E contudo essas percepções eram atos que podiam acontecer com estalar de dedos - menos interessantes porque alguém os havia realizado para mim. Outro leitor - minha babá, provavelmente – tinha explicado as formas, e, agora, cada vez que as páginas revelavam a imagem daquele menino exuberante, eu sabia o que significavam as formas embaixo dele. Havia um prazer nisso, mas cansou. Não havia nenhuma surpresa.
Então, um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora esquecido), vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter durado muito; talvez o carro tenha parado por um instante, talvez tenha apenas diminuído a marcha, o suficiente para que eu lesse, grandes, gigantescas, certas formas semelhantes às do meu livro, mas formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de repente eu sabia o que eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida, sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém realizara a mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos em um diálogo silenciosamente respeitoso. Como conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era todo-poderoso. Eu podia ler.
Qual a palavra que estava naquele cartaz longínquo, isso eu já não sei (parece que me lembro vagamente de uma palavra com muitos “as”), Mas a impressão de ser capaz de repente, de compreender o que antes só podia fitar é tão vívida hoje como deve ter sido então. Foi como adquirir um sentido inteiramente novo, de tal forma que as coisas não consistiam mais apenas no que os meus olhos podiam ver, meus ouvidos podiam ouvir, minha língua podia saborear, meu nariz podia cheirar e meus dedos podiam sentir, mas no que o meu corpo todo podia decifrar, traduzir, dar voz a, ler.
Alberto Manguel, "História da leitura"
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