sexta-feira, junho 30

Boa viagem!

 


Ler os outros

Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o ato de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?

Mia Couto, "E se Obama fosse africano?"

Os dois

“Os aglomerados urbanos estão se coagulando em cruéis megalópolis, uma forma de vida, de habitação, sem precedentes em toda a história da humanidade”, afirma Toynbee. E conclui: “confesso desconhecer se o homem conseguirá promover uma revolução de costumes tão rápida e radical que consiga salvá-lo do fim”.

Misterioso casal, conhecido apenas como os dois, que afirma existir um reino superior que só pode ser alcançado através dos discos voadores, está aumentando o número de seguidores por onde passa. Um moço e uma moça, afirmando serem seguidores dos dois, apareceram na terça-feira na cidade de Mineápolis, Estados Unidos, para pregar a nova doutrina de vida.

Confesso que vontade de seguir os dois é o que não me falta. Nasci no campo, num rancho quinchado com santa-fé, rodeado de parreiras, glicínias e bambu. Neste momento, estou encerrado em um cubículo encaixado numa massa de concreto, a uns vinte metros do solo.

No campo, minha primeira tarefa do dia era trazer as vacas para a mangueira. Depois da ordenha, saía a manguear para os mundéus alguma perdiz que nem desconfiava de estar vivendo seu último passeio matutino. Hoje, saí deste cubículo elevado, por outro cubículo menor desci até o solo. Se tivesse carro, penetraria noutro cubículo ainda menor, para dirigir-me a um outro cubículo, maior ou menor, mais alto ou menos alto, isto não importa, mas sempre cubículo. 
Assim é a cidade: a encenação impecável de um conto de Kafka.

Não creio seja difícil criar hoje em dia seitas e religiões. Basta que alguém, suficientemente fanático e demagogo (no sentido original da palavra), anuncie uma nova doutrina de vida, um novo reino, algo novo. Anuncie seja o que for, mas que seja novo. Um retorno à natureza, talvez, o que como ideia nada tem de novo, mas ficou para sempre em teoria.

Quem não gostaria de estar no mar ou no campo neste sábado? E quem está não gostaria de permanecer? Mas segunda-feira é a volta aos cubículos, às trajetórias verticais e horizontais de um cubículo a outro.

Num estado totalitário, onde até mesmo o pensamento de seus cidadãos era controlado pelo Estado, através de uma droga chamada kalocaína, foi descoberta uma seita subversiva e vasta. Para espanto dos policiais, a seita não tinha organização:

— Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado.

A seita tampouco tinha nome.

— Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Apenas existimos.

Tampouco tinha chefes. Uns conheciam alguns outros, e apenas isso. Quando os policiais ouviram que a seita não tinha objetivos definidos, pensaram estar tratando com loucos. O desejo mais preciso que manifestavam era:

— Queremos ser... queremos tornar-nos... uma outra coisa...

Poucas informações tenho sobre os dois. Os repórteres internacionais correm atrás de grandes nomes, nenhuma preocupação teriam com dois que nem nome têm. Mas os dois merecem uma atenção maior de nossa parte. Pois no fundo, os dois somos nós todos, que estamos levando uma vida que não é a que sonhamos.
Janer Cristaldo, "A força dos mitos"

Magia portátil


Os livros são uma magia exclusivamente portátil
Stephen King

Uma senhora

Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro — trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!... Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada — cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico. — Econômico? Então se encera mesmo.

O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera — da boa, vê lá! — chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço: está ouvindo, Seu Fernandes?

Estava sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel reformado, que lhe virou por cima do corpo.

Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar; contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia visitas, nem recebia. Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados que andavam na escola pública, Elcio, Élcia e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do marido e dá ideia o que seria depois de dez anos de casada, se depois da Elcina não tomasse as devidas precauções.

— Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida — aconselhava na hora da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; os filhos da tua amiga Quinota...

E os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposicionistas, elogiados pelos do governo — a Folha dizia que era um gesto de Mecenas, mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé.

Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique, confessava. Chegando o carnaval, tirava a forra.

As economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os juros. Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tinto! gasta aquele dinheirão em anúncios. Tirava do cabide a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas: — No automóvel, ninguém repara, meu filho — dizia com um sorriso, ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te? Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata. No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três, perguntava para o marido: — Quanto temos ainda?

Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encrencada!), fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:

— Duzentos e oitenta.

— E os oitocentos do automóvel?

— Já estão fora.

— Ah! Bem... — Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode gastar mais cento e cinquenta.

O resto ficava para gastar depois do carnaval — mas entrava na verba dele — com o fígado do marido, porque depois da pândega (a experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas, vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.

Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias — falava. Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro. O “lá dentro” de Dona Quinota era uma coisa complicada, complícadíssima, que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes. Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da filharada.

— Brincaram muito? — fez Seu Adalberto, com um jeito de despeitado. — Assim, assim...

Dona Quinota dizia aquele “assim-assim” de propósito. Que lhe importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah! Ah! Ah! Seu Adalberto exultava:

— E isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi? As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros: — Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai! Seu Adalberto corrigiu logo: — Girassol, não, Artur; crisântemo.

Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisântemo ou crisantemo — quer ver que eu disse besteira?

Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos de casaca!...

— O ano que vem — Dona Quinota falou firme — nós iremos também a pé.

O marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é isto? — ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...

Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.

A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro. Torreco, torreco. Agora foi a chave — duas voltas. O pigarro do seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum brinco: Que cretinos!

Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca. Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas ao meio-dia.

Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...
Marques Rebelo, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século"

quarta-feira, junho 28

Leitor de rua

 


Promoção póstuma

Era um morto bisonho, num velório de periferia. Mas, de repente, de algum lugar, talvez do colégio vizinho, uma banda fez explodir sons triunfais pelo ar. Os netos gêmeos do defunto, duas crianças de seis anos, Joana e João, começaram a dançar, gritando viva, viva, viva, enquanto os adultos se puseram a bater palmas, como se houvessem descoberto que dentro do caixão estava o homenageado pela música retumbante.

***

Podemos ser grandes até diante de Shakespeare. Leitores, naturalmente.

***

Estou onde não estou. Uso a força do meu ser para me desconhecer. Quando eu me nego é que eu sou.

***

Houve um tempo em que andei ocultando minha tristeza, não por modéstia, mas por astúcia. Receava que olhos invejosos resolvessem tomá-la de mim. Se alguém me perguntava se eu estava triste, eu sorria.

***

Rainha minha, onde estáveis? Desde o dia em que partistes, vos chamam meus versos tristes. Rainha, não me escutáveis? Onde vos ocultáveis o vento não vos levava e nem o eco duplicava minhas palavras amáveis? Não importa. Vós voltastes e talvez vos deem prazer as que hoje tenho a dizer e as que então não escutastes. Chamo-vos de vós porque não conheço melhor forma de chamar-vos.

***

Reduz a voz, toma tento, não assumas esses ares. Se Deus te deu um talento, não foi para te ufanares.

***

Estocolmo é tão longe, e estes meus passos que não conhecem mais que o aqui e o ali levam-me, por perdas e fracassos, à Barra Funda e ao Alto do Pari.

***

A de vocês eu não sei, posso falar-lhes da minha. Minha história cabe inteira nos versos de uma quadrinha.

Daltonsday: viajando no voo do Vampiro

Joyceano roxo, Dalton Trevisan se orgulha de ter nascido dois dias antes do Bloomsday, 16 de junho, que homenageia anualmente o personagem Leopold Bloom do romance Ulísses. Em homenagem ao nosso escritor maior, que completa 95 anos, propomos instituir, a partir deste 14 de junho, o Daltonsday. Assim como no Bloomsday, sugerimos também um roteiro lítero-turístico para celebrar a Curitiba cantada por Dalton em seus mais de 50 livros. Os pontos aqui indicados são acompanhados por trechos do próprio Trevisan (sem muita bibliografia, para não atravancar a prosa).

Nossa viagem bem que pode começar pelo relógio de sol da Farmácia Stellfeld, de 1857, ainda ativo na Praça Tiradentes. que participa, no conto Prova de redação, de uma cena erótica entre um escritor velho-babão e uma lolita com uniforme de normalista: “De repente o doutor me empurra (eu? ela?) de cara contra a parede. Ergue a saia e bota o Ponteiro do Relógio de Sol (tem um lá na Praça Tiradentes, isso que é falar bonito!) dentro da calcinha entre as bochechas (ai, lindas bochechas minhas, bem redondas, assim empinadas).” Outra alusão fálica, ali perto: “O doutor exibe o que chama de Memorial de Curitiba, com troféus e escudos pendurados.”

Um dos fetiches daltescos é “a Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo”, cenário do conto Debaixo da Ponte Preta, uma fina paródia do filme japonês Rashomon: “Na noite de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, com dezesseis anos, solteira, prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julieta, atrás da Ponte Preta. Na linha do trem foi atacada por quatro ou cinco indivíduos, aos quais se reuniram mais dois. Então violada por um de cada vez e abandonada entre as moitas. Seu choro atraiu um guarda-civil, que a conduziu até a delegacia.”

O local na Marechal Floriano (entre Rua XV e Praça Tiradentes) onde ficava o sórdido bar Buraco do Tatu é outra parada no roteiro do Daltonsday: “Garçom do Buraco do Tatu, trabalhava até horas mortas; uma noite voltou mais cedo, as duas filhas sozinhas, a menor com febre. João trouxe água com açúcar e, assim que ela dormiu, foi espreitar na esquina. Maria chegava abraçada a outro homem, despedia-se com beijo na boca. Investiu furioso, correu o amante. De joelho a mulher anunciou o fruto do ventre.”

Outros marcos, materiais e imateriais, da odisseia urbana de Dalton: “Os conquistadores na esquina da Escola Normal, os bailes da Sociedade Operária, os Chás de Engenharia (“onde as donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá”), as ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço, a zona da Estação, a sociedade secreta dos Tulipas Negras (uma pioneira confraria gay), o Templo das Musas com os versos dourados de Pitágoras, o expresso de Xangai que apita na estação, o Pavilhão Carlos Gomes, as pensões familiares de estudantes, o relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto, os sinos da Igreja dos Polacos, o bebedouro na pracinha da Ordem.”

Finalmente, além da Livraria do Chain, que Dalton usou por algum tempo como posta restante informal, temos a casa do escritor na esquina da Ubaldino Amaral com a Amintas de Barros. Ali, há alguns anos, a vida de Dalton foi infernizada por uma seita que tinha seus cultos animados por um rock heavy metal ensurdecedor.

“No princípio era o silêncio na Rua Ubaldino, eis que o número 666 da Igreja Central Irmãos Cenobitas ergueu cartazes anunciando sinais e prodígios, não a flauta doce e harpa eólia para louvar o Senhor, mas a caixa de ressonância da buzina do Juízo Final e o amplificador dos agudos desafinados de Gog e Magog, além da mão esquerda não saber o que faz a direita, as duas juntas rompem no batuque iconoclasta do bumbo, nunca tal se viu na Rua Ubaldino de hospital escola gente calada.”

Passado o terror cenobita, instalou-se nos últimos anos na casa vizinha da Amintas de Barros uma sauna gay com música de discoteca. Depois de insistentes queixas, o escritor reconquistou seu direito sagrado ao silêncio. Só espero que a instituição do Daltonsday não leve hordas de turistas curiosos a perturbar o seu sossego.

Longa vida e muita paz ao nosso Vampiro querido!
Roberto Muggiati

segunda-feira, junho 26

Vá fundo!

 


O Aquém

Estimado senhor Futuro, 
de minha maior consideração:

Escrevo-lhe esta carta para pedir-lhe um favor. V. Sa. haverá de desculpar o incômodo.

Não, não se assuste, não é que eu queira conhecê-lo. V. Sa. há de ser um senhor muito ocupado, nem imagino quanta gente pretenderá ter esse gosto; mas eu não. Quando uma cigana me toma da mão, saio em disparada antes que ela possa cometer essa crueldade.

E no entanto, misterioso senhor, V. Sa. é a promessa que nossos passos perseguem, querendo sentido e destino. E é este mundo, este mundo e não outro mundo, o lugar onde V. Sa. nos espera. A mim e aos muitos que não cremos em deuses que prometem outras vidas nos longínquos hotéis do Além.
Aí está o problema, senhor Futuro. Estamos ficando sem mundo. Os violentos o chutam como se fosse uma pelota. Brincam com ele os senhores da guerra, como se fosse uma granada de mão; e os vorazes o espremem, como se fosse um limão. A continuar assim, temo eu, mais cedo do que tarde o mundo poderá ser tão só uma pedra morta girando no espaço, sem terra, sem água, sem ar e sem alma.

É disso que se trata, senhor Futuro. Eu peço, nós pedimos, que não se deixe despejar. Para estar, para ser, necessitamos que V. Sa. siga estando, que V. Sa. siga sendo. Que V. Sa. nos ajude a defender sua casa, que é a casa do tempo.
Faça por nós essa gauchada, por favor. Por nós e pelos outros: os outros que virão depois, se tivermos um depois.

Saúda V. Sa. atentamente,

Um terrestre.

Eduardo Galeano, “O teatro do bem e do mal”

120 anos: por que '1984' continua tão relevante e atual?

O escritor britânico George Orwell relutou em entregar, no dia 4 de dezembro de 1948, os originais de 1984 para os editores da Secker & Warburg, em Londres. Afinal, não estava lá muito satisfeito com o resultado.

Em carta, falou mal do livro para amigos: “Uma boa ideia arruinada”, reclamou para um. “Ficou uma barafunda e tanto”, admitiu para outro. “Não teria ficado tão soturno se eu não estivesse doente”, explicou para um terceiro.

Para Fredric Warburg, um dos sócios da editora, Orwell avisou: “Não apostaria numa vendagem alta”.

Se A Revolução dos Bichos (1945), seu livro anterior, faturou, até a data de sua morte, 12 mil libras, 1984 (1949), romance distópico que o próprio autor descreveu como “abominável” e “horroroso”, deveria faturar 500 libras.

Errou por muito.

“Orwell escreveu seu derradeiro livro desenganado. Àquela altura, não estava preocupado com o sucesso da obra, mas com a mensagem que buscava transmitir”, explica o advogado e escritor José Roberto de Castro Neves, autor do prefácio de 1984 (Nova Fronteira, 2021).'

“Numa história que se repete, ridículos tiranos (e perigosos) surgem, ameaçando a liberdade. Por vezes, têm êxito – e a civilização anda para trás. Hoje, o mundo assiste a uma guerra, com a invasão da Ucrânia. O chefe de Estado do país invasor determinou que, no seu país, não se pode usar o termo ‘guerra’, nem se admite qualquer crítica às forças armadas. Naquela nação, 1984 não é ficção, mas realidade. Isso dá uma boa mostra do motivo pelo qual esse livro ainda nos emociona”, disse.

O tempo provou que George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, estava enganado a respeito de seu último livro. Em menos de um ano, 50 mil cópias foram vendidas na Grã-Bretanha e outras 170 mil nos EUA.

Setenta e quatro anos depois de seu lançamento, no dia 8 de junho de 1949, continua frequentando a lista dos mais vendidos. Estima-se que tenha sido traduzido para 65 idiomas e vendido mais de 100 milhões de exemplares.

Em janeiro de 2017, suas vendas registraram um pico de 9.500% nos EUA. O motivo? O porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, declarou que a cerimônia de posse do presidente Donald Trump atraiu o maior público da história. Questionada sobre a falsidade da informação, a então assessora especial, Kellyanne Conway, não desmentiu o colega e, ainda, criou a expressão “fatos alternativos”.

Na obra-prima de Orwell, duplipensar é aceitar duas crenças simultaneamente contraditórias. Ou, como diria o autor, “contar mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas”.

“Muita gente pensa que, por ter feito sucesso nos EUA, 1984 é uma crítica ao comunismo. Não é. É uma crítica ao totalitarismo”, pondera o jornalista e escritor Ronaldo Bressane, autor do posfácio da edição da Tordesilhas.

“Toda semana, o ministro da Economia Paulo Guedes dizia que o Brasil estava ‘decolando’. Enquanto isso, os indicadores econômicos mostravam exatamente o contrário”.

“O intuito das ‘fake news’”, prossegue Bressane, “é criar uma narrativa, uma visão de mundo, para os apoiadores de governos fascistas e autoritários acreditarem em algo que não está acontecendo, uma realidade paralela”.

Um dos primeiros a gostar de 1984 foi o próprio Warburg. “É um dos livros mais apavorantes que já li”, afirmou.

Segundo o biógrafo Bernard Crick, autor de George Orwell: A Life (1980), partiu dele, Warburg, a ideia de mudar o título para algo mais comercial. Se dependesse de Orwell, 1984 teria entrado para a história como O Último Homem da Europa.

Quanto ao porquê de Orwell ter escolhido o título de 1984, não há consenso. A hipótese mais aceita é a de que se trata de uma inversão satírica de 1948, o ano em que o livro foi concluído.

“É sempre importante ler e reler 1984. Ainda hoje, é o romance que melhor descreve as engrenagens do poder. Avisa o leitor para ficar atento a abusos e manipulações, e mostra até onde isso pode nos levar”, alerta o jornalista e escritor Dorian Lynskey, de O Ministério da Verdade – Uma Biografia de 1984, o Romance de George Orwell (Companhia das Letras, 2021).

“Winston Smith termina a história como herói, mas começa como cúmplice dos crimes praticados pelo Big Brother. Orwell não estava escrevendo sobre mocinhos e bandidos. Estava dizendo que todos nós temos potencial para sermos corrompidos, mas que podemos escolher entre nos entregar ao poder e à ideologia ou resistir a eles”.

A pedido de Orwell, um dos primeiros exemplares foi enviado para Aldous Huxley, seu professor de francês na escola de Eton, na Inglaterra.

Em carta, o autor de Admirável Mundo Novo (1932) elogiou 1984: “Não preciso te dizer o quão bom e profundamente importante o livro é”, escreveu em 21 de outubro de 1949.

1984 é o ano em que se passa a história. O mundo está dividido em três superpotências. Ou, como prefere Orwell, superestados. São eles: Oceânia, Eurásia e Lestásia.

O protagonista da história, um funcionário público chamado Winston Smith, vive na Oceânia, o maior dos três. Compreende o Reino Unido, a América, a Oceania, grande parte do sul da África e dois países da Europa: Islândia e Irlanda.

Já a Eurásia abrange toda a Europa (exceto Reino Unido, Islândia e Irlanda), quase toda a Rússia e pequena parte da Ásia. A Lestásia engloba boa parte da Ásia, como China, Japão e Coreia, parte da Índia e algumas nações vizinhas.

Winston Smith, de 39 anos, vive em Londres, a capital da Pista de Pouso Um, anteriormente conhecida como Grã-Bretanha. Trabalha em um dos quatro ministérios: o da Verdade, no Departamento de Documentação. Na fachada do edifício, os lemas do Partido: “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e “Ignorância é Força”.

Seu trabalho é reescrever a história segundo a versão oficial do Partido. Para tanto, falsifica documentos. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, diz um trecho da obra.

Os outros três ministérios são: da Paz, do Amor e da Fartura. O primeiro supervisiona a guerra, o segundo espiona os cidadãos e o terceiro controla a economia.

Ao longo da história, Winston Smith comete pelo menos dois delitos graves: escreve um diário e se apaixona por Júlia, uma colega de trabalho. Certo dia, a funcionária do Departamento de Ficção entrega a Winston um bilhete com uma mensagem subversiva: “Eu te amo”. Sim, pensar e amar são crimes em Oceânia. Juntos, Winston e Júlia planejam ingressar num movimento clandestino de resistência, a Confraria.

Quem governa a Oceânia é o líder do Partido, o Grande Irmão, que tudo vê e controla. Pelas ruas da cidade, cartazes lembram disso a toda hora: “O Grande Irmão está de olho em você!”. Dentro das casas, teletelas funcionam tanto como aparelhos de televisão quanto como câmeras de vigilância.

Há outros dois personagens: O’Brien, um agente do governo que se passa por membro da resistência, e Emmanuel Goldstein, um ex-membro do Partido que lidera a oposição. Segundo estudiosos, o Grande Irmão teria sido inspirado em Josef Stalin e Goldstein em Leon Trotsky.

“Não creio que o tipo de sociedade que descrevi vá necessariamente ocorrer”, declarou Orwell, em 1949, “mas estou convencido de que algo parecido poderia ocorrer”. E fez um importante alerta: “O totalitarismo, caso não seja combatido, pode triunfar por toda a parte”.

“Os livros de Orwell continuam populares porque ele considerava os regimes autoritários, de esquerda ou de direita, como um perigo em potencial”, afirma o professor universitário Richard Bradford, autor de Orwell – Um Homem do Nosso Tempo (Tordesilhas, 2020).

“Em A Revolução dos Bichos e 1984, dois de seus livros mais famosos, mostrou que tais regimes não teriam que ser necessariamente impostos à população. Se os cidadãos fossem manipulados com ‘duplipensamentos’, ou o que hoje é mais conhecido como ‘fake news’, eles apoiariam qualquer coisa. E Orwell estava certo”.

No ensaio Por que escrevo (1946), Orwell classificou o ato de escrever como “horrível” e “exaustivo”, e o comparou a “uma doença penosa”. No caso de 1984, levou três anos para concluir o livro.

Entre outras influências, citava a obra de H.G. Wells, autor de clássicos da ficção-científica como A Máquina do Tempo (1895), O Homem Invisível (1897) e A Guerra dos Mundos (1898), e o livro Nós (1920), do escritor russo Ievguêni Zamiátin.

Boa parte de 1984 foi escrito na ilha de Jura, na Escócia, numa propriedade rural chamada Barnhill. O vilarejo mais próximo, Ardlussa, ficava a onze quilômetros de distância.

Na fazenda, Orwell criou galinhas, plantou hortaliças e caçou coelhos. Por vezes, precisou interromper seu trabalho para cuidar da saúde. Tinha surtos de febre e acessos de tosse. Certa vez, chegou a ser internado no Hospital Hairmyres, perto de Glasgow. “Tudo aqui floresce. Menos eu”, queixou-se ao deixar a ilha, pela última vez, em 9 de janeiro de 1949.

Como todo escritor, também tinha suas manias. Uma delas era reescrever incontáveis vezes os parágrafos. De tantas emendas e correções, as páginas ficavam simplesmente ilegíveis.

A primeira frase de 1984, por exemplo, passou por diversas versões. Começou como “Era um dia frio e ventoso no começo de abril, e num milhão de rádios soavam as 13 horas”, e terminou como “Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam 13 horas”.

Quando foi hospitalizado, deixou ordens claras para que, caso morresse, seu manuscrito fosse destruído.

Foi do leito de um hospital, o Sanatório Cranham, em Cotswolds, na Inglaterra, que Orwell, a pedido de Warburg, ditou, em 15 de junho de 1949, um breve comunicado à imprensa: “A moral a ser tirada dessa perigosa situação de pesadelo é simples: Não deixe isso acontecer. Depende de você”.

Embora não gostasse muito de 1984, Orwell escreveu para o escritor e roteirista Sidney Sheldon, perguntando a ele se não gostaria de adaptá-lo para o teatro. Não deu em nada.

Vítima de tuberculose, George Orwell morreu em 21 de janeiro de 1950, aos 46 anos, apenas sete meses depois do lançamento de 1984. Não viveu o suficiente para assistir à primeira versão audiovisual da obra. Foi ao ar no dia 12 de dezembro de 1954.

No filme escrito por Nigel Kneale e dirigido por Rudolph Cartier, Winston Smith foi interpretado por Peter Cushing.

Os telespectadores não gostaram do que viram. E telefonaram, indignados, para a rede britânica BBC. “Se é assim que vai ser o futuro, prefiro enfiar minha cabeça no forno a gás”, reclamou um. “Foi tão horrível que estive a ponto de quebrar o aparelho de televisão com um martelo”, esbravejou outro.

Não satisfeitos, ligaram, também, para a casa de George Orwell. Só não sabiam que o Orwell que constava da lista telefônica não era o original e, sim, um homônimo. Cansada de atender a tantos telefonemas raivosos, sua mulher, Elizabeth, fez um apelo desesperado ao jornal Daily Mirror: “Por favor, digam às pessoas que o meu marido NÃO é o autor dessa peça de TV”.

Apenas dois anos depois, Michael Anderson adaptou o livro para o cinema. Dessa vez, o protagonista foi vivido por Edmond O’Brien.

A versão mais famosa de 1984 talvez seja a de 1984, dirigida por Michael Radford e estrelada por John Hurt. A trilha-sonora foi assinada pela dupla Annie Lennox e Dave Stewart, do Eurythmics. Destaque para a faixa Sex Crime (Nineteen Eighty-Four).

Na música, assim como no cinema, 1984 inspirou outros artistas: do cantor David Bowie, que praticamente dedicou um disco inteiro ao livro, Diamond Dogs (1974), à banda Radiohead, que abriu o álbum Hail to the Thief (2003) com a música 2+2=5. No caso do roqueiro inglês, a ideia original era fazer um musical, mas a viúva de Orwell, Sônia, não autorizou.

No Brasil, a canção Como Dois e Dois, composta por Caetano Veloso e gravada por Roberto Carlos, faz referência a um trecho do livro: “No fim, o partido haveria de anunciar que dois mais dois são cinco, e você seria obrigado a acreditar”. No refrão da música, a letra diz: “Meu amor / Tudo em volta está deserto, tudo certo / Tudo certo como dois e dois são cinco”. A música foi lançada em 1971, em plena ditadura militar.

“Graças a Orwell, o grande público teve acesso a conceitos como ‘Grande Irmão’, a encarnação dos mecanismos da sociedade de controle, ou ‘novafala’, que denuncia os eufemismos e as distorções do discurso político, e tantos outros a que, ainda hoje, recorremos para entender a realidade à nossa volta”, analisa a escritora Jacinta Maria Matos, autora de George Orwell – Biografia Intelectual de Um Guerrilheiro Indesejado (Edições 70, 2019).

“Em suma: Orwell conseguiu pôr em prática um dos seus grandes desideratos como escritor: criar um espaço de discussão pública e democrática sobre algumas das questões essenciais da nossa sociedade”.

Ao longo das décadas, 1984 se consolidou como uma das obras mais influentes do século 20. De livros, como O Conto da Aia (1985), da escritora canadense Margaret Atwood, a séries de TV, como Black Mirror (2011), do roteirista inglês Charlie Brooker. De HQs, como V de Vingança (1997), do quadrinista britânico Alan Moore, a reality shows, como Big Brother (1999), do produtor holandês John de Mol.

Autor de Laranja Mecânica (1962), o escritor britânico Anthony Burgess chamou 1984 de “código apocalíptico dos nossos piores medos”.

No Brasil, 1984 inspirou história em quadrinhos, ilustrada pelo desenhista Fido Nesti, ganhador do Prêmio Eisner de melhor adaptação, e virou peça de teatro, encenada por Zé Henrique de Paula a partir da adaptação de Duncan MacMillan e Robert Icke. Na montagem, Winston Smith é interpretado por Rodrigo Caetano.

“Clássico é aquela obra que nunca pára de dizer o que tem a dizer. E o romance 1984 traz um verdadeiro compêndio de temas que nos interessam ainda hoje”, afirma o diretor Zé Henrique de Paula.

“É como se Orwell tivesse captado o zeitgeist (‘o espírito da época’) do pós-guerra e dos primeiros passos da Guerra Fria, mas, ao mesmo tempo, tivesse conseguido acertar um tiro de longa distância no zeitgeist dos nossos dias: uma sociedade mergulhada na vigilância do indivíduo e na perda de privacidade, manipulação midiática e pós-verdade, governos autoritários, alienação e imbecilização sociais. A lista de paralelos é extensa, mas só os exemplos acima já dão uma ideia da importância de Orwell”.

Assim começa...

Mas na metrópole há cerejas. Cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser. As raparigas daqui não sabem como são as cerejas, dizem que são como as pitangas. Ainda que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as raparigas da metrópole fazem nas fotografias.


A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, umas horas e a carne começa a esverdear, se a ponho na geleira fica seca como uma sola. A mãe fala como se hoje à noite não fôssemos apanhar o avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne assada dentro do pão, no intervalo grande do liceu. Deixa-me, mulher. Ao afastar a travessa o pai derruba a cesta do pão. A mãe endireita-se e ajeita as côdeas com o mesmo cuidado com que todas as manhãs ordena os comprimidos antes de os tomar. O pai não era assim antes de isto ter começado. Isto são os tiros que se ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro malas por fechar na sala.

Ficamos num silêncio tão cerimonioso que o barulho da ventoinha surge anormalmente alto. A mãe pega na travessa da carne e serve-se com gestos contidos que costumava usar com as visitas. Quando pousa a travessa na mesa demora a mão sobre a toalha das dálias. Agora já não há ninguém para visitar-nos mas mesmo antes de isto ter começado era raro termos visitas. A minha irmã diz, ainda me lembro do dia em que aquele galo, o galo de louça que está na bancada de pedra mármore, caiu no chão e lascou a crista. Insistimos em pormenores insignificantes porque já começamos a esquecer-nos. E ainda nem saímos de casa. O abião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos. No entanto o pai comprou bidões de gasolina que estão guardados no anexo. Talvez seja mesmo verdade, talvez o pai consiga matar a Pirata e queimar tudo. A Pirata podia ficar com o tio Zé que não se vai embora porque quer ajudar os pretos a formar uma nação. O pai ri-se sempre sempre que o tio Zé fala na grandiosa nação que se erguerá pela vontade de um povo oprimido durante cinco séculos. Mesmo que o tio Zé prometesse que tomava conta da pirata não servia de nada, o pai acha que a única coisa que o tio Zé sabe fazer é desonrar a família. E é capaz de ter razão.
Dulce Maria Cardoso, "O retorno"

sábado, junho 24

Sonho de fim de semana

 

David Milne

Milionário!

Quando eu tinha os meus sete ou oito anos e vivia em Lourenço Marques, na fronteira entre a cidade do caniço e a cidade do cimento, numa casa pelintrosa, mas com garagem (sem carro) e quintal com árvores boas para se trepar, sem telefone, sem telefonia, sem luz eléctrica e com frigorífico de carregar pela boca, mas com uma liberdade do caraças e uma data de mato por detrás do muro das traseiras e uma suspeita de cobras agachadas no dito mato, dinheiro não havia, mas tristeza e amargura também não. A malta divertia-se como podia, fazendo fisgas, espadas de pau e umas espingardas mal amanhadas. Brincávamos ao Errol Flynn, do Gavião dos Mares, ao Tarzan, da selva africana, ao Tom Mix do Farwest, e, pondo uns lenços atrás dos bonés, vivíamos o drama do Beau Geste, morrendo por cima dos muros da varanda, frente ao deserto que lá não estava. Era porreiríssimo. Mas digo mais: descobrimos depressa que se podia ser milionário, mesmo sem se possuir um tostão.


Vou dar um exemplo. Um dia, se calhar, para festejar bons resultados escolares, o meu pai conseguiu que um amigo com carro, do género calhambeque com patine, nos levasse, a mim e aos meus dois irmãos, ao Jardim Zoológico, que ficava fora da cidade. Íamos ao fim da manhã e iam-nos buscar ao fim da tarde. Mas não íamos com as mãos a abanar: levávamos uma feijoada para o almoço, um livro com boas histórias e água geladinha. Depois de uma visita gulosa aos bichos, comíamos a suculenta e bem recheada feijoada e, no fim do almoço, refastelávamo-nos no chão, como leões saciados e mergulhávamos, deslumbrados, na história do João Grande e do João Pequeno. E, depois dessa, em todas as outras, desses mundos que não conhecíamos mas que nos arrancavam, por momentos e com muita força, da Estrada do Zixaxa! Sair da Estrada do Zixaxa para os desertos africanos do Beau Geste ou para os mares do Errol Flynn ou para os paradeiros do João Grande, com poucos recursos mas com uma data de energia e imaginação – era a nossa grande proeza. Uma tarde no Jardim Zoológico, com bichos iguais aos que víamos no cinema, com uma feijoada do camando, água geladinha e histórias a dar com um pau, caramba, se isto não era ser milionário, então não sei o que seria! Era baril! Ninguém, mas ninguém, no resto do mundo, naquele momento, estava a ter um dia como aquele.

A inveja que aqueles ricaços deviam ter de nós! Bem feito! Não vive aquelas coisas quem quer, vive-as só quem sabe e pode. E nós éramos, de longe, nessa altura, os mais sábios e poderosos do mundo, naquela África quente e com espaço a nunca mais acabar. Sem cheta, mas ali, ao leme, como gente! Que se lixasse o dinheiro: a força e a alegria estavam noutro lado! Quem estava a ter um dia porreiríssimo éramos nós e não aqueles ricaços aloirados da Polana. Que, ainda por cima, usavam palavras difíceis que eu nunca ouvira!
Eugénio Lisboa

Desaprender

Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: - Cá está ele!.

Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.

Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichês, os lugares seletos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.

Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cômodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incômodo. Organiza dossiês com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prêmios.

É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e por que não?, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efêmeros como o dia a dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.

Se as coisas continuarem indefinidamente assim, o escritor pode ser alcandorado a gloríola nacional, com todos os direitos inerentes a uma situação dessas: academia, nome de rua, estatueta ou estátua, tudo isso em devido tempo, quer dizer, já velho ou já morto o escritor.

Pedra campal sobre o assunto.

Alexandre O'Neill, "Uma Coisa em Forma de Assim"

quinta-feira, junho 22

Leitura em casa

 

Maretta Aivazian 

Goiaba tem cheiro de vida

Tinha tudo pra ser só mais uma tarde normal na vida de um menino de 14 anos numa pequena cidade no interior do Ceará. Porém foi naquela tarde que eu descobri o cheiro da vida.

O dia começou como sempre começavam os dias. Acordei bem cedinho – como se diz no sertão, “ao cagar dos pintos”. Mamãe pediu – pediu não, mandou – que eu fosse lá na bodega de Seu Nonato comprar pães e ovos para a merenda. (Nunca me acostumei a chamar essa primeira refeição de “café da manhã”, acho merenda mais bonito.)

Já fui logo dizendo:

– Mãe, posso comprar o troco de bila?

(Assim como merenda, nunca chamei bila de “bola de gude”.)

– E fiado lá tem troco? – disse mamãe, achando graça. – É pra anotar na caderneta.

Saí pela porta do quintal, que já ficava de cara com a bodega, e fui.

– Seu Nonato, Mãe mandou o senhor despachar uma dúzia de ovos, dez pães lá da padaria de Elizeu e 50 centavos de bila. Disse pro senhor anotar na conta dela.


Pronto. Escondi as bilas (para mamãe não desconfiar), merendei nas carreiras e me danei pra praça dos Alípios, que, naquela hora, já estava cheia de menino brincando. A praça tinha vários canteiros de terra com grandes pés de castanhola fazendo sombra, ambiente mais do que adequado para passar a manhã inteira jogando bila.

Brincamos até dar 11h30, que era a hora marcada de ir pra casa tomar banho (às vezes só lavava os pés e molhava o cabelo), almoçar e correr pra escola.

Eu estudava na Escola Urcesina Moura Cantídio. Era perto de casa, mas mesmo assim eu sempre pegava carona com o carro da cerâmica de Osair que vinha buscar vovô todo dia e no caminho passava ao lado da escola. Era uma F-1000 vermelha que recolhia todos os peões e levava para o trabalho. Vovô trabalhou por muitos anos nessa cerâmica, que é como chamamos fábrica de telhas e tijolos.

Não lembro da aula nesse dia. Nada me marcou.

Saí da escola às 17h e corri pra casa. Nessa época, meus pais já haviam se separado, e eu, mamãe e meus dois irmãos morávamos na casa de vovô e vovó.
Joguei a mochila num canto e corri pro quintal. Fazia dias que eu vigiava uma goiaba, esperando ela ficar madura. Finalmente havia chegado a hora.

Subi no galinheiro que ficava embaixo da goiabeira e peguei a goiaba. Parecia um troféu nas minhas mãos.

Dei a primeira dentada ali mesmo, debaixo do pé – fica até mais gostoso.

Entrei em casa com a goiaba na mão e já ia saindo pra brincar na calçada, quando lembrei que ainda não tinha pedido a bênção a vovó.

Minha avó, que era uma segunda mãe para mim e meus irmãos, havia sido diagnosticada com um severo câncer de fígado. Ela, que sempre fora uma mulher durona, saudável, cheia de pose, definhou em pouco mais de quatro meses. E alguns dias antes, tinha se prostrado de vez numa cama. Nessa altura da doença, os cuidados eram apenas paliativos. Era um momento muito doloroso. Fazia dois dias que ela apenas delirava, não falava mais coisa com coisa e os olhos não se abriam.

Quando entrei no quarto, mamãe estava sentada numa cadeira. Ao me ver, disse:
– Fique aqui com sua avó um pouquinho enquanto vou passar um café.

Vovó estava de olhos fechados, a respiração tão fraquinha, os ossos já se destacavam em sua pele. Aquela cena me matava por dentro. A impressão era que nem existia mais vida ali. Era como se vovó já estivesse morta.

Foi quando ouvi ela sussurrando alguma coisa. Cheguei bem pertinho de sua boca para tentar entender. E ela disse:

– Eu queria goiaba. Eu queria goiaba.

E rolou uma lágrima em seu rosto.

Perceber que, mesmo naquela situação, no leito de morte, minha vó sentiu o cheiro da goiaba que estava em minha mão, sentiu vontade de comer, criou força para falar, retomou algum fragmento de consciência, talvez tenha conseguido ter uma lembrança da infância (ela já havia me falado que adorava goiaba desde pequenininha), tudo aquilo encheu meu coração de algum tipo de esperança misturada com felicidade. Desde esse dia, goiaba pra mim tem cheiro de vida!

Saí correndo pra chamar mamãe, eu queria muito dar um pedaço da goiaba a vovó, mas claro que não podia. Ela não conseguia mais mastigar nada, estava se alimentando apenas com soro. Mamãe disse:

– Meu filho, sua avó não pode mais comer nada. Os médicos já disseram que, até ela “descansar”, só podemos molhar a boca da vovó com algodão úmido. Deus está cuidando dela e da gente.

Saí de lá com raiva de Deus, dos médicos, de mamãe. Voltei pro quintal e, debaixo do pé de goiaba, chorei como nunca havia chorado. Era um choro de tristeza, de revolta, de culpa e, talvez, já de saudade.

Foi a última vez que ouvi a voz de vovó Maria. A noite chegou e, com ela, vieram familiares, vizinhos, amigos, a casa foi ficando cheia. Entendi naquela ocasião que existia aquele costume: quando alguém está perto de morrer em casa, as pessoas vêm para se despedir, dar força à família, essas coisas.

Já era tarde, talvez umas 11 da noite, quando passei no corredor que dava acesso ao quarto e, pela porta, vi vovô sentado numa cadeira posta na cabeceira da cama. Ele estava calado, de cabeça baixa, e passava a mão calejada carinhosamente na testa de sua companheira de vida. Vez por outra, um filho, um parente, um amigo segurava na mão dela.

Dormi. Quando acordei, no dia seguinte, corri para a porta do quarto, queria me certificar de que minha avó ainda estava viva. A madrugada havia passado e meu avô continuava exatamente na mesma posição, fazendo o mesmo gesto de carinho. Tinha mais gente no quarto também.

Sentei numa cadeira de balanço na sala e poucos minutos depois vi meu avô saindo do quarto. Senti uma dormência naquele momento. Um vazio. Eu sabia que ele só soltaria a mão de vovó e sairia daquele quarto quando ela não estivesse mais ali.

E assim foi.

A dor foi terrível. A saudade é valente e latente. Mas saber que, no último suspiro de vida da vovó Maria, tanta gente segurou em sua mão, foi um pingo de felicidade naquela chuva de tristeza.

P.S. Sempre que sinto cheiro de goiaba, tenho certeza de que estou vivo!
Bráulio Bessa, "Um carinho na alma"

Gente nova no pedaço


A leitura nos traz amigos desconhecidos
Honoré de Balzac

Os dragões

Fui irmão de dragões e companheiro de avestruzes. ( Jó, XXX, 29)

Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.

Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.

A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de dragões, “coisa asiática, de importação europeia”. Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.

Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.

O cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos. Mesmo mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto.

Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos. A ideia pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se tratou da partilha dos animais. O número destes era inferior ao dos pretendentes.

Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar objetivos práticos, o padre firmou uma tese: os dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados.

Até aquele instante eu agira com habilidade, evitando contribuir para exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me a calma, o respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante. Irritadíssimo, expandi o meu desagrado:

— São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!

Perplexo com a minha atitude, nunca discrepante das decisões aceitas pela coletividade, o reverendo deu largas à humildade e abriu mão do batismo. Retribuí o gesto, resignando-me à exigência de nomes.

Quando, subtraídos ao abandono em que se encontravam, me foram entregues para serem educados, compreendi a extensão da minha responsabilidade. Na maioria, tinham contraído moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer. Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos. Mais bem-dotados em astúcia que os irmãos, fugiam, à noite, do casarão e iam se embriagar no botequim. O dono do bar se divertia vendo-os bêbados, nada cobrava pela bebida que lhes oferecia. A cena, com o decorrer dos meses, perdeu a graça e o botequineiro passou a negar-lhes álcool. Para satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos.

No entanto eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e superar a descrença de todos quanto ao sucesso da minha missão. Valia-me da amizade com o delegado para retirá-los da cadeia, onde eram recolhidos por motivos sempre repetidos: roubo, embriaguez, desordem.

Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia a maior parte do tempo indagando pelo passado deles, família e métodos pedagógicos seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos interrogatórios a que os submetia. Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha. Para dificultar a minha tarefa, ajuntava-se à debilidade da memória dos meus pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites maldormidas e ressacas alcoólicas.

O exercício continuado do magistério e a ausência de filhos contribuíram para que eu lhes dispensasse uma assistência paternal. Do mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos obrigava-me a relevar faltas que não perdoaria a outros discípulos.

Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades. Desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver com ele.

Tudo fiz para destruir a ligação pecaminosa e não logrei separá-los. Enfrentavam-me com uma resistência surda, impenetrável. As minhas palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava.

Pouco tempo depois, ela foi encontrada chorando perto do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito, provavelmente de um caçador de má pontaria. O olhar do marido desmentia a versão.

Com o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher transferimos o nosso carinho para o último dos dragões. Empenhamo-nos na sua recuperação e conseguimos, com algum esforço, afastá-lo da bebida. Nenhum filho talvez compensasse tanto o que conseguimos com amorosa persistência. Ameno no trato, João aplicava-se aos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado. Findo o jantar, ficávamos no alpendre a observar sua alegria, brincando com os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas, dava cambalhotas.

Regressando, uma noite, da reunião mensal com os pais dos alunos, encontrei minha mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade.

O fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que gozava entre as moças e rapazes do lugar. Só que, agora, demorava-se pouco em casa. Vivia rodeado por grupos alegres, a reclamarem que lançasse fogo. A admiração de uns, os presentes e convites de outros, acendiam-lhe a vaidade. Nenhuma festa alcançava êxito sem a sua presença. Mesmo o padre não dispensava o seu comparecimento às barraquinhas do padroeiro da cidade.

Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município, um circo de cavalinhos movimentou o povoado, nos deslumbrou com audazes acrobatas, engraçadíssimos palhaços, leões amestrados e um homem que engolia brasas. Numa das derradeiras exibições do ilusionista, alguns jovens interromperam o espetáculo aos gritos e palmas ritmadas:

— Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!

Julgando ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou o desafio:

— Que venha essa coisa melhor!

Sob o desapontamento do pessoal da companhia e os aplausos dos espectadores, João desceu ao picadeiro e realizou sua costumeira proeza de vomitar fogo.

Já no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar no circo. Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o prestígio que desfrutava na localidade. Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito municipal.

Isso não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos, verificou-se a fuga de João.

Várias e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento. Contavam que ele se tomara de amores por uma das trapezistas, especialmente destacada para seduzi-lo; que se iniciara em jogos de cartas e retomara o vício da bebida.

Seja qual for a razão, depois disso muitos dragões têm passado pelas nossas estradas. E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos.

Murilo Rubião, "Obra completa"

quarta-feira, junho 21

Leituras de barco

 


O espelho e Mabel

A noite caridosa não deixou que a rua descalça visse direito o desembarcar da mudança. Mesmo assim muita gente se postara por trás das cercas de crótons e espiava. Como a meninada espiava tudo sem comentar.

Luzes acesas e aquele choque de Mabel ante as paredes mal caiadas. Ante a pobreza de tudo. A vida encolhera a comodidade como a água encolhe qualquer tecido vagabundo.

Na manhã seguinte, após um sono cruelmente incômodo, teve de levantar-se cedo para analisar os limites do abandono. Nem sequer uma tampa de privada existia na casinha que por crueldade se colocava fora da casa. Igual a todas as outras tantas casas na vizinhança. Dentro havia um pequeno tanque e um banheiro que nunca conhecera uma coisa chamada água quente.

Do lado de fora, sob uma cobertura, existia um tanque de lavar roupa que a esperava e a esperaria todos os dias.

Felizmente, na mesinha modesta da cozinha, Roberto fizera o café simples e se encarregara de ir a qualquer botequim comprar pão e uma lata de manteiga.

Por dois dias todos deixariam de trabalhar para colocar a casa em ordem. E a casa tomou um certo jeito. As camas ficaram feitas, e as roupas, guardadas em pequenos armários e na cômoda rósea e usada da sala. Sobre ela colocaram o velho relógio, que parecia suspirar de desgosto marcando o tempo. Parecia sentir falta do que o cercava na antiga casa. Era horrendo o seu vidro refletir pedaços de teto onde não existia forro e sim as telhas vãs, as telhas nuas. De noite, ele via o penetrar até de morcegos. Fato comum em casa que ficara fechada muito tempo. Mas com a invasão da gente, os morcegos voltariam a morar nos laranjais e nos valões no fundo dos quintais.

Foram dois dias e duas noites terríveis. Tinham perdido a vontade de conversar e por qualquer coisa soltavam apenas um sorriso de consolo e resignação.

Depois apareceu o pior. Os filhos levantavam-se ainda madrugada, deixavam-na dormindo e saíam a caminho da estação. Então o seu amanhecer diferente, sem a criada levando-lhe o café na cama, despertou-a em todo o seu amargor. Ainda bem que os filhos procediam com uma humanidade de comover. Deixavam até a pouca louça do café lavada e enxuta.

Sentiu maior o seu grito de silêncio e solidão. Estava só. Lavara o rosto na torneira do tanque e reparou na manhã quente que se anunciava.

Sentou-se desanimada num tamborete e mesmo sentada acendeu uma espiriteira de álcool onde requentou o café. Não tinha vontade nem de conversar com a alma. Apenas rolou as mãos do desânimo ante os olhos, analisando os dedos. Ergueu-se e foi apanhar a tesourinha de unhas sobre a cômoda cor-de-rosa. Enquanto não esquentava o café, principiou a decepar as compridas unhas, visto não significarem mais nada.

Serviu-se do café e mastigou a vida sem importância em forma de pão. Urgia calçar um sapato velho e de salto baixo para ir até à quitanda e ao açougue comprar coisas para cozinhar. No começo, até que se acostumasse com aquilo, a comida deveria sair horrorosa.

Caminhava pela rua de olhos baixos para que não descobrissem o seu desespero. Para não divisar aqueles rostos tão feios e mais feios ainda quando era forçada a encará-los. Forçoso seria engolir em seco em vez de lamuriar-se ou xingar a alma de Gustavo.

Passava os dias só. Completamente só. Não queria mais lembrar-se da outra casa, nem sequer manteria a ilusão de que alguma das “grandes amigas” apareceria até o subúrbio para visitá-la.

Já passadas as oito horas, arrumava-se e se penteava para esperar a chegada dos três filhos e sentir que havia ainda vida ao seu redor.

Mas os três chegavam incrivelmente cansados e pouco tinham a dizer. No começo nem sobraria dinheiro para o gasto de um jornal. E sem música, sem nada para ler, Mabel ruminava o tempo, driblando todos os pensamentos que pudessem torturá-la ou que enchessem os seus olhos de lágrimas quentes.

E algo de tremendamente triste e indiferente começou a se esticar pelas parcelas do seu ser. Pegava a vassoura e varria muitas vezes a casa, sacudia o pó dos poucos móveis que a rua descalça derramava. Fugia de todo o ruído que a rua proporcionava. Não ouvia a briga das mulheres nem o grito do peixeiro. Tapava o ouvido para eliminar os apitos da fábrica.

Se não fizesse assim, acabaria louca, completamente louca. Por vezes sentia rostos vizinhos olhando para o seu degredo. Mas não queria saber de ninguém. Não saberia se aproximar de ninguém tal a distância que a vida lhe preparara, tal a pouca esperança de poder entender aqueles seres que a cercavam.

Vez por outra, parava defronte do espelhinho oval, colocado na cozinha, onde os filhos faziam a barba e se penteavam, e tentava saber se ainda voltaria a ser alguém ou se adquiriria uma nova personalidade que tivesse vislumbres de vida. Mas nem o pequeno espelho sabia conversar, dizer algo que a consolasse ou mesmo criasse um certo ânimo, uma estreita esperança.

Apenas o rosto cansado, mais gasto, sem pintura. As manchas brancas do cabelo invadindo toda a parte onde a tintura ia se desgastando. Só.

– Mabel, você não é nada. Nada! Olhe a sua alma e você verá que não tem mais significado algum dentro da vida.

Sorriu inventando coisas. Se caminhasse até à ponta da cozinha e viesse de lá da porta, o espelhinho, o que refletiria? Uma velha feia, uma bruxa de cabelos caindo sobre a testa, com uma blusa florida e uma saia simplesmente escura. Os sapatos macios, é verdade, mas de salto baixo e usados. Longe se fora o tempo dos sapatos de verniz, de sapatos prateados, dourados…

– Longe, Mabel, que nem você mesma acredita se existiu!...

No quarto dia aconteceu aquilo que mais a apavorava. Nunca fora mulher de pregar um botão. E sempre ouvira dizer que as meias velhas se cerziam. Mas agora a coisa tornava-se uma tragédia maior. O cesto de roupa suja estufava peças para fora. Meias, camisas e cuecas.

Fazia menos de cinco dias que Ricardo esticara uma corda entre duas velhas laranjeiras e sorrira para ela significativamente e com pena. Arrastou o cesto até junto do tanque. Arrolhou-o e deixou escorrer a água da bica. Pelo meio, principiou a jogar peças, uma de cada vez, dentro d’água, que faziam borbulhas ante os seus olhos apavorados. O sabão estava ao lado.

Foi lá dentro, procurou um lenço e instintivamente prendeu os cabelos.

– Não, Mabel. Você prometeu que nada a desanimaria. Pois que está feito, está feito. É só questão de começar.

Enfiou meio enojada as mãos na água tépida e apertou, afogou as peças na água corrente. Desajeitadamente puxava as peças para fora e esfregava o sabão.

Repetia muitas vezes e suas mãos ardiam. Começou com as peças mais leves. Depois de ensaboadas, torceu-as e encaminhou-se para a corda, pendurando-as e até meio satisfeita com a sua conquista. Sentia o sol arder na pele branca, mas não ligou. Voltou para o tanque e tornou a lavar maior número de peças. Quando voltou ao coradouro, o sol ainda era mais forte. Felizmente um pedaço de vento apareceria vindo do fundo do quintal.

Pela terceira vez retornou ao tanque e retirou as últimas peças, torcendo-as; ia encaminhar-se para o varal quando o que viu estancou-a, estrangulando um grito de revolta na garganta.

O vento tinha derrubado todo o seu trabalho. A roupa lavada, no chão de terra e detritos.

Não se conteve, abriu as mãos e deixou que as peças também procurassem o chão.

Bateu com as mãos na parede do tanque por alguns segundos e começou a soluçar, encostando a cabeça no mesmo lugar em que antes batera.

– Meu Deus!... Meu Deus!... Preciso recomeçar tudo de novo.

Continuou soluçando compridamente. Quando uma mão de leve tocou em seus ombros e uma voz toda bondade lhe falou:

– Num chore não, dona. Eu ajudo a senhora.

Ainda de rosto lavado, desvirou-se para a mulher. Era feia, gasta e rachada de rugas, mas seus olhos expandiam bondade.

– Espere um bocadinho.

Foi até a cozinha e trouxe um tamborete.

– Se sente até se acalmar um pouco.

Mabel obedeceu ainda em soluços.

A mulher foi até o varal e recolheu toda a roupa no chão. Voltou sorrindo, esboçando dentro da boca a falha de muitos dentes e a podridão de outros.
– A senhora se esqueceu de colocar os pregadores.

Jogou a roupa dentro da água nova e conversou para acalmá-la.

– Na certa a senhora não tem pregador, não é?

Concordou com a cabeça, mesmo sem saber o que era.

– Eu dou um pulo lá em casa e lhe arranjo uns.

Mabel seguiu-a com os olhos e viu que a mulher passava por um buraco da cerca. Não demorou muito a voltar. E, enquanto o tanque enchia mais, sentou-se em sua beira e tornou a sorrir feiamente.

– A senhora nunca tinha feito isso antes, num foi?

– Nunca. Nunca em minha vida.

Espalmou as suas mãos feridas. As marcas da vassoura e o vergão do esforço ao torcer as peças.

– Que estrago, dona! Umas mãos assim bunitas num nascero pra essas coisa. É uma lasma mesmo. Mas eu dou um jeito. Passei toda a minha vida assim. Foi desde menina. Depois saí da fábrica pra me casar. E nunca mais existiu outra coisa. Menino e pregador.

Enfiou a mão no tanque e Mabel ficou admirada com a habilidade com que fazia tudo. Parecia nem exigir esforço das suas mãos magras e encardidas.

– Viu? Foi um instante. Agora a senhora me ajude. Ponha nessa bacia e venha comigo que a gente vai estender a roupa.

Mabel obedeceu, agradecida.

– Como é que a senhora se chama?

– Bárbara. E a senhora?

– Mabel.

– Pois bem, Dona Mabel, eu venho sempre lavar essa roupa quando a senhora precisar.

– Não é justo, Dona Bárbara, porque não poderemos pagar os seus serviços.
A outra pegava as peças, pendurava na corda e prendia-as com os pregadores. Deteve-se um pequeno tempo e sorriu para Mabel.

– A senhora não precisa de se preocupar. Ninguém está falando em pagamento.
– Mesmo assim não é justo.

– Por quê? A gente neste mundo nasceu foi pra ajudar os outros. E não custa nada, uma roupinha limpinha dessas. Se a senhora visse o que é pegar roupa suada de suor que gruda mesmo e fede. De toda essa gente da fábrica que eu lavo... Aí sim.

– E como é que a senhora dá conta de tudo? A senhora não disse que tinha filhos?

– Cinco, Dona Mabel. Cinco diabos. Tenho de lavar pra fora, costurar a roupa dos cinco e do meu marido e ainda por cima cozinhar pra essa cambada toda.
Quando acabaram o serviço, havia um sorriso de gratidão no rosto afogueado de Mabel.

– Quando a senhora precisar me chame, sim?

– Não é justo, Dona Bárbara. A senhora já tem tanto o que fazer.

– Pelo menos até a senhora se acostumar com essa vida braba, eu venho lhe ajudar.

Mabel acompanhou a mulher até junto da cerca. Foi tomada de curiosidade.

– Como é que a senhora viu o que estava acontecendo?

– Tava caçando uma galinha danada de arisca que eu tenho e, quando cheguei aqui perto, vi tudo.

Começou a esgueirar-se pela cerca furada de bambu. Mas antes de entrar em casa falou para Mabel.

– Se a senhora não se incomoda, eu tenho que passar às vezes por aqui pra pegar uma galinha preta de pescoço pelado que tem mania de botar lá no fundo do seu quintal...

– Venha quando quiser e na hora que quiser. Obrigada.

Mabel fugiu do sol e foi sentar-se no tamborete para descansar. E quando entrou na cozinha, sem querer, olhou o espelhinho oval e descobriu que ele lhe devolvia o primeiro dos seus sorrisos. O primeiro, depois de tantos dias atormentados.

José Mauro de Vasconcelos, "A rua descalça" 

A cidadezinha

Era uma vez uma cidadezinha, dessas muito antigas. Pequena, mal tinha umas cinco ruas meio tortas e desencontradas. As casas, nessas ruas, eram quase todas baixinhas. No meio delas uns dois sobrados, o casarão da escola e o outro casarão muito feio, com janelas gradeadas, onde ficava a cadeia.

Mas a graça daquela cidadezinha era a igreja, que a gente até poderia chamar de igrejinha. Ficava no alto do morro, toda branca, de portas azuis, parecia leve, muito linda. Talvez por causa da igrejinha no morro, a cidadezinha ganhou o nome de Morro Lindo. A igrejinha é que era linda, mas o morro ficou com a fama. E não era dessas igrejas importantes, paredes de pedra, com as torres apontando para o céu. Tinha as paredes muito simples, era quadradinha, com uma torre também quadrada. E bem debaixo do telhado da torre, ficava o sino.
Raquel de Queiroz

terça-feira, junho 20

É isto uma livraria?

 


Historia de Verão

Uma abelha, dessas que dizem ser italianas, entrou pela janela, obstinou-se em escolher-me, pousa-me no ombro, descansa dos seus trabalhos. Lisonjeado com aquela preferência, comecei a amá-la devagar, retendo a respiração, com receio de que não tardasse a dar pelo seu engano, que cedo viesse a descobrir que não era eu a haste de onde se avistam as dunas. Mas o seu olhar tranquilizava, era calma ondulação do trigo. Agora só uma interrogação perturbava a minha alegria - comigo, como é que faria o seu mel?

Eugénio de Andrade, "Memória doutro Rio".

O escritor em seu labirinto

 

Roald Dahl 

Introdução

Não foi um dia de grandes notícias aquele 26 de outubro de 1949. Mestre Clemente Manuel Zábalq, chefe de redação do jornal onde eu fazia minhas primeiras letras de repórter, encerrou a reunião da manhã com duas ou três sugestões de rotina. Não deu tarefa concreta a nenhum redator. Minutos depois soube por um telefonema que estavam esvaziando as criptas funerárias do antigo convento de Santa Clara, e me ordenou sem muita convicção.

— Vá até lá e veja o que consegue.

O convento histórico das clarissas, que há um século se converteu em hospital ia ser vendido para construírem no lugar um hotel de cinco estrelas. Sua bonita capela estava quase toda exposta à intempérie com o desmoronamento gradativo do telhado, mas nas criptas permaneciam enterradas três gerações de bispos e abadessas e outros personagens notáveis. A primeira medida era desocupá-las, entregar os despojos a quem os reclamasse e atirar o restante na vala comum Fiquei espantado com o primitivismo do método. Os operários destapavam os túmulos a picareta e enxadão, retiravam os ataúdes apodrecidos que se desfaziam ao menor movimento, e separavam os ossos das cinzas de barrilheira com pedaços de pano e cabelos murchos.

Quanto mais ilustre o morto, mais árduo se tornava o trabalho, pois era preciso escavar nos escombros dos corpos e joeirar bem fino seus resíduos para resgatar as pedras preciosas e as jóias.

O mestre-de-obras copiava os dados da lápide num caderno escolar, arrumava os ossos em montes separados, e em cima de cada um punha uma folha com o nome, para que não fossem confundidos. Assim minha primeira visão ao entrar na igreja foi uma longa fila de montinhos de ossos, aquecidos pelo sol bárbaro de outubro que penetrava aos jorros pelas frinchas do teto, e sem outra identificação a não ser o nome escrito a lápis num pedaço de papel. Quase meio século depois, ainda sinto o estupor que me causou aquele terrível testemunho da passagem devastadora dos anos.

Ali estavam, entre muitos outros, um vice-rei do Peru e sua amante secreta; dom Toribio de Cáceres y Virtudes, bispo da diocese; várias abadessas do convento, entre elas a madre Josefa Minanda, e o bacharel em artes dom Cristóbal de Eraso, que dedicam meia vida a fabricar os artesoados. Havia uma cripta fechada com a lápide do segundo marquês de Casalduero, dom Ygnacio de Alfaro y Duenas, mas ao ser aberta viu-se que estava vazia e não fora usada. Já os restos de sua marquesa, dona Olalla de Mendoza, estavam com sua pedra própria na cripta ao lado. O mestre-de-obras não lhe deu importância, era normal que um nobre crioulo tivesse ornamentado sua tumba e o sepultassem em outra.

No terceiro nicho do altar-mor, do lado do Evangelho, é que estava a notícia. A lápide saltou em pedaços ao primeiro golpe da picareta, e uma cabeleira viva, cor de cobre intensa, se espalhou para fora da cripta. O mestre-de-obras retirá-la inteira, com a ajuda de seus operários, e quanto mais a puxavam, mais comprida e abundante parecia, até que saíram os últimos fios, ainda presos a um crânio de menina. No nicho ficaram apenas uns ossinhos miúdos e dispersos, e na pedra carcomida pelo salitre só se lia um nome, sem sobrenomes. Sierva María de Todos los Ángeles. Estendida no chão, a cabeleira esplêndida media vinte e dois metros e onze centímetros.

O mestre-de-obras me explicou sem espanto que o cabelo humano crescia um centímetro por mês até depois da morte, e vinte e dois metros lhe pareciam uma boa média para duzentos anos. Já a mim não pareceu tão trivial porque minha avó me contava em menino a lenda de uma marquesinha de doze anos cuja cabeleira se arrastava como a cauda de um vestido de noiva, que morreu de raiva causada pela mordida de um cachorro, e que era venerada no Caribe por seus muitos milagres. A ideia de que aquele túmulo pudesse ser dela foi a minha notícia do dia, e a origem deste livro.
Gabriel Garcia Marquéz, "Do Amor e Outros Demônios"

Que haja saco!


Quando você faz 20 anos está de manhã olhando o sol do meio dia. Aos 60 são seis e meia da tarde e você olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus direitos. Esses 60 anos valeram a pena. Investi na amizade, no capital erótico, e não me arrependo. A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio nesse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!
Hélio Pellegrino