. Na cabina de comando, atrás do homem da roda do leme, eu via o céu e o mar, tudo azul e manso.

Na minha frente, um pouco à esquerda, uma estrela grande, avermelhada, e um planeta brilhante.

Ela era Antares, ele, Júpiter. Estão vendo como eu sei as coisas? (Na verdade quem os identificou para mim foi o imediato, um genovês. Eu conquistara sua simpatia mostrando-lhe que conhecia alguma coisa de seu dialeto, por exemplo: trabalho é laburo, moça bonita é una bela figlia e cinco é cinco mesmo, escrito e falado como em português, e não, como em italiano, cinque, que se pronuncia tchinque. Aliás o que me prejudica o estilo é esta cultura polimórfica, que me faz abrir parênteses a todo instante.) “Antares”, disse ele amavelmente, “é a Alfa de Escorpião.”

Coisa que eu já sabia, mas fiquei calado, pois é antipático mostrar que a gente sabe coisa demais. Referi-lhe uma crença, comum na Marinha brasileira e certamente em outras, que atribui a Antares influências maléficas. É uma estrela muito oferecida e fácil de trabalhar com ela, mas apesar disso, quando querem determinar, por exemplo, a posição do navio, muitos nautas preferem usar outras estrelas menores e mais difíceis. Eu sabia disso pelo comandante Renato Bayma Archer, que me assessora habitualmente em assuntos navais e outros. Lembro-me de que fiquei apreensivo ao conhecer essa fama de Antares, porque Érico Veríssimo, a quem muito prezava, acabava de publicar o romance Incidente em Antares. Calei-me e não passei a informação a ninguém, muito menos ao Érico, homem de coração fraco; ele ainda viveu quatro anos.

Agora o imediato me aponta algumas estrelas um pouco à nossa direita, na frente: “aquelas você conhece.” Era o Cruzeiro do Sul, já tombado, pertinho do horizonte, com as duas maiores estrelas do Centauro em cima dele. Aqui no Equador, o Cruzeiro, quando aparece, é num cantinho de céu estreito. É como se, aí no Rio, ele nascesse diante de minha varanda mais ou menos por cima da laje da Cagarra e já descesse na Filhote da Redonda. Comovi-me um pouco ao ver aquelas estrelas tão familiares, e até amigas, que tantas vezes miro depois do jantar, da minha rede. “Boa noite”, murmurei vagamente, e quase acrescentei: “este mundo é muito pequeno.”

Nem tanto. Lembrei-me de que se ali eram quatro horas da madrugada, no Rio já seriam sete da manhã, tudo inundado de sol de verão, a praça General Osório bufando de ônibus, já fazendo calor.

Eu disse que havia “na minha frente, um pouco à esquerda, uma estrela grande, avermelhada, e um planeta brilhante”. E mais adiante acrescentei que o Cruzeiro do Sul estava “um pouco à nossa direita”.

A linguagem certa seria localizar Antares e Júpiter na bochecha de bombordo e o Cruzeiro na bochecha de boreste. É assim que se diz. Mas eu escrevo para o leitor rude e terráqueo, que não pretendo confundir, mas ilustrar. Lendo-me, ele pode não entender muita coisa, mas sempre irá aprendendo alguma.

Isso de “bochecha” de navio é engraçado. Avisa-me porém, o antigo primeiro-tenente do 1º Grupo de Aviação de Caça na Itália, hoje Brigadeiro Luiz Felipe Perdigão Medeiros da Fonseca, oriundo da Marinha, que, em suas origens, muitos termos navais eram alusivos ao corpo humano; mais precisamente, ao corpo da mulher. Coisa de marinheiro, ávido e saudoso de carinho feminino. Tanto que em inglês o barco não se designa pelo neutro it, mas pelo carinhoso she.

Em matéria de sexo há uma dúvida no Brasil que só o Estado-Maior das Forças Armadas — digam: EMFA — poderá resolver um dia: hélice na Marinha é masculino e na Aeronáutica é feminino. Quem tem razão? Para nós, paisanos, o melhor é dizer humildemente: o hélice do navio, a hélice do avião. (Não criar caso com os homens de farda; eles sempre têm razão, de um lado e de outro; e se você brincar, mandam-lhe em cima a Lei de Segurança Nacional.) Isto me faz lembrar uma vez em que fui interrogado. Eu dei uma resposta muito boa ao coronel que me interrogava; o diabo é que agora não me lembro se respondi aquilo mesmo na hora ou se foi depois que atinei com a resposta, quando já era tarde. Sou desses sujeitos sem a chamada “presença de espírito”. Meu espírito às vezes só se faz presente horas, dias depois da ocasião. O caso é que o homem se mostrava indignado e também um tanto intrigado com um artigo meu, publicado meses antes: — O que é que você quer dizer com isto?

Expliquei-lhe que eu queria dizer aquilo mesmo que estava escrito. Eu vivo de escrever, sei escrever corretamente em português do Brasil, e tenho até “redação própria”, como dizia de Otto Lara Resende, com admiração, um contínuo seu da TV Globo, vendo-o bater à máquina sem olhar papel nenhum.

Entendo esse contínuo: trata-se do chamado “mistério da criação”. Vá você domingo à praça General Osório ver a tal feira hippie. Há ali quadros de muitos pintores, representando paisagens de céu, terra e mar, e figuras de toda espécie, de mulher nua até negro velho de cachimbo. As pessoas passam, olham rapidamente, vão andando. Mas vem um artista, arma um cavalete e começa a pintar ali mesmo um retrato ou qualquer outra coisa; e logo um monte de gente se forma atrás dele, fascinante. É o encanto da coisa in fieri.

É claro que não expliquei tudo isto ao oficial que me interrogava em um quartel de São Cristóvão. Apenas, se bem me lembro, disse que eu tinha muita prática de escrever e, por isso, sabia dizer por escrito o que eu queria dizer. Assim, respondi à sua pergunta: o que eu queria dizer ao escrever aquilo era exatamente o que ali estava escrito.

Ocorreu-me então uma resposta melhor. Foi na hora, ou depois que isto ocorreu? Não me lembro, sinceramente, e às vezes tenho a impressão de que a resposta me ocorreu na hora, mas eu achei que não ficava bem.

Pois ficava. Ele queria saber o que eu queria (ou quisera) dizer num artigo que escrevera, e eu me lembrei do aviso que existe no talão do jogo de bicho. Antigamente havia um carimbo em cada talão avisando: “Só vale o que está escrito.” Com o tempo isto foi reduzido a uma fórmula mais concisa: “Vale o escrito.” Com isto o bicheiro se livra de reclamações tipo “mas eu mandei você botar invertido na cabeça”. Tenha mandado isso ou não tenha, se não está escrito não vale.

“Vale o escrito.” Regra de ouro para infirmar alegações ingênuas ou capciosas de leitores de entrelinhas. “Vale o escrito.” É perfeito.

Também muito bonita foi uma resposta que eu (não) dei ao Paulo Bittencourt, que era diretor do Correio da Manhã, onde eu trabalhei, mas, no tempo dessa conversa, ainda não trabalhava. Eu ajustava com ele o preço de umas reportagens que ia fazer no exterior para vários jornais, e a certa altura, a propósito não me lembro de que, ele disse que então preferia usar a prata da casa! Mais adiante, na conversa, ele falou outra vez na prata da casa. Só muitos dias depois me ocorreu que eu lhe devia ter dito na hora: “Então está tudo muito bem, Paulo, eu desisto, mesmo porque eu não sou prata da casa de ninguém.”
Bela resposta, e soberba! Paulo, que tinha muito de um gentil-homem, era capaz até de gostar. “Eu não sou prata da casa de ninguém!” Ou então assim: “Pois fique o senhor sabendo que eu não sou prata da casa de ninguém!” Famosa resposta! E pensar que não a dei...

Só agora percebo que comecei a falar das ilhas Galápagos, e me perdi. Vamos deixar isso para lá.
Rubem Braga, "Recado de primavera"

domingo, fevereiro 20

Gravidez!?

 


Diário de obra

Aquela velha máxima indestrutível de que o tempo, só o tempo dirá, que afinal não há melhor balança, e a ironia, a grande ironia sorri mais tarde, inumana, desde os quatro cantos da sala, lá na calada da noite. Assim matutando, mentalmente deambulando, porque, no meio do caos onde eu estava tão acostumada a viver, agora me levanto e trabalho furiosamente por algum tipo de ordem, justamente para dar lugar aos emaranhados que de fato importam. Desbravo a papelada guardada, descarto, desato, desfaço-me numa operação de voluntário esquecimento ou remetimento às fossas abissais da memória. Essa tarefa meticulosa de ir desbastando, desbastando, até uma leveza poderosa.

Falta espaço para novos livros na biblioteca? Então talvez seja hora de revisitá-la, um livro aqui, outro acolá. Reler em cada um a razão de ainda estarem ali, a razão de não terem se perdido pelo menos alguns desses velhos exemplares de páginas arenosas desvirginadas à faca. Como é que dizia Lúcio Cardoso? Que, a certa altura da vida, o que lhe interessava, o que lhe interessava mesmo, era aquilo que ainda o emocionasse. Tento encontrar essa passagem em seus diários, mas claro que ela me escapa, e é assim também que os livros nos enredam, os olhos já não correm nem a mão tem pressa, mas, convenhamos, como Lúcio Cardoso se torturava ali lancetado nos abrolhos dos próprios pensamentos! Como era cruel consigo mesmo, e com que ressaibo amargo, se não um peso terrível, ele sustentava seu pessimismo.

Diários, afinal, são também isto: crônicas de oleosa intimidade. Aquela intimidade difícil, que muita gente mal arrosta, mesmo estando só, aquela nenhuma autocomplacência em assuntos de selva escura, desses assuntos que não fazem notícia enquanto suas feridas não desabrocham a olho nu. Nos diários como os de Lúcio Cardoso, o íntimo é a notícia do dia com abastança de detalhes. Há franqueza, espera-se. Uma transparência de dar a ver melhor, lá e cá. E isso a crônica, de um modo geral, tem em comum com os diários, essa franqueza de aroma próprio, esse algo de oficina de vida vivida ao vivo, escrevendo-se em tempo real.

Pois então, assim vamos, em dia com a vizinhança e nossos próprios solilóquios, em obras, ainda que a palavra pareça bem acabada. E por mais que descartemos ou desbastemos, por mais leves, por mais paina da paina que possamos ser, sob a perspectiva dos anos, esse dia a dia crônico é o que nos vê de volta e nos relê. É aquele mais adiante que nos sorri. Talvez com doçura, talvez com ironia, talvez mesmo com um pouco de ambas. Veremos já.

Contra ferozes animais...

 


Ourives

Platero é pequeno, peludo, macio; tão macio por fora, que se diria que é todo de algodão, que não tem ossos. Apenas os espelhos a jato de seus olhos são tão duros quanto dois besouros de vidro preto.

Solto-o, e ele vai para o prado, e acaricia calorosamente com o focinho, mal as tocando, as florzinhas rosa, azul claro e amarela... Chamo-o com doçura: "Platero?" que ri, em não sei que jingle ideal...

Coma o que eu te dou. Ele gosta de laranjas, tangerinas, uvas moscatel, todas âmbar, figos roxos, com sua gota cristalina de mel...

Ele é carinhoso e fofinho como um menino, como uma menina...; mas forte e seco por dentro, como pedra. Quando passo por cima dele, aos domingos, pelas últimas ruas da cidade, os homens do campo, vestidos com roupas limpas e vagarosamente, olham para ele:

-Você tem ferro...

Tem aço. Lua de aço e prata ao mesmo tempo.

Juan Ramón Jiménez

sábado, fevereiro 19

Arca do tesouro

 


Raízes

Ehrenburg, que lia e traduzia os meus versos, repreendia-me: demasiada raiz, demasiadas raízes, nos teus versos. Porquê tantas? É verdade. As terras fronteiriças do Chile infiltraram as suas raízes na minha poesia e nunca puderam sair dela. A minha vida é uma longa peregrinação que anda sempre às voltas, que retorna sempre ao bosque austral, à selva perdida.

Ali, é certo, as grandes árvores eram por vezes tombadas por setecentos anos de vida poderosa, ou arrancadas pelo furacão, ou queimadas pela neve, ou destruídas pelo incêndio. Senti muitas vezes cair na profundidade da floresta as árvores titânicas: o roble que tomba com estrondo de catástrofe surda, como se batesse com mão colossal às portas da terra pedindo sepultura. As raízes, porém, ficavam a descoberto, entregues ao tempo inimigo, à humidade, aos líquenes, ao aniquilamento progressivo.

Nada mais belo que aquelas grandes mãos abertas, feridas e queimadas, que numa vereda do bosque nos indicam o segredo da árvore enterrada, o enigma que a folhagem mantinha, os músculos profundos do domínio vegetal. Trágicas e hirsutas, mostram-nos uma nova beleza: são esculturas da profundidade — obras-primas secretas da natureza.

Certa vez, caminhando com Rafael Alberti entre cascatas, matagais e bosques, perto de Osorno, fez-me ele notar que cada ramo se diferenciava do outro, que as folhas pareciam competir na infinita variedade do estilo.

— Parecem escolhidas por um paisagista botânico para um parque estupendo — dizia-me.

Anos depois, em Roma, Rafael recordou-me aquele passeio e a opulência natural dos nossos bosques. Assim era. Já assim não é. Penso com melancolia nas minhas andanças de menino e de jovem entre Boroa e Carahue, ou em direcção a Toltén, pelos cerros da costa. Quantas descobertas! O garbo da caneleira e a sua fragrância depois da chuva, os líquenes com a barba de Inverno pendendo dos rostos inumeráveis do bosque...

Empurrava as folhas caídas, procurando divisar o relâmpago de alguns coleópteros—os cárabos dourados, que se tinham vestido de furta-cores para dançar um minúsculo bailado sob as raízes.

Ou mais tarde, ao atravessar a cavalo a cordilheira para o lado argentino, sob a abóbada verde das árvores gigantescas, quando surgiu um obstáculo: a raiz de uma delas, mais alta que as nossas montadas, impedia-nos a passagem. Só à força de trabalho de machado foi possível abrir caminho. Aquelas raízes eram como catedrais tombadas — magnitude descoberta que nos impunha a sua grandeza.
Pablo Neruda, "Confesso que vivi"

O que restará

E eis que veio uma peste e acabou com todos os homens mas em compensação ficaram as bibliotecas
Mario Quintana.

Leitura na praia

 

Natalya Nesterova