E assim mergulhando em montes de espuma, com a saia arregaçada deixando à vista as pernas finas e arqueadas, limpava o cocô das fraldas dos meninos, clareando marrons das cuecas e o amarelo do pijama do farmacêutico.
Do outro lado do valão, Dona Cordélia, também utilizando o seu tanque, ficava esperando o momento de Dona Maria José contar o pedaço da radionovela da Nacional, que perdia sempre porque o marido e os filhos não davam tempo de nada. E mesmo que quisesse, a verdade escondia que ela não possuía aparelho de rádio.
Foi quando Dona Maria José resolveu não contar ainda o capítulo da radionovela e sim outra coisa que a impressionara muito.
– Foi sim. Deu dezessete facada nela. Imagine que monstro, Dona Cordélia. E ela não tinha nada com o tal do Francisquinho. Era uma santa. Ele, Marcolino Mendonça, que já tinha sido cabo de puliça, portanto otoridade, devendo de dar o exemplo, foi lá na hora e pronto... Cringue-cringue-cringue. O sangue tingiu o chão. Ela, Mariazinha, tinha jurado de pé junto que não tinha nada... nad... na... n... e o demonho não acreditou, puxou a faca, enfiou a faca, puxou a faca, enfiou a faca. Ela, tão linda no retrato do jornal. Ele, com aquela cara de assassino papa-figo. Cordeiro conhecia ela.
Cordeiro, o marido de Dona Maria José, conhecia todo mundo. Dona Cordélia, que não sabia ler e que, quando tinha tempo via figura de revistas, ficava excitadíssima do outro lado do valão enfiando as mãos no tanque; espremia a roupa com força, espremia estranguladoramente o sabão, como se defendesse todas as mulheres assassinadas, injuriadas, violentadas. Só tinha tempo de dizer antes que o suor corresse frio pela espinha: que coisa, mas não é?
Ananias não lia jornal, mas se deitava na sombra, ao lado de Sulamita, grudando-se em Tricolinete, espiando o capinzal queimado, sem querer apanhar o sol, mas doido para escutar tudo. Isso, quando era dia de folga. Uma manhã, Antão dava aula para os filhos de Dona Bárbara e outros meninos que apareciam e, na outra, era ele. Porém, Antão estava ficando santo demais. Começara aos poucos a empurrar tudo para cima dele e enfiar-se no mundo estranho dos seus pensamentos. Muitas vezes, Antão o descobria naquela posição e o botava para dentro, só mandando com os olhos.
Porque fora pensar naquilo. Seus ouvidos habituados descobriram o som dos passos de Antão do outro lado da casa. Esqueceu-se de que era um anjo de 86 anos e correu pressuroso para o lado contrário. Viu que o irmão caminhava lentamente para o portão. Na certa o procurava para ver se ele se encontrava brincando com a criançada.
Ananias olhou o portão e se postou mansamente ao lado de Antão. Os dois espiavam o avançar da luz.
A rua branca do subúrbio se perdia igual, indiferente, imutável. Todas as casinhas se projetavam dentro de uma cerca de crótons ou outro arbusto semelhante. Os pés de jamelão eram quase infalíveis em cada quintal. Os de tamarindos, apesar de muitos, apesar de grandes e velhos, rareavam mais.
Gente passava levando marmitas em direção à fábrica. Os homens da pedreira se encaminhavam para o Murundu.
O peixeiro aparecia perto com o cesto na cabeça e uma porção de gatos fazendo miau atrás. Parava e os gatos paravam. Andava e os gatos repetiam o miau.
Mulheres malvestidas, despenteadas coçando a cabeça, dando cafuné nos piolhos, vinham olhar a rua e gritar por qualquer coisa. Ou chamar um filho ou brigar com as vizinhas. Meninos barrigudos com o pipiu de fora, remelentos, seguravam nas saias da mãe e olhavam a rua sem compreender ainda o seu significado.
Seu Edmundo passou lento, lento na caminhada igual de todos os dias. Ia comprar o jornal, jogar no bicho e trazer o pão. Essas coisas, essas três coisas, sobretudo o bicho, ele pagava. O resto, não, porque a aposentadoria não chegava pra nada.
Gente fazia grupinhos, se cumprimentava e falava de doenças longes. A Nega Eugênia, que praticava pequenas sessões de macumba, era casada com seu Benedito Carpinteiro, que por sinal era branco, surdo e morfético e ainda fazia linguiça para vender, veio de lá fazendo arrepios nos meninos-remelas. Olhou os santos sem malquerença ou inveja e também não deu bom-dia. Mas eles nem notaram.
O prestamista Jacob tinha que surgir num dia bonito desses. Pois se ele aparecia nos dias feios de chuva, quanto mais hoje. Jacob tinha boca de ouro, riso pregado, calças de listas e paletó de casimira, engraxado de tanto suor. O suor fazia ilhas nas costas, escorregava pelas pernas, pingava nas botinas e criava grudes de poeira nelas. Batia nos portões e ouvia: hoje não tem. Saía. Batia noutro e: hoje tem. Diminuía mil-réis na conta. Quando essa conta fosse acabando, ele venderia para o São João. Quando a do São João ficasse magra, ele engordava a do Natal. Jacob foi batendo e sumindo.
Também Fiote passou, gordo, grande e vermelho com os olhos inchados contornando espirais na poeira da rua. De noite ele voltaria grande, gordo e mais bêbado, com os olhos mais vermelhos ainda.
Tudo passava no começo do dia. Tudo passava no começo da noite. No meio, então, estagnava. Aquilo era a rua. E quando a rua parava, meninos jogavam bola de meia, bolas de gude, rodavam arcos, levavam surras das mães, soltavam papagaios, laçavam pipas, atiravam marimbaus que muitas vezes erravam o alvo e vinham achatar-se na cabeça de um infeliz passante. A rua pertencia a todos. Os fios da Light se enchiam de caveiras de papagaios e arraias. Vinha o carro da Light e fazia um escarcéu dos diabos; retiravam os bambus balouçantes, endireitavam os fios, faziam ameaças, se pegassem o autor, capavam, multavam e etc...
Entretanto, a molecada era coletiva. Ninguém traía ninguém, porque a rua era deles. Aquela confusão de rua, com brinquedos coloridos simples.
Os palavrões sobravam. Surgiam precocemente nas menores idades e chegavam a ser bonitos, tal a ingenuidade da força com que eram ditos.
Uma vez Dona Bárbara agarrou um pelas orelhas e perguntou se sabia o que era filho da... então ela se vestiu de ternura e explicou que ele estava xingando a mãe do outro e que a mãe não tinha culpa de nada. O menino ficou sabendo e xingava agora com mais vontade, porque sabia o que atingia no palavrão. Era muito melhor.
A rua era aquilo. O sol se espojando no verão. Tricolinete fuçando rapidinha alguma poça de lama em volta de algum cano rebentado. A amarela Sulamita, magra, comprida, gata-cauda, dormindo com uma réstia de olho amarelo aparecendo, se esticava no meio da areia. Raça Dura não dava bola para ela e ficava, no máximo, no portão, enquanto Antão permanecia, depois acompanhava-o para pensar e endurecer-se.
A poeira aumentava na rua quando vinha um jogo de bola de borracha, quando vinha carroça, quando vinha a tropa de mulas carregadas em busca do mercado; os burros faziam aquele barulho e deixavam escapar bolotas verdes rolando nos caminhos e atulhando o chão. De tarde o sol teria secado tudo. Carros de rodas de borracha, só o da Light. Mais raro, o doutor no carro dele. Uma vez a cada século a assistência plequeteava o sino. Aí a rua se alvoroçava em peso e todo mundo corria para saber. Dona Maria José abandonava o tanque e chegava ao destino antes da assistência. Adivinhava o local por instinto e servia na certa de mestre de cerimônias para o estudante de medicina e dava uma mãozinha para os enfermeiros. Os portões se apinhavam de gente querendo saber o que era o que não era. A molecada disparava atrás da assistência, cujo sininho fazia piedosamente pelec-pelec.
A linguagem da curiosidade ligava a rua e o que foi e o que não foi habitava os olhares ansiosos. Os boatos surgiam e se apagavam como luz de farol. Já Dona Cordélia se sentiria doente espiritualmente e lavaria a roupa devagar, suavemente, como se fosse feita da fragilidade da espuma do sabão...
Agora não havia ninguém doente. A rua vivia a manhã calma. Os meninos voltariam a reinar. Estragariam novamente os fios da Light e pintariam o céu de quadradinhos de todas as cores, quadradinhos que ondulariam no vento. O peixeiro gritando, sem a sua sombra, que os gatos comiam desapareceria ao longe.
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