Parecia uma manhã de boas cores, serena. Era terça-feira ou sábado? Era terça-feira. Com distanciamento social, evitando as pessoas que vinham distraídas na sua direção, ele subia o Campo de Santana e, às vezes, o seu olhar parava em objetos que brilhavam ligeiramente: bonecas despenteadas, vesgas, sem uma perna; martelos cansados de martelar; cassetes de vídeo com filmes gravados da televisão nos anos oitenta. Ele tinha nascido perto dali. Os vendedores mais antigos da Feira da Ladra sabiam quem ele era, reconheciam-no mesmo quando usava máscara e óculos de sol embaciados. Acenavam-lhe ao longe ou aproximavam-se para darem um toque com o cotovelo, com os nós dos dedos ou só para ficarem uns diante dos outros sem saber como se cumprimentar. Tratavam-no pelo nome e estendiam-lhe um frasco de álcool-gel, persuadiam-no a usá-lo com abundância.
Nessa manhã, como sempre, procurava com mais atenção os objetos sozinhos, desemparelhados, aqueles que pareciam separados de tudo o que lhes era familiar. Não era difícil encontrá-los: luvas sem par, eletrodomésticos sem ficha para ligar à tomada, caixas de sapatos cheias de fotografias a preto e branco, famílias felizes em dias antigos. Às vezes, as costas dessas fotografias tinham dedicatórias escritas à mão: para a minha madrinha querida, como recordação do meu vigésimo aniversário; estimados tios, com votos de boa Páscoa; meu querido, nunca te esqueças da tua pequenina. Os lábios de António formavam um sorriso breve, enternecido por essas palavras, invisíveis e concretas como brisas. Muito especialmente, sentia-se tocado pela correspondência entre namorados, amor, planos de um futuro que António, em silêncio, favorecia com gestos silenciosos, com uma boa vontade que lhe inundava o peito.
Milagre, pareciam dizer as colinas da cidade.
António desceu até ao Martim Moniz. A Mouraria estava bonita. Chineses com viseiras descarregavam caixotes de uma carrinha branca, parada no meio da rua. Levavam a mercadoria o mais depressa que podiam para dentro da loja porque o elétrico haveria de querer passar a qualquer momento e a carrinha, mal-estacionada, não deixava. Tinha-se visto essa cena muitas vezes: o elétrico iria tocar a campainha com insistência. Aproveitando a curiosidade, apesar da crise de turistas, talvez os carteiristas conseguissem ganhar o dia. Nessa manhã, nas montras dos indianos, todos os relógios digitais tinham uma hora diferente. António acertou-os com o olhar.
Seguiu caminho e parou na Ginjinha Eduardino, ginjinha sem rival. Soube-lhe bem esse adocicar de boca. Chegaram uns turistas nacionais, talvez de Beja, talvez de Braga: moço, é aqui que tem a ginjinha? António segurava ainda o copo vazio e respondeu-lhes. Bebeu outra com eles. Moço, há muito tempo que ninguém lhe chamava moço. Às vezes, sentia que tinha séculos de idade. Outras vezes, realmente, sentia-se moço.
Passou pelo Rossio. Estava em frente ao teatro quando, do outro lado da rua, uma florista chamou-o. António apontou para si próprio, incerto de que estivesse a falar com ele. A florista respondeu que sim e, por gestos, voltou a pedir que atravessasse a rua. António esperou que passassem dois táxis sem pressa e lançou-se. A florista sorriu e disse: estava à tua espera. Sem explicação, ofereceu-lhe um vasinho com um manjerico. Numa pequena bandeira de papel estava escrito: Ó meu rico Santo António, do meu rico Portugal, / que bailaricos são estes com distância social? / Dos becos de Alfama às vielas da Mouraria / já não há quem aguente esta horrível pandemia.
José Luís Peixoto
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