quinta-feira, fevereiro 10

Minha religião particular

Minha religião se professa numa igreja vazia. Tem mistérios caprichosos, que só se revelam no silêncio, no escuro pouco iluminado por 12 velas deixadas por fiéis anônimos, onde um único homem reza de joelhos com o fervor de olhos espremidos.

Minha religião particular tem um pouco de pena de Deus: tanto pastor usando seu nome aos berros nas rádios, pregando ódio e castigos. Eu O imagino balançando a cabeça de desânimo, um pouco arrependido dessa história de livre arbítrio. Bons tempos quando Ele inspirava Capelas Sistinas, uma música de Caymmi, ou quando era jovem, no Antigo Testamento, e fazia descer uma praga que acabava com a palhaçada.

Gosto dos coros desafinados e com sotaque (na minha religião particular, as vozes femininas se sobressaem); dos botafumeiros pesados que pendulam sobre a nave, deixando no ar um rastro de incenso; das imagens de santas mal esculpidas; e dos vitrais coloridos com tanto exagero que nem precisam da luz do sol para se mostrar. Desgosto é de gente que deseja de todo o coração o mal a alguém.

Rezo para meu pai me lembrar do que ele faria. Rezo para ter a determinação da mãe. Para agradecer por tanto. Peço por saúde, gente doente é tão triste. Em nome do pai, da mãe e de Santo Inácio de Loyola Brandão.

Meu Deus é a natureza (minhas escrituras, tão ignorantes, mal sabem direito o que é a natureza). É Saturno, cocadas brancas e os afrescos de Giotto. Minha bíblia acolhe o casal de sapos esquecidos por Noé. Meu confessionário são os amigos na mesa do bar que não me julgam. Meus jejuns, ridículos, incapazes de durar cinco horas, ao contrário das tantas dedicadas ao paganismo.


Krishna para mim é George Harrison. Buda, um gordinho gente boa em paz com o mundo e consigo mesmo. Creio na sabedoria de Confúcio e nos muçulmanos que sabem sorrir. Nos taoístas que convidam os xintoístas para um churrasco. Nos luteranos que batem palminha quando a fumaça negra anuncia a escolha do novo Papa. Amém a todos os que querem bem e andam desarmados. Mas minha crença particular também é o ateísmo do poeta Carlos.

Na minha religião, não há camelos num raio de 30 mil quilômetros; mesmo as agulhas, não sei onde se escondem – portanto, a entrada para o Reino dos Céus está facilitada. Minha seita pessoal só considera pecado coisa muito séria. E uma luz vermelha suspeita vem da sacristia.

Sou devoto dos gestos de bondade das pessoas que menos têm pra dar. Creio nos desesperados que não esperneiam. Nos mansos capazes de perdoar uma ofensa que machucará o resto da vida. Nos presépios mequetrefes, onde uma cabra e um burrinho pastam num chão de serragem, sob uma estrela feita de papel laminado. Nos devedores para a Caixa Econômica Federal. E nos adultos que, na noite de Natal, enxergam uma estrela brilhante que não existe e fazem um pedido, crentes que serão atendidos.

No mais, tudo continua tão misterioso como daquela vez em que uma senhora sorridente entrou na nossa classe do 3º primário para nos revelar que Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo eram uma só pessoa. A cara da molecada, vocês precisavam ver.
Cássio Zanatta

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