sábado, fevereiro 5

Ás de espadas

.. um soldado alemão passou pedalando pela estrada...

Nossa longa viagem para a pátria dos filósofos começou em Arendal, uma antiga cidade portuária no Sul da Noruega. Atravessamos a distância de Kristiansand até Hirtshals a bordo do Bolero, e não há muito a contar sobre a viagem pela Dinamarca e pela Alemanha. Tirando Legoland e o gigantesco porto de Hamburgo, tudo o que vimos foram rodovias e pequenas propriedades rurais. Somente quando chegamos aos Alpes é que as coisas realmente começaram a acontecer.

Tínhamos um trato, meu pai e eu. Eu não ficaria irritado quando tivéssemos de viajar compridos trechos antes de pararmos em algum lugar para dormir, e ele não fumaria no carro. Para agradar a ambos, decidimos que faríamos muitas pausas para ele fumar um cigarro. Essas pausas são o que tenho de mais vivo na memória de toda a viagem até a Suíça.

Sempre começavam com uma pequena palestra do meu pai sobre algum tema que lhe ocorria à direção do carro, enquanto eu, no banco de trás, lia um gibi do Mickey ou jogava paciência. Na maioria das vezes tratava-se de alguma coisa que tinha a ver com mamãe. Quando não, ele discorria sobre qualquer um de seus temas prediletos.

Desde que voltara a terra firme, depois de muitos anos no mar, ele se interessava, por exemplo, por robôs. Até aí nada de extraordinário; em se tratando de meu pai, porém, a coisa não parava por aí. É que ele estava plenamente convencido de que um dia a ciência conseguiria produzir seres artificiais. Não esses robôs idiotas de metal, que ficam acendendo luzinhas verdes e vermelhas e falam com uma vozinha oca. Não, meu pai acreditava que um dia a ciência ainda iria produzir gente mesmo, seres pensantes como nós, só que artificiais. E tem mais: no fundo ele já achava que todas as pessoas eram artificiais.

"Somos bonecos vivos", ele costumava dizer, principalmente depois de ter bebido umas duas ou três doses.

Em Legoland, eu o surpreendi pensativo diante dos enormes bonecos feitos de peças de Lego. Perguntei-lhe, então, se estava pensando em mamãe.

- Imagine se de repente tudo isso ganhasse vida, Hans-Thomas - disse ele. - Imagine se, de uma hora para outra, todos esses bonecos saíssem andando no meio dessas casinhas de plástico. O que nós faríamos?

- Você está louco - limitei-me a dizer, pois tinha certeza de que os outros pais que visitavam Legoland com seus filhos não diziam essas besteiras.

Decidi pedir-lhe um sorvete. Sabia que o melhor momento para lhe pedir alguma coisa era quando ele começava a externar suas idéias malucas. Acho que ele tinha a consciência um pouco pesada por estar sempre me amolando com esses assuntos; e quando meu pai está com a consciência pesada, sua tendência é ser mão-aberta. Já ia abrindo a boca para pedir o sorvete quando ele disse:

- No fundo somos todos figuras de Lego, só que vivas.

Meu sorvete estava garantido: meu pai finalmente começara a filosofar.

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