domingo, fevereiro 13

Os dois

“Os aglomerados urbanos estão se coagulando em cruéis megalópolis, uma forma de vida, de habitação, sem precedentes em toda a história da humanidade”, afirma Toynbee. E conclui: “confesso desconhecer se o homem conseguirá promover uma revolução de costumes tão rápida e radical que consiga salvá-lo do fim”.

Misterioso casal, conhecido apenas como os dois, que afirma existir um reino superior que só pode ser alcançado através dos discos voadores, está aumentando o número de seguidores por onde passa. Um moço e uma moça, afirmando serem seguidores dos dois, apareceram na terça-feira na cidade de Mineápolis, Estados Unidos, para pregar a nova doutrina de vida.

Confesso que vontade de seguir os dois é o que não me falta. Nasci no campo, num rancho quinchado com santa-fé, rodeado de parreiras, glicínias e bambu. Neste momento, estou encerrado em um cubículo encaixado numa massa de concreto, a uns vinte metros do solo.

No campo, minha primeira tarefa do dia era trazer as vacas para a mangueira. Depois da ordenha, saía a manguear para os mundéus alguma perdiz que nem desconfiava de estar vivendo seu último passeio matutino. Hoje, saí deste cubículo elevado, por outro cubículo menor desci até o solo. Se tivesse carro, penetraria noutro cubículo ainda menor, para dirigir-me a um outro cubículo, maior ou menor, mais alto ou menos alto, isto não importa, mas sempre cubículo. Assim é a cidade: a encenação impecável de um conto de Kafka.

Não creio seja difícil criar hoje em dia seitas e religiões. Basta que alguém, suficientemente fanático e demagogo (no sentido original da palavra), anuncie uma nova doutrina de vida, um novo reino, algo novo. Anuncie seja o que for, mas que seja novo. Um retorno à natureza, talvez, o que como ideia nada tem de novo, mas ficou para sempre em teoria.

Quem não gostaria de estar no mar ou no campo neste sábado? E quem está não gostaria de permanecer? Mas segunda-feira é a volta aos cubículos, às trajetórias verticais e horizontais de um cubículo a outro.

Num estado totalitário, onde até mesmo o pensamento de seus cidadãos era controlado pelo Estado, através de uma droga chamada kalocaína, foi descoberta uma seita subversiva e vasta. Para espanto dos policiais, a seita não tinha organização:

— Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado.

A seita tampouco tinha nome.

— Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Apenas existimos.

Tampouco tinha chefes. Uns conheciam alguns outros, e apenas isso. Quando os policiais ouviram que a seita não tinha objetivos definidos, pensaram estar tratando com loucos. O desejo mais preciso que manifestavam era:

— Queremos ser... queremos tornar-nos... uma outra coisa...

Poucas informações tenho sobre os dois. Os repórteres internacionais correm atrás de grandes nomes, nenhuma preocupação teriam com dois que nem nome têm. Mas os dois merecem uma atenção maior de nossa parte. Pois no fundo, os dois somos nós todos, que estamos levando uma vida que não é a que sonhamos.
Janer Cristaldo, "A força dos mitos"

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