Falamos com a família por vídeo. Muito alarido a ver quem já está a cozinhar, quem não quer sair da cama, quem trabalha à distância, quem tem mais medo, quem não tem medo algum. Vemo-nos despenteados, metidos em robes, informais. A família acontece sem grande encenação, apenas o roteiro íntimo das personalidades do costume. Antes que digamos, todos sabemos quem dirá o quê.
Estou na casa da minha mãe, feroz e atento. Ando à espreita da porcaria de vírus que nos ronda a todos. Procuro sair de casa o menos possível. Afasto-me das pessoas. Não quero conversas, irrita-me que tanta gente se mexa aqui pelas Caxinas. Estive a contar, durante 15 minutos, a porta do prédio abre num intervalo máximo de 50 segundos. A cada 50 segundos alguém entra ou sai, e falam e protestam uns com os outros cheios de teorias. Ninguém usa luvas, máscaras. Nada. Há menos pessoas nas ruas das Caxinas mas, quem há, passa igualzinho ao tempo em que éramos felizes, sem medo. A felicidade é não ter medo.
Levo o Crisóstomo à rua duas vezes ao dia. Pela manhã e ao fim da tarde. Apresso um pouco o passeio. O cão pressente que algo não está bem. Olha para mim constantemente. Antes, não me olhava. Importava-lhe nada o meu humor. Agora vai desconfiado como a medir os meus planos ou os planos do mundo. Na marginal, diante da praia que parece mais limpa do que nunca, há quase ninguém. Que irónica a ideia de o mundo se embelezar contra nós. Quero dizer, ficar mais belo sem nós. Estratégia maquiavélica da natureza para se deleitar com suas deslumbrantes paisagens enfim postas em paz.
Vincente Van Gogh |
Confundi os sacos do lixo e atirei ao contentor a minha roupa, o cobertor favorito da minha mãe, uma toalha de banho com uns remates às cores que comprara numa loja com a mania. As minhas calças mais novas, uma camisa boa. Vou aos contentores cheio de etiquetas para não tocar em nada, porque o vírus pode sobreviver em plásticos, nos vidros, nos cartões. Que filho da puta de vírus nos haviam de arranjar. Que raiva profunda. Prometi à minha mãe voltar à mesma loja e comprar outro cobertor igual, o mais confortável que alguma vez vi. E outra toalha daquelas que parecem só de enfeitar. Agora, temos a impressão de que frequentar lojas, descer a Rua de Santa Catarina ou almoçar no vegetariano de Matosinhos é algo de tão antigamente, tão de uma cultura abandonada, como se fosse obsceno, algo que o decoro proibiu. Como são disruptivas estas realidades distópicas. Em duas semanas abrem um fosso gigante, talvez intransponível, entre quem vínhamos sendo e quem estamos a ser.
Passo o tempo a explicar aos amigos que trabalho em casa há mais de 15 anos. Já não dou em doido com gerir o meu tempo sozinho, estabelecer objetivos e cumprir sem ter chefes ou colegas a dividir responsabilidades e expectativas. Em tão poucos dias de isolamento, alguns amigos já sobem pelas paredes, anunciam divórcios, ficam perplexos com saber como são, afinal, os filhos. Estar em casa é um exercício muito próximo a nós mesmos. É sermos elevados a uma outra potência. Intensos num tempo extenso, não temos como nos evitar a um certo espelho. Deparamo-nos com essa realidade a que chamamos: eu.
Lembro ainda de como foi perturbador que isso me acontecesse. Por uns largos meses, construí as variações possíveis para o confronto comigo. Depois, habituamo-me a tiques como se fossem atributos temperamentais da própria casa. Estava tão confundido com o espaço que deixei de me ver tão concretamente. Era, enfim, uma conquista que permitia suportar-me, porque me habituara a arrumar emoções como quem redecorava a sala, colocava uma flor no jarro, mudava os lençóis, fechava a cortina.
Tento que a minha mãe faça o mesmo. Durante o isolamento, importa que redecoremos as emoções. Que as repensemos. E até o corpo se move impossivelmente. O coração para baixo do estômago. Cuidamos da fome e esperamos. Estamos à espera. Somos bravos e trazemos da bravura a esperança.
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