sexta-feira, junho 28
1º de dezembro
... talvez os ponteiros do relógio estivessem tão cansados de girar na mesma direção, ano após ano, que agora, de repente, tinham tomado o sentido contrário...
A noite caía. As luzes estavam acesas nas ruas enfeitadas para o Natal, e grossos flocos de neve dançavam por entre as lâmpadas. As ruas estavam cheias de gente.
Joaquim puxou a mão do pai com força e apontou para uma minúscula vitrine. Nela havia um calendário de Natal, de cores brilhantes, encostado numa pilha de livros.
"Olha ali, papai!"
O pai deu meia-volta: "Estamos salvos!".
Entraram na pequenina livraria. Joaquim a achou um tanto velha e decadente. As prateleiras iam do chão até o teto ao longo das paredes, todas elas abarrotadas de livros. Quase não se via um livro igual ao outro.
Sobre o balcão havia uma grande pilha de calendários de Natal. Eram de dois tipos: um tinha a figura de Papai Noel com o trenó e as renas; o outro mostrava um celeiro com um pequenino duende de Natal, um nisse, comendo mingau numa tigela enorme.
O pai ergueu os dois: "Este aqui tem uns bombons atrás das portinhas, mas o seu dentista não iria gostar muito disso. O outro tem umas figurinhas de plástico".
Joaquim examinou ambos os calendários. Não sabia qual deles queria.
"No meu tempo de menino era diferente", disse o pai.
"Como assim?"
"Atrás de cada porta havia só uma figurinha minúscula, uma para cada dia. Todas as manhãs nós ficávamos tão excitados! Tentávamos adivinhar qual seria a figura. Aí abríamos a portinha e... bem, abríamos, sabe como é... Era como abrir a porta para um mundo novo."
Joaquim havia notado alguma coisa. Apontou para uma parede de livros. "Olha, ali também tem um calendário."
E correu até lá para apanhá-lo e mostrá-lo ao pai. O calendário mostrava José e Maria debruçados sobre o Menino Jesus na manjedoura. Os Três Reis Magos estavam ajoelhados ao fundo. Do lado de fora do estábulo viam-se os pastores com suas ovelhas e anjos descendo do céu. Um deles tocava trombeta.
As cores estavam desbotadas, como se o calendário tivesse ficado ao sol durante todo o verão. Mas a figura era tão bonita que Joaquim quase sentiu um pouco de pena por seu estado.
"Quero este aqui", falou.
O pai sorriu. "Bom, acho que esse não está à venda. Deve ser muito velho. Tão velho quanto eu, talvez."
Mas Joaquim não desistiu: "As portas estão todas bem fechadas".
"Mas esse calendário está aqui só como enfeite."
Joaquim não tirava os olhos dele. "Quero este", repetiu. "Quero este, que é diferente de todos os outros."
O dono da livraria, um senhor de cabelos brancos, aproximou-se. Ficou surpreso quando viu o calendário.
"Que bonito!", exclamou. "E autêntico -sim, original mesmo. Parece até feito em casa."
"Ele quer comprar", disse o pai, apontando para Joaquim. "Estou tentando explicar para ele que não está à venda."
O senhor de cabelos brancos ergueu as sobrancelhas. "Você o encontrou aqui? Não vejo um calendário assim há muitos e muitos anos."
"Estava na frente dos livros", disse Joaquim apontando para o local.
"Ah", disse o dono da livraria, "deve ser mais uma brincadeira do velho João."
O pai arregalou os olhos: "João?".
"É, ele é um sujeito estranho. Vende rosas no mercado. Às vezes entra aqui na livraria e pede um copo d'água. No verão, quando está quente, ele derrama as últimas gotas na cabeça antes de sair. Também já derramou umas gotinhas de água na minha cabeça, uma ou duas vezes. Às vezes, para me agradecer pela água, ele deixa uma ou duas rosas no balcão, ou um livro antigo na prateleira. Uma vez ele pôs a foto de uma moça na vitrine. Era de um país distante. Talvez seja o país de onde ele vem. Na foto estava escrito 'Elisabet'."
"E agora ele deixou um calendário de Natal?", perguntou o pai.
"É, pelo jeito foi isso."
"Tem alguma coisa escrita", disse Joaquim, e leu em voz alta: "CALENDÁRIO MÁGICO DE NATAL. PREÇO: 75 CENTAVOS".
O dono da livraria comentou: "Pelo preço, deve ser bem velho".
"Posso comprá-lo por setenta e cinco centavos?", perguntou Joaquim.
O homem riu: "Acho que você deveria levá-lo de graça. O velho João devia estar pensando em você quando deixou esse calendário aí. Você vai ver".
"Puxa, obrigado, muito obrigado mesmo", disse Joaquim, já a caminho da porta.
O pai apertou a mão do dono da livraria e encontrou Joaquim na calçada.
Joaquim abraçava seu calendário bem apertadinho: "Vou abrir a primeira porta amanhã".
A noite caía. As luzes estavam acesas nas ruas enfeitadas para o Natal, e grossos flocos de neve dançavam por entre as lâmpadas. As ruas estavam cheias de gente.
No meio desse lufa-lufa de gente ocupada estavam Joaquim e o pai. Os dois tinham ido à cidade comprar um calendário de Natal, e esta era a última oportunidade, pois o dia seguinte já era 1º de dezembro. Esses calendários já estavam esgotados na banca de jornais e na grande livraria da praça do Mercado.
Joaquim puxou a mão do pai com força e apontou para uma minúscula vitrine. Nela havia um calendário de Natal, de cores brilhantes, encostado numa pilha de livros.
"Olha ali, papai!"
O pai deu meia-volta: "Estamos salvos!".
Entraram na pequenina livraria. Joaquim a achou um tanto velha e decadente. As prateleiras iam do chão até o teto ao longo das paredes, todas elas abarrotadas de livros. Quase não se via um livro igual ao outro.
Sobre o balcão havia uma grande pilha de calendários de Natal. Eram de dois tipos: um tinha a figura de Papai Noel com o trenó e as renas; o outro mostrava um celeiro com um pequenino duende de Natal, um nisse, comendo mingau numa tigela enorme.
O pai ergueu os dois: "Este aqui tem uns bombons atrás das portinhas, mas o seu dentista não iria gostar muito disso. O outro tem umas figurinhas de plástico".
Joaquim examinou ambos os calendários. Não sabia qual deles queria.
"No meu tempo de menino era diferente", disse o pai.
"Como assim?"
"Atrás de cada porta havia só uma figurinha minúscula, uma para cada dia. Todas as manhãs nós ficávamos tão excitados! Tentávamos adivinhar qual seria a figura. Aí abríamos a portinha e... bem, abríamos, sabe como é... Era como abrir a porta para um mundo novo."
Joaquim havia notado alguma coisa. Apontou para uma parede de livros. "Olha, ali também tem um calendário."
E correu até lá para apanhá-lo e mostrá-lo ao pai. O calendário mostrava José e Maria debruçados sobre o Menino Jesus na manjedoura. Os Três Reis Magos estavam ajoelhados ao fundo. Do lado de fora do estábulo viam-se os pastores com suas ovelhas e anjos descendo do céu. Um deles tocava trombeta.
As cores estavam desbotadas, como se o calendário tivesse ficado ao sol durante todo o verão. Mas a figura era tão bonita que Joaquim quase sentiu um pouco de pena por seu estado.
"Quero este aqui", falou.
O pai sorriu. "Bom, acho que esse não está à venda. Deve ser muito velho. Tão velho quanto eu, talvez."
Mas Joaquim não desistiu: "As portas estão todas bem fechadas".
"Mas esse calendário está aqui só como enfeite."
Joaquim não tirava os olhos dele. "Quero este", repetiu. "Quero este, que é diferente de todos os outros."
O dono da livraria, um senhor de cabelos brancos, aproximou-se. Ficou surpreso quando viu o calendário.
"Que bonito!", exclamou. "E autêntico -sim, original mesmo. Parece até feito em casa."
"Ele quer comprar", disse o pai, apontando para Joaquim. "Estou tentando explicar para ele que não está à venda."
O senhor de cabelos brancos ergueu as sobrancelhas. "Você o encontrou aqui? Não vejo um calendário assim há muitos e muitos anos."
"Estava na frente dos livros", disse Joaquim apontando para o local.
"Ah", disse o dono da livraria, "deve ser mais uma brincadeira do velho João."
O pai arregalou os olhos: "João?".
"É, ele é um sujeito estranho. Vende rosas no mercado. Às vezes entra aqui na livraria e pede um copo d'água. No verão, quando está quente, ele derrama as últimas gotas na cabeça antes de sair. Também já derramou umas gotinhas de água na minha cabeça, uma ou duas vezes. Às vezes, para me agradecer pela água, ele deixa uma ou duas rosas no balcão, ou um livro antigo na prateleira. Uma vez ele pôs a foto de uma moça na vitrine. Era de um país distante. Talvez seja o país de onde ele vem. Na foto estava escrito 'Elisabet'."
"E agora ele deixou um calendário de Natal?", perguntou o pai.
"É, pelo jeito foi isso."
"Tem alguma coisa escrita", disse Joaquim, e leu em voz alta: "CALENDÁRIO MÁGICO DE NATAL. PREÇO: 75 CENTAVOS".
O dono da livraria comentou: "Pelo preço, deve ser bem velho".
"Posso comprá-lo por setenta e cinco centavos?", perguntou Joaquim.
O homem riu: "Acho que você deveria levá-lo de graça. O velho João devia estar pensando em você quando deixou esse calendário aí. Você vai ver".
"Puxa, obrigado, muito obrigado mesmo", disse Joaquim, já a caminho da porta.
O pai apertou a mão do dono da livraria e encontrou Joaquim na calçada.
Joaquim abraçava seu calendário bem apertadinho: "Vou abrir a primeira porta amanhã".
Jostein Gaarder, "Mistério de Natal"
A livraria
Uma porta e um metro e meio de vitrina escura, era essa toda a extensão da fachada. Via-se que a literatura era um luxo; aqui ela tomava seu lugar proporcional, nesse lugar de necessidade. Mesmo assim, o consolo era que ela sobrevivera, definitivamente sobrevivera.
O proprietário da loja estava parado à porta, um homem pequenino, de barba grisalha e com olhos muito vivos atrás dos óculos que encimavam seu nariz comprido e agudo. - Os negócios vão bem?-perguntei.
-Eram melhores no tempo do meu avô - ele me respondeu, sacudindo a cabeça com tristeza.
- Ficamos cada vez mais filisteus - sugeri.
- É a nossa impensa barata. O efêmero domina o pensameno,,o clássico.
- Esse jornalismo, ou pode-se dizer, esse cotidianismo trivial é amaldição da nossa era - concordei.
- Serve só para ... - Ele gesticulou com as mãos, como se procurasse agarrar a palavra.
- Para o fogo.
O velho foi triunfantemente enfático ao dizer:
- Não, para o esgoto.
Sorri, solidário com sua veemência
- Concordamos agradavelmente em nossa opinião - falei.
- Posso dar uma olhada em seus tesouros?
O proprietário da loja estava parado à porta, um homem pequenino, de barba grisalha e com olhos muito vivos atrás dos óculos que encimavam seu nariz comprido e agudo. - Os negócios vão bem?-perguntei.
-Eram melhores no tempo do meu avô - ele me respondeu, sacudindo a cabeça com tristeza.
- Ficamos cada vez mais filisteus - sugeri.
- É a nossa impensa barata. O efêmero domina o pensameno,,o clássico.
- Esse jornalismo, ou pode-se dizer, esse cotidianismo trivial é amaldição da nossa era - concordei.
- Serve só para ... - Ele gesticulou com as mãos, como se procurasse agarrar a palavra.
- Para o fogo.
O velho foi triunfantemente enfático ao dizer:
- Não, para o esgoto.
Sorri, solidário com sua veemência
- Concordamos agradavelmente em nossa opinião - falei.
- Posso dar uma olhada em seus tesouros?
Aldous Huxley, "Contos escolhidos"
Colhudeiros da Ilha
A palavra “colhuda”, que eu saiba, não está nos dicionários. É quase sempre pronunciada “culhuda”, mas creio que, se a etimologia dela é a que você e eu estamos pensando, a grafia correta deve ser a que escolhi. E, também que eu saiba, se restringe à Bahia. Creio tratar-se de uma palavra muito útil.
Que eu saiba de novo (vou parar com isto; todo mundo já sabe que eu não sei nada mesmo), essa palavra tão, perdão, plurívoca, não tem equivalente. Nenhum sinônimo possui sua riqueza conotativa, que muitas vezes é modificada quando ela é pronunciada junto com um gesto qualquer. Para compreendê-la de todo, o convívio é indispensável. Mas pode-se dizer, simplificando bastante, que a colhuda é a mentira desinteressada, ou interessada sobretudo em enaltecer, direta ou indiretamente, o colhudeiro. É freqüente que o prazer dele resida muito na apresentação da história, na sua quase encenação. Um bom colhudeiro tem o seu valor e, sem um ou dois, nenhuma boa mesa de boteco é completa. Eu, ficcionista profissional, sou o da minha, claro.
Todo mundo conhece um ou vários colhudeiros. Poderia mesmo dizer, sem medo de errar, que há um colhudeiro perto de você. Ou você não conhece pelo menos um cara que, quando qualquer pessoa narra uma experiência incomum, tem sempre uma história parecida para contar, somente um tantinho diferente da anterior, se possível para melhor? Há até mesmo duelos de colhudeiros, porque já sentei a mesas onde dois ou três deles se entrechocavam incessantemente, em meio a colhudas das mais cabeludas, maravilhando a todos com sua inventividade. E também todo mundo conhece o colhudeiro que meteu o dedo na cara do desembargador Sicrano ou do general Beltrano, o que já viveu uma vida de inexprimível dissipação e luxúria na companhia das melhores mulheres do Rio de Janeiro daquela época, a que não pode ir a uma festa desacompanhada porque a azaração em cima dela se torna insuportável, o que já viajou mais de uma vez numa espaçonave alienígena, e assim por diante.
Itaparica, como não podia deixar de ser, sempre contou com colhudeiros de escol. No tempo longínquo em que a luz era fornecida pelo gerador da prefeitura e só durava do anoitecer às dez ou dez e meia da noite, até às onze nos sábados, se bem me lembro, os colhudeiros desfrutavam de grande prestígio, alguns especializados em pescarias e aventuras marítimas, outros versados em mulheres de todos os tipos, ainda outros mais ou menos ecléticos. Veio o rádio, depois a televisão, o colhudeiro perdeu platéia, embora, é claro, não tenha morrido, apenas se adaptou às novas condições.
Mas meu amigo Xepa não é colhudeiro. Sério mesmo, Xepa é uns meses mais moço que eu (ô, pretensão, quero dizer menos velho), somos amigos desde meninos e ele nunca foi tido como colhudeiro. Na nossa geração, descontando meu caso profissional, há diversos colhudeiros de renome, alguns, diria eu, até mesmo comparáveis aos colhudeiros do governo, se bem que Sebinho de Eusébia diga que não há melhores colhudas que as colhudas do presidente — segundo Sebinho, tão bem contadas e com tanto sentimento que chegam a partir o coração. Graaaande colhudeiro, diz Sebinho. Do legítimo, que a pessoa jura que ele está acreditando na própria colhuda, a pessoa tem que ter admiração. Mas isso é lá com Sebinho, eu mesmo é que não estou chamando o presidente de colhudeiro, deste teclado jamais saiu tal alegação.
Estou é preocupado com a reputação de Xepa porque escrevi aqui que ele me contou que um amigo dele tinha fisgado um tatu com uma varinha de pescar carapicu, um peixinho miúdo que a gente trata, tempera com uma besteirinha de sal, cobre de farinha e frita, ele fica crocante e todo mundo come com cabeça, espinha e tudo — quem não comeu “ainda não apreceiou a vida”, como dizia o finado Lourival, embora se referindo a outra atividade humana. Aqui no Rio, quando contei essa história no Tio Sam (não, também não recebo um estipêndio para divulgar o Tio Sam, mas admito que penduro uns troços lá), Felipe Palácio, que gosta muito de curtir com a cara dos outros e anda com umas companhias estranhas, como Borges, Lilico e Boneco, cujas histórias escabrosas um dia eu conto aqui, Felipe Palácio, dizia eu, que já conhece a expressão, afirmou em alto e bom som que esse tal Xepa era colhudeiro.
Injustiça, injustiça, coisa de quem vive em palácios e não conhece o povo, como os dois autores da colhuda da baleia, hoje espalhada pelo mundo como piada que talvez até você já conheça. Deu-se que Miltinho de Carmelita, renomado colhudeiro da ilha prematuramente falecido, estava palestrando com Nadinho Damásio, santo-amarense e igualmente finado, e este lhe contou que tinha testemunhado um fato tremendo. Não é que ele estava em Santo Amaro, tomando umas cervejas perto da boca do rio Subaé, quando uma baleia enormíssima saiu do mar, se arrastou rio adentro e caiu de boca nos canaviais, uma coisa jamais vista sobre a face da Terra? A desgraçada da baleia não quis nem saber, mascou e chupou pelo menos uns quatro canaviais até voltar com o bucho cheio para a baía de Todos os Santos. Mas erra quem pensa que, como bom itaparicano, Miltinho envergonhou a ilha. Com a maior calma, ele retrucou, sem usar propriamente a palavra que aqui emprego depois do “no”:
— Ah, eu sei qual é essa baleia. É uma que eu vi na festa da Conceição da Praia, com uma torneira enfiada no traseiro e vendendo caldo de cana, agora eu entendi!
João Ubaldo Ribeiro, "O rei da noite"
Antigamente sua, digamos, baixa extração a bania do convívio social mais fino, mas hoje ela é aceita, ganhou trânsito quase totalmente livre, faz parte do vocabulário geral e, no meu parecer, é uma contribuição que o baianês dá ao português falado no Brasil.
Que eu saiba de novo (vou parar com isto; todo mundo já sabe que eu não sei nada mesmo), essa palavra tão, perdão, plurívoca, não tem equivalente. Nenhum sinônimo possui sua riqueza conotativa, que muitas vezes é modificada quando ela é pronunciada junto com um gesto qualquer. Para compreendê-la de todo, o convívio é indispensável. Mas pode-se dizer, simplificando bastante, que a colhuda é a mentira desinteressada, ou interessada sobretudo em enaltecer, direta ou indiretamente, o colhudeiro. É freqüente que o prazer dele resida muito na apresentação da história, na sua quase encenação. Um bom colhudeiro tem o seu valor e, sem um ou dois, nenhuma boa mesa de boteco é completa. Eu, ficcionista profissional, sou o da minha, claro.
Todo mundo conhece um ou vários colhudeiros. Poderia mesmo dizer, sem medo de errar, que há um colhudeiro perto de você. Ou você não conhece pelo menos um cara que, quando qualquer pessoa narra uma experiência incomum, tem sempre uma história parecida para contar, somente um tantinho diferente da anterior, se possível para melhor? Há até mesmo duelos de colhudeiros, porque já sentei a mesas onde dois ou três deles se entrechocavam incessantemente, em meio a colhudas das mais cabeludas, maravilhando a todos com sua inventividade. E também todo mundo conhece o colhudeiro que meteu o dedo na cara do desembargador Sicrano ou do general Beltrano, o que já viveu uma vida de inexprimível dissipação e luxúria na companhia das melhores mulheres do Rio de Janeiro daquela época, a que não pode ir a uma festa desacompanhada porque a azaração em cima dela se torna insuportável, o que já viajou mais de uma vez numa espaçonave alienígena, e assim por diante.
Itaparica, como não podia deixar de ser, sempre contou com colhudeiros de escol. No tempo longínquo em que a luz era fornecida pelo gerador da prefeitura e só durava do anoitecer às dez ou dez e meia da noite, até às onze nos sábados, se bem me lembro, os colhudeiros desfrutavam de grande prestígio, alguns especializados em pescarias e aventuras marítimas, outros versados em mulheres de todos os tipos, ainda outros mais ou menos ecléticos. Veio o rádio, depois a televisão, o colhudeiro perdeu platéia, embora, é claro, não tenha morrido, apenas se adaptou às novas condições.
Mas meu amigo Xepa não é colhudeiro. Sério mesmo, Xepa é uns meses mais moço que eu (ô, pretensão, quero dizer menos velho), somos amigos desde meninos e ele nunca foi tido como colhudeiro. Na nossa geração, descontando meu caso profissional, há diversos colhudeiros de renome, alguns, diria eu, até mesmo comparáveis aos colhudeiros do governo, se bem que Sebinho de Eusébia diga que não há melhores colhudas que as colhudas do presidente — segundo Sebinho, tão bem contadas e com tanto sentimento que chegam a partir o coração. Graaaande colhudeiro, diz Sebinho. Do legítimo, que a pessoa jura que ele está acreditando na própria colhuda, a pessoa tem que ter admiração. Mas isso é lá com Sebinho, eu mesmo é que não estou chamando o presidente de colhudeiro, deste teclado jamais saiu tal alegação.
Estou é preocupado com a reputação de Xepa porque escrevi aqui que ele me contou que um amigo dele tinha fisgado um tatu com uma varinha de pescar carapicu, um peixinho miúdo que a gente trata, tempera com uma besteirinha de sal, cobre de farinha e frita, ele fica crocante e todo mundo come com cabeça, espinha e tudo — quem não comeu “ainda não apreceiou a vida”, como dizia o finado Lourival, embora se referindo a outra atividade humana. Aqui no Rio, quando contei essa história no Tio Sam (não, também não recebo um estipêndio para divulgar o Tio Sam, mas admito que penduro uns troços lá), Felipe Palácio, que gosta muito de curtir com a cara dos outros e anda com umas companhias estranhas, como Borges, Lilico e Boneco, cujas histórias escabrosas um dia eu conto aqui, Felipe Palácio, dizia eu, que já conhece a expressão, afirmou em alto e bom som que esse tal Xepa era colhudeiro.
Injustiça, injustiça, coisa de quem vive em palácios e não conhece o povo, como os dois autores da colhuda da baleia, hoje espalhada pelo mundo como piada que talvez até você já conheça. Deu-se que Miltinho de Carmelita, renomado colhudeiro da ilha prematuramente falecido, estava palestrando com Nadinho Damásio, santo-amarense e igualmente finado, e este lhe contou que tinha testemunhado um fato tremendo. Não é que ele estava em Santo Amaro, tomando umas cervejas perto da boca do rio Subaé, quando uma baleia enormíssima saiu do mar, se arrastou rio adentro e caiu de boca nos canaviais, uma coisa jamais vista sobre a face da Terra? A desgraçada da baleia não quis nem saber, mascou e chupou pelo menos uns quatro canaviais até voltar com o bucho cheio para a baía de Todos os Santos. Mas erra quem pensa que, como bom itaparicano, Miltinho envergonhou a ilha. Com a maior calma, ele retrucou, sem usar propriamente a palavra que aqui emprego depois do “no”:
— Ah, eu sei qual é essa baleia. É uma que eu vi na festa da Conceição da Praia, com uma torneira enfiada no traseiro e vendendo caldo de cana, agora eu entendi!
João Ubaldo Ribeiro, "O rei da noite"
quinta-feira, junho 27
2050 será assim
Em 2050, é provável que eu não esteja mais aqui. Deixarei representantes bem melhores do que eu.
Em 2050, o Brasil continuará a ser o país do futuro. Não teremos ainda um prêmio Nobel, nem água tratada em 100% das casas, mas seremos octacampeões mundiais de futebol. Muita gente terá esquecido quem foi Taiguara; em compensação, Pixinguinha ainda será assobiado nas ruas por jovens de mãos nos bolsos.
Não vai mais existir carro a gasolina, telefone fixo, nota de dinheiro, fila no banco, mercadinho na esquina, gravata em repartição e, do jeito que tem subido prédio, nenhum sobrado nas ruas de Pinheiros. Em compensação, os guarda-chuvas, lápis e papeis higiênicos pouco terão mudado em sua forma e função.
Os sapatos não mais apertarão em 2050, os ônibus serão confortáveis e os elevadores, movidos a telepatia. O ar puro será vendido em spray nos supermercados, e nossas florestas terão crescido em área o equivalente a quinhentos mil Maracanãs. Não terá surgido outro Pelé, outro Saramago, um segundo Da Vinci, mais um Beethoven, e as pessoas só se lembrarão do nome de dois dos Beatles.
Em 19 de setembro de 2050, o sol nascerá pontualmente às seis e vinte e um e vai se pôr às dez para as sete. Os sorvetes serão prescritos como antidepressivos. Trânsito não será mais assunto nas rádios. Bares ganharão o status de consultórios psicoterápicos. Portugueses e brasileiros continuarão a discutir sobre o uso dos verbos no gerúndio ou no particípio. Finalmente, seremos uma potência olímpica. Galvão Bueno anunciará sua aposentadoria com voz embargada. Alguns fins justificarão os meios.
Em 2050, a preguiça será imensa, e só os robôs se cansarão. Mesmo com décadas de tentativas e experimentos, a melhor combinação do Universo seguirá sendo caipirinha com mariscos, seguida bem de pertinho por pão de queijo com café. Como os carros serão inteligentes, haverá grande procura nos parques de diversões pelo carrinho de bate-bate, para matar as saudades de uma boa batida seguida de gestos e xingamentos impublicáveis. As geladeiras também serão inteligentes, os elevadores, idem, os celulares, cada vez mais, mas ainda haverá quem creia piamente em horóscopos e nos populistas.
Em cada cidade do país haverá ao menos uma livraria e uma biblioteca, com funcionários sabedores de seu ofício. Crentes e ateus entrarão em acordo. As torcidas de futebol voltarão a compartilhar em paz as arquibancadas dos estádios. Viajar de ônibus, ler no ônibus, cochilar e acordar quando estiverem despontando as estrelas continuará a ser um bom jeito de viver em 2050.
As pessoas sairão para se encontrar no cinema, chupar drops na sala escura, depois emendarão com um chopinho para discutir o filme, e no fim se perguntar qual era mesmo a graça de ficar assistindo séries em série, sozinhas em casa.
O ano de 2020 será estudado como o mais esquisitão da história. O clima vai sossegar e desistir dessa ideia meio besta de acabar com o mundo. O crime continuará a não compensar em 2050. Haverá ainda a desigualdade entre os homens, mas muito, muito menos desigual. Estará provado, de uma vez por todas, que devagar se vai ao longe.
Por fim, contrariando o primeiro parágrafo, graças a um remédio que será descoberto no segundo semestre de 2037 a partir de ervas e raízes milagrosas da Amazônia, ainda estarei por aqui sim. Espero que ninguém fique decepcionado.
Cássio Zanatta
Em 2050, o Brasil continuará a ser o país do futuro. Não teremos ainda um prêmio Nobel, nem água tratada em 100% das casas, mas seremos octacampeões mundiais de futebol. Muita gente terá esquecido quem foi Taiguara; em compensação, Pixinguinha ainda será assobiado nas ruas por jovens de mãos nos bolsos.
Não vai mais existir carro a gasolina, telefone fixo, nota de dinheiro, fila no banco, mercadinho na esquina, gravata em repartição e, do jeito que tem subido prédio, nenhum sobrado nas ruas de Pinheiros. Em compensação, os guarda-chuvas, lápis e papeis higiênicos pouco terão mudado em sua forma e função.
Os sapatos não mais apertarão em 2050, os ônibus serão confortáveis e os elevadores, movidos a telepatia. O ar puro será vendido em spray nos supermercados, e nossas florestas terão crescido em área o equivalente a quinhentos mil Maracanãs. Não terá surgido outro Pelé, outro Saramago, um segundo Da Vinci, mais um Beethoven, e as pessoas só se lembrarão do nome de dois dos Beatles.
Em 19 de setembro de 2050, o sol nascerá pontualmente às seis e vinte e um e vai se pôr às dez para as sete. Os sorvetes serão prescritos como antidepressivos. Trânsito não será mais assunto nas rádios. Bares ganharão o status de consultórios psicoterápicos. Portugueses e brasileiros continuarão a discutir sobre o uso dos verbos no gerúndio ou no particípio. Finalmente, seremos uma potência olímpica. Galvão Bueno anunciará sua aposentadoria com voz embargada. Alguns fins justificarão os meios.
Em 2050, a preguiça será imensa, e só os robôs se cansarão. Mesmo com décadas de tentativas e experimentos, a melhor combinação do Universo seguirá sendo caipirinha com mariscos, seguida bem de pertinho por pão de queijo com café. Como os carros serão inteligentes, haverá grande procura nos parques de diversões pelo carrinho de bate-bate, para matar as saudades de uma boa batida seguida de gestos e xingamentos impublicáveis. As geladeiras também serão inteligentes, os elevadores, idem, os celulares, cada vez mais, mas ainda haverá quem creia piamente em horóscopos e nos populistas.
Em cada cidade do país haverá ao menos uma livraria e uma biblioteca, com funcionários sabedores de seu ofício. Crentes e ateus entrarão em acordo. As torcidas de futebol voltarão a compartilhar em paz as arquibancadas dos estádios. Viajar de ônibus, ler no ônibus, cochilar e acordar quando estiverem despontando as estrelas continuará a ser um bom jeito de viver em 2050.
As pessoas sairão para se encontrar no cinema, chupar drops na sala escura, depois emendarão com um chopinho para discutir o filme, e no fim se perguntar qual era mesmo a graça de ficar assistindo séries em série, sozinhas em casa.
O ano de 2020 será estudado como o mais esquisitão da história. O clima vai sossegar e desistir dessa ideia meio besta de acabar com o mundo. O crime continuará a não compensar em 2050. Haverá ainda a desigualdade entre os homens, mas muito, muito menos desigual. Estará provado, de uma vez por todas, que devagar se vai ao longe.
Por fim, contrariando o primeiro parágrafo, graças a um remédio que será descoberto no segundo semestre de 2037 a partir de ervas e raízes milagrosas da Amazônia, ainda estarei por aqui sim. Espero que ninguém fique decepcionado.
Cássio Zanatta
Não ameis à distância
Em uma cidade há um milhão e meio de pessoas, em outra há outros milhões; e as cidades são tão longe uma da outra que nesta é verão quando naquela é inverno. Em cada uma dessas cidades há uma pessoa, e essas pessoas tão distantes acaso pensareis que podem cultivar em segredo, como plantinha de estufa, um amor a distância?
Sim, há uma frase na carta cheia de calor, cheia de luz; mas a vida presente é traiçoeira e os astrônomos não dizem que muitas vez ficamos como patetas a ver uma linda estrela jurando pela sua existência - e no entanto há séculos ela se apagou na escuridão do caos, sua luz é que custou a fazer a viagem? Direis que não importa a estrela em si mesma, e sim a luz que ela nos manda; e eu vos direi: amai para entendê-las!
Ao que ama o que lhe importa não é a luz nem o som, é a própria pessoa amada mesma, o seu vero cabelo, e o vero pêlo, o osso de seu joelho, sua terna e úmida presença carnal, o imediato calor; é o de hoje, o agora, o aqui - e isso não há.
Então a outra pessoa vira retratinho no bolso, borboleta perdida no ar, brisa que a testa recebe na esquina, tudo o que for eco, sombra, imagem, um pequeno fantasma, e nada mais. E a vida de todo dia vai gastando insensivelmente a outra pessoa, hoje lhe tira um modesto fio de cabelo, amanhã apenas passa a unha de leve fazendo um traço branco na sua coxa queimada pelo sol, de súbito a outra pessoa entra em fading um sábado inteiro, está-se gastando, perdendo seu poder emissor a distância.
Cuidai amar uma pessoa, e ao fim vosso amor é um maço de cartas e fotografias no fundo de uma gaveta que se abre cada vez menos...
Não ameis a distância, não ameis, não ameis!
Rubem Braga
Andam em ruas tão diferentes e passam o dia falando línguas diversas; cada uma tem em torno de si uma presença constante e inumerável de olhos, vozes, notícias. Não se telefonam mais; é tão caro e demorado e tão ruim e além disso, que se diriam? Escrevem-se. Mas uma carta leva dias para chegar; ainda que venha vibrando, cálida, cheia de sentimento, quem sabe se no momento em que é lida já não poderia ter sido escrita? A carta não diz o que a outra pessoa está sentindo, diz o que sentiu a semana passada... e as semanas passam de maneira assustadora os domingos se precipitam mal começam as noites de sábado, as segundas retornam com veemência gritando - "outra semana!" e as quartas já tem um gosto de sexta, e o abril de de-já-hoje é mudado em agosto...
Sim, há uma frase na carta cheia de calor, cheia de luz; mas a vida presente é traiçoeira e os astrônomos não dizem que muitas vez ficamos como patetas a ver uma linda estrela jurando pela sua existência - e no entanto há séculos ela se apagou na escuridão do caos, sua luz é que custou a fazer a viagem? Direis que não importa a estrela em si mesma, e sim a luz que ela nos manda; e eu vos direi: amai para entendê-las!
Ao que ama o que lhe importa não é a luz nem o som, é a própria pessoa amada mesma, o seu vero cabelo, e o vero pêlo, o osso de seu joelho, sua terna e úmida presença carnal, o imediato calor; é o de hoje, o agora, o aqui - e isso não há.
Então a outra pessoa vira retratinho no bolso, borboleta perdida no ar, brisa que a testa recebe na esquina, tudo o que for eco, sombra, imagem, um pequeno fantasma, e nada mais. E a vida de todo dia vai gastando insensivelmente a outra pessoa, hoje lhe tira um modesto fio de cabelo, amanhã apenas passa a unha de leve fazendo um traço branco na sua coxa queimada pelo sol, de súbito a outra pessoa entra em fading um sábado inteiro, está-se gastando, perdendo seu poder emissor a distância.
Cuidai amar uma pessoa, e ao fim vosso amor é um maço de cartas e fotografias no fundo de uma gaveta que se abre cada vez menos...
Não ameis a distância, não ameis, não ameis!
Rubem Braga
Tranquilizante
Busquei tranquilidade em todos os lugares, mas só a encontrei sentado sozinho em um canto com um pequeno livroThomas A. Kempis
Escrever
Aos cinco anos a minha mãe ensinou-me a ler e passadas semanas comecei a ensinar-me a escrever, trabalho que continua porque, às vezes, sou um aluno difícil de mim mesmo e tenho que estar constantemente a meter-me na ordem. Apresento-me as páginas, respondo
– Ainda não é isso
e começo de novo até me ordenar
O melhor da semana multimédia: histórias, fotogalerias, videos e podcasts
– Volta a fazer
de modo que torno à mesma frase, danado comigo, furioso que ser espontâneo dê tanto trabalho como dizia o Manel da Fonseca. Não trabalho na quinta ou na décima versão, trabalho para conseguir a primeira,
a única que interessa e que, às vezes, surge depois da oitava, outras no meio da décima sétima, outras ainda, mais frequentes, não surge nunca. Um livro é um milagre estranho, com regras por vezes aparentemente contraditórias, ou absurdas, ou as duas coisas juntas, o sucesso e o fracasso sempre indistintos, a solução questionável, o resultado aleatório e a qualidade duvidosa. Se calhar o máximo que é possível não passa de uma satisfação transitória: portanto relê, relê, relê, volta ao início, principia de novo: trabalhas no escuro, à espera de uma pequena luz que tarda em chegar. Como Hipócrates dizia acerca do trabalho do médico, a Arte é longa, a Vida breve, a experiência enganadora, o juízo difícil e a oportunidade fugidia. Mas, se não fosse assim, que interesse tinha? Nada é vulgar, tudo é excepcional. Escreve outra vez. Tenta de novo. Como dizia
o meu amigo Eugénio isto é um ofício de paciência e o escritor não passa de um relojoeiro das emoções, digo eu, a tentar fazer coincidir os ponteiros da alma com os do tempo. E o livro uma natureza-morta de emoções. Sopra-lhe vida, tu. Sopra-lhe tudo o que és, segundo a técnica de Deus com o barro inicial. Faz as personagens de uma costela tua, dá-lhes o teu tamanho e a tua esperança. E tenta transformar a vitória numa gloriosa derrota. Até agora, no trabalho em que estou, suado e aflito, consegui dois capítulos. Talvez o primeiro me sirva de apoio, talvez tenha começado a voar no segundo. Como voar agora? Como dar a isto a dimensão de um homem? Gloriosas derrotas? Goethe sustentava que não alcançar era a nossa única grandeza. De modo que a vitória possível é uma resplandecente humilhação. Com isto bem presente talvez possas continuar. Talvez o dedo da tua mãe te auxilie, apontando um espaço branco no livro de leitura:
– Diz-me esta frase aqui
de modo que repete em voz alta para ela as palavras que começam a lá estar, e surgindo devagarinho, uma após outra, da brancura do papel. Continua a avançar tacteando, continua a avançar. Espera por ti na esquina de uma página, tropeça, levanta-te, não pares. Já tens
o título do livro, as cores dele, uma espécie de clima que começa a ser-te familiar: é o teu rosto de homem nu e desfigurado, o melhor que podes conseguir é o teu rosto vivo e, nele, todos os rostos da tua vida, até ao último, que só terás quando não puderes ganhá-lo porque já não és e, ao não seres, continuas. Goethe ainda: é o não chegares que faz a tua verdadeira grandeza. E então pede
– Mais luz
como ele fez ao morrer. Pede
– Mais luz
enquanto te transformas em trevas que têm a forma do teu corpo. Depois levanta-te e continua sozinho dado que ninguém te ajuda. Estás de facto sozinho. Os ruídos da casa desapareceram. A presença dos outros desapareceu. O tempo é apenas um ponteiro que não aponta nada ou aponta mil caminhos, o que é a mesma coisa. E o caminho não passa de um vazio cheio de sons que se torna necessário encontrar o único som autêntico, o som inicial, a tua voz oculta por mil ecos aliás indecifráveis ou aparentemente sem nexo. Tudo é irreal, tudo é misterioso e é necessário transformar esse tudo num fiozinho, quase invisível, de água pura. Um livro não é o que está escrito nele, é o que está escrito em ti, um livro é o teu sangue ao longo das páginas. O teu sangue, o teu olhar e o teu gesto, como queria Rilke, tornares-te um pássaro quase mortal de alma, o título que pretendes dar ao que agora escreves e encontraste numa elegia do Duíno, como um grito do Poeta enterrado na água. Não como: o grito
(sem como)
do Poeta enterrado na água e, com esse grito usado como bengala na mão, caminha ao teu próprio encontro, que é tudo aquilo que poderás achar, ou seja um infinito nada com vozes. Escuta-te. Tropeça na tua sombra e escuta-te porque tens que deixar de escutar-te para poderes ouvir. E então as palavras principiam, uma a uma, a chegar. Ninguém desce vivo de uma cruz, a não ser que já haja nascido. Ainda estás, ainda és. A tua mãe chama-te com um livro aberto nos joelhos, ela que explicava tão bem a forma como ensinara os filhos a lerem. A gente ia e vinha e ela continuava à espera, ela, uma rapariga de vinte e tal anos com todas as palavras deste mundo no colo, quietas, prontas a correrem para ti ao aprenderes-lhes os nomes. Escrever é nomear apenas, uma tentativa de ordenação do confuso vazio interior, és tu a aproximares-te de ti mesmo. Digo isto e ilumino-me dos olhos verdes dela, à minha procura entre o seu sorriso e o mundo. Ocupava tão pouco espaço e no entanto a vida inteira cabia-lhe lá dentro. Vieste dali e é a esse ali que tens de voltar. Diz
– Mãe
porque aliás nunca te foste embora. Pois não?
– Ainda não é isso
e começo de novo até me ordenar
O melhor da semana multimédia: histórias, fotogalerias, videos e podcasts
– Volta a fazer
de modo que torno à mesma frase, danado comigo, furioso que ser espontâneo dê tanto trabalho como dizia o Manel da Fonseca. Não trabalho na quinta ou na décima versão, trabalho para conseguir a primeira,
Susa Monteiro |
a única que interessa e que, às vezes, surge depois da oitava, outras no meio da décima sétima, outras ainda, mais frequentes, não surge nunca. Um livro é um milagre estranho, com regras por vezes aparentemente contraditórias, ou absurdas, ou as duas coisas juntas, o sucesso e o fracasso sempre indistintos, a solução questionável, o resultado aleatório e a qualidade duvidosa. Se calhar o máximo que é possível não passa de uma satisfação transitória: portanto relê, relê, relê, volta ao início, principia de novo: trabalhas no escuro, à espera de uma pequena luz que tarda em chegar. Como Hipócrates dizia acerca do trabalho do médico, a Arte é longa, a Vida breve, a experiência enganadora, o juízo difícil e a oportunidade fugidia. Mas, se não fosse assim, que interesse tinha? Nada é vulgar, tudo é excepcional. Escreve outra vez. Tenta de novo. Como dizia
o meu amigo Eugénio isto é um ofício de paciência e o escritor não passa de um relojoeiro das emoções, digo eu, a tentar fazer coincidir os ponteiros da alma com os do tempo. E o livro uma natureza-morta de emoções. Sopra-lhe vida, tu. Sopra-lhe tudo o que és, segundo a técnica de Deus com o barro inicial. Faz as personagens de uma costela tua, dá-lhes o teu tamanho e a tua esperança. E tenta transformar a vitória numa gloriosa derrota. Até agora, no trabalho em que estou, suado e aflito, consegui dois capítulos. Talvez o primeiro me sirva de apoio, talvez tenha começado a voar no segundo. Como voar agora? Como dar a isto a dimensão de um homem? Gloriosas derrotas? Goethe sustentava que não alcançar era a nossa única grandeza. De modo que a vitória possível é uma resplandecente humilhação. Com isto bem presente talvez possas continuar. Talvez o dedo da tua mãe te auxilie, apontando um espaço branco no livro de leitura:
– Diz-me esta frase aqui
de modo que repete em voz alta para ela as palavras que começam a lá estar, e surgindo devagarinho, uma após outra, da brancura do papel. Continua a avançar tacteando, continua a avançar. Espera por ti na esquina de uma página, tropeça, levanta-te, não pares. Já tens
o título do livro, as cores dele, uma espécie de clima que começa a ser-te familiar: é o teu rosto de homem nu e desfigurado, o melhor que podes conseguir é o teu rosto vivo e, nele, todos os rostos da tua vida, até ao último, que só terás quando não puderes ganhá-lo porque já não és e, ao não seres, continuas. Goethe ainda: é o não chegares que faz a tua verdadeira grandeza. E então pede
– Mais luz
como ele fez ao morrer. Pede
– Mais luz
enquanto te transformas em trevas que têm a forma do teu corpo. Depois levanta-te e continua sozinho dado que ninguém te ajuda. Estás de facto sozinho. Os ruídos da casa desapareceram. A presença dos outros desapareceu. O tempo é apenas um ponteiro que não aponta nada ou aponta mil caminhos, o que é a mesma coisa. E o caminho não passa de um vazio cheio de sons que se torna necessário encontrar o único som autêntico, o som inicial, a tua voz oculta por mil ecos aliás indecifráveis ou aparentemente sem nexo. Tudo é irreal, tudo é misterioso e é necessário transformar esse tudo num fiozinho, quase invisível, de água pura. Um livro não é o que está escrito nele, é o que está escrito em ti, um livro é o teu sangue ao longo das páginas. O teu sangue, o teu olhar e o teu gesto, como queria Rilke, tornares-te um pássaro quase mortal de alma, o título que pretendes dar ao que agora escreves e encontraste numa elegia do Duíno, como um grito do Poeta enterrado na água. Não como: o grito
(sem como)
do Poeta enterrado na água e, com esse grito usado como bengala na mão, caminha ao teu próprio encontro, que é tudo aquilo que poderás achar, ou seja um infinito nada com vozes. Escuta-te. Tropeça na tua sombra e escuta-te porque tens que deixar de escutar-te para poderes ouvir. E então as palavras principiam, uma a uma, a chegar. Ninguém desce vivo de uma cruz, a não ser que já haja nascido. Ainda estás, ainda és. A tua mãe chama-te com um livro aberto nos joelhos, ela que explicava tão bem a forma como ensinara os filhos a lerem. A gente ia e vinha e ela continuava à espera, ela, uma rapariga de vinte e tal anos com todas as palavras deste mundo no colo, quietas, prontas a correrem para ti ao aprenderes-lhes os nomes. Escrever é nomear apenas, uma tentativa de ordenação do confuso vazio interior, és tu a aproximares-te de ti mesmo. Digo isto e ilumino-me dos olhos verdes dela, à minha procura entre o seu sorriso e o mundo. Ocupava tão pouco espaço e no entanto a vida inteira cabia-lhe lá dentro. Vieste dali e é a esse ali que tens de voltar. Diz
– Mãe
porque aliás nunca te foste embora. Pois não?
terça-feira, junho 25
Rataplã
Rataplã é o gato siamês. Olho todo azul. Magro de tão libidinoso. Pior que um piá de mão no bolso. Vive no colo, se esfrega e ronrona.
— Você não acredita. Se eu ralho, sai lágrima azul daquele olho.
Hora de sua volta do colégio, ele trepa na cadeira e salta na janela. Ali à espera, batendo o rabinho na vidraça.
Doente incurável. O veterinário propõe sacrificá-lo. A moça deita-o no colo. Ela mesma enfia a agulha na patinha. E ficam se olhando até o último suspiro nos seus braços. Nem quando o pai se foi ela sentiu tanto.
Dalton Trevisan, "Ah, é?"
Como a leitura nos transforma e prepara para o futuro
Um escritor é, antes de tudo, um leitor. E quando abrimos "O Vício dos Livros", é o Afonso Cruz leitor que encontramos. O menino que preferia ir de ônibus à escola porque demorava mais e ele podia ler por mais tempo. O leitor de Quintana, de Rilke, de Elias Canetti. Alguém que aprendeu com Kafka mais sobre sua avó – e sobre o fim de uma história e de uma vida.
Há muitos pontos de partida para falar sobre esse livro de ensaios do escritor português, lançamento da Dublinense, em que ele reflete sobre obras e leituras a partir de suas referências literárias e histórias pessoais.
Começo pelo pessoal também, por uma lembrança que voltou quando li Gugudadismo. Cruz comenta que não é incomum ouvir gente criticando livros infantis, dizendo que texto e imagem não correspondem àquilo que se considera adequado para crianças. Meu filho tinha três anos quando, num dia de levar brinquedo para a escola, saiu com seu volume de Se os Tubarões Fossem Homens (Olho de Vidro) embaixo do braço. Um texto de Brecht sobre organização social, relações de poder e exploração lindamente ilustrado por Nelson Cruz
“Assustador é o fato de alguém acreditar que um leitor, criança ou adulto, deve conhecer tudo o que lê, que não deve encontrar novidade nenhuma, que não deve deparar-se com situações novas, palavras novas, frases novas. Os livros, dependendo de sua qualidade, têm características perturbadoras e inovadoras”, ele escreve. São esses livros – que perturbam, que nos confrontam com situações desconhecidas – os que importam e nos formam, no fim das contas. “Um bom livro”, ele escreve mais adiante, “dirige-se ao futuro de cada leitor e não ao seu presente”.
Com Rilke, aprendeu de onde vêm os versos e compreendeu que somos feitos também de experiências que já esquecemos. Da leitura do romeno Cartarescu, tira: “Antes de ser uma fórmula e técnica literária, a poesia é um modo de vida, é uma maneira de olhar o mundo”.
Vai da vida vivida dentro de uma história às ruas. A Bagdá, onde conheceu uma mulher que lhe disse que a literatura a libertou - e onde visitou, na margem do rio Tigre, a rua Al-Mutanabbi, “um artéria feita de livros”, com livrarias e sebos dos dois lados, que foi atingida em 2007 por um ataque suicida e renasceu.
Escreve sobre como encontrar a felicidade nos livros que não lemos, extrai de um estudo a conclusão de que ler regularmente pode nos dar mais uns dois anos de vida, diz que gatos e escritores são muito parecidos.
Em outro texto, sobre por que não há muitos leitores, em que analisa argumentos batidos sobre a concorrência do celular, do streaming, do brincar na rua dos tempos passado, ele evoca Antonio Basanta, espanhol especialista em leitura, que vai direto ao ponto: “Não é a falta de tempo que impede a leitura, é a falta de desejo”. Um argumento que até pode ser verdadeiro, Afonso Cruz reconhece, mas que não passa de “mera desculpa”. A leitura, ele reafirma, é um processo lento, que não pode ser feito enquanto se faz outra coisa. E, mais importante, ler exige silêncio e recolhimento. E quem está disposto a calar todo o resto?
Há muitos pontos de partida para falar sobre esse livro de ensaios do escritor português, lançamento da Dublinense, em que ele reflete sobre obras e leituras a partir de suas referências literárias e histórias pessoais.
Começo pelo pessoal também, por uma lembrança que voltou quando li Gugudadismo. Cruz comenta que não é incomum ouvir gente criticando livros infantis, dizendo que texto e imagem não correspondem àquilo que se considera adequado para crianças. Meu filho tinha três anos quando, num dia de levar brinquedo para a escola, saiu com seu volume de Se os Tubarões Fossem Homens (Olho de Vidro) embaixo do braço. Um texto de Brecht sobre organização social, relações de poder e exploração lindamente ilustrado por Nelson Cruz
“Assustador é o fato de alguém acreditar que um leitor, criança ou adulto, deve conhecer tudo o que lê, que não deve encontrar novidade nenhuma, que não deve deparar-se com situações novas, palavras novas, frases novas. Os livros, dependendo de sua qualidade, têm características perturbadoras e inovadoras”, ele escreve. São esses livros – que perturbam, que nos confrontam com situações desconhecidas – os que importam e nos formam, no fim das contas. “Um bom livro”, ele escreve mais adiante, “dirige-se ao futuro de cada leitor e não ao seu presente”.
Com Rilke, aprendeu de onde vêm os versos e compreendeu que somos feitos também de experiências que já esquecemos. Da leitura do romeno Cartarescu, tira: “Antes de ser uma fórmula e técnica literária, a poesia é um modo de vida, é uma maneira de olhar o mundo”.
Vai da vida vivida dentro de uma história às ruas. A Bagdá, onde conheceu uma mulher que lhe disse que a literatura a libertou - e onde visitou, na margem do rio Tigre, a rua Al-Mutanabbi, “um artéria feita de livros”, com livrarias e sebos dos dois lados, que foi atingida em 2007 por um ataque suicida e renasceu.
Escreve sobre como encontrar a felicidade nos livros que não lemos, extrai de um estudo a conclusão de que ler regularmente pode nos dar mais uns dois anos de vida, diz que gatos e escritores são muito parecidos.
Em outro texto, sobre por que não há muitos leitores, em que analisa argumentos batidos sobre a concorrência do celular, do streaming, do brincar na rua dos tempos passado, ele evoca Antonio Basanta, espanhol especialista em leitura, que vai direto ao ponto: “Não é a falta de tempo que impede a leitura, é a falta de desejo”. Um argumento que até pode ser verdadeiro, Afonso Cruz reconhece, mas que não passa de “mera desculpa”. A leitura, ele reafirma, é um processo lento, que não pode ser feito enquanto se faz outra coisa. E, mais importante, ler exige silêncio e recolhimento. E quem está disposto a calar todo o resto?
Um romancista
Marques Rebelo tem o mesmo cabelo cortado à escovinha do tempo em que eu o conheci, o olhar rápido e malicioso. Mas há uma coisa nova no seu rosto: mais bondade do que antes, o que certamente a vida lhe veio ensinando. Era conhecido como tendo uma língua venenosa que não poupava ninguém. Também isso o tempo e a experiência e um natural cansaço vieram amenizar.
Marques Rebelo é seu “nome de guerra”. O verdadeiro é Eddy Dias da Cruz, nome que parece ter outra personalidade. Marques Rebelo achou que era necessária uma eufonia mínima para um nome literário, e rebatizou-se: acha que todo mundo devia batizar-se sozinho. Os dois nomes se fundiram e ele ficou uno. Começou a escrever quase menino. Escrevia, mas não se comunicava nem consigo próprio e rasgava os papéis. Aos 19 anos publicou poesias em revistas modernistas como Antropofagia, Verde. Mas envergonha-se desse seu passado poético. Aos 21 anos, em plena vida de soldado, escreveu Oscarina que lhe deu satisfação. Seguiram-se Três caminhos, Marafa, A estrela sobe, Stella me abriu a porta e – depois de largo tempo longe da ficção – os volumes do Espelho partido, que é uma tentativa de painel da vida brasileira, feita de infinitos fragmentos. É produto de paciência, quase de obstinação. Trabalha por disciplina, sem esperar por inspiração: escreve sempre, mesmo que seja para jogar fora ou refazer 30 vezes. Para ele, reescrever é mais importante que escrever.
E a madrugada é a sua hora. O silêncio é que convida. Descobriu a noite desde meninote, quando tinha durante o dia que trabalhar.
O livro de literatura que gostaria de ter escrito e o deixaria plenamente satisfeito é Nils Lyhne, de Jacobs: acha-o apaixonante.
Quanto aos novos escritores, opina que são ainda os mais velhos que estão conduzindo o barco: os moços ainda não deram seu depoimento, parece que um horizonte tão aberto os assusta. Acha que, bem ou mal, está dando o seu recado. Concorda que é o escritor mais carioca do Brasil, mas não acha isso uma qualidade e sim produto de circunstâncias.
Quando perguntado sobre o que faz na Academia Brasileira de Letras responde sorrindo que marca passo para o mausoléu. Não se queixa dos críticos, às vezes se queixa de si mesmo. O momento mais decisivo de sua vida talvez tenha sido aquele em que decidiu ser escritor.
Viveu sempre modestamente, de trabalhos extraliterários, de modo a que lhe sobrasse tempo para ler e escrever. É um grande leitor. E escrever, para ele, vale a pena: é o seu reduto de liberdade. Fora escrever, o que mais lhe agrada mesmo é viver.
A literatura, segundo ele, nunca traz amigos, no máximo traz alguns simpáticos desafetos. Em literatura se sente muito sozinho; em vida se reparte bastante.
Nasceu em Vila Isabel, morou na Tijuca, Botafogo e Laranjeiras, cada bairro com uma personalidade própria: o Rio é uma cidade com muitas cidades dentro.
Seu clube de futebol? América, única paixão de sua vida. Esse time o alucina. O América perde sempre... Gosta de cinema, mas prefere teatro.
Quanto ao preço alto que se paga na vida, ele acha que vale.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
Marques Rebelo é seu “nome de guerra”. O verdadeiro é Eddy Dias da Cruz, nome que parece ter outra personalidade. Marques Rebelo achou que era necessária uma eufonia mínima para um nome literário, e rebatizou-se: acha que todo mundo devia batizar-se sozinho. Os dois nomes se fundiram e ele ficou uno. Começou a escrever quase menino. Escrevia, mas não se comunicava nem consigo próprio e rasgava os papéis. Aos 19 anos publicou poesias em revistas modernistas como Antropofagia, Verde. Mas envergonha-se desse seu passado poético. Aos 21 anos, em plena vida de soldado, escreveu Oscarina que lhe deu satisfação. Seguiram-se Três caminhos, Marafa, A estrela sobe, Stella me abriu a porta e – depois de largo tempo longe da ficção – os volumes do Espelho partido, que é uma tentativa de painel da vida brasileira, feita de infinitos fragmentos. É produto de paciência, quase de obstinação. Trabalha por disciplina, sem esperar por inspiração: escreve sempre, mesmo que seja para jogar fora ou refazer 30 vezes. Para ele, reescrever é mais importante que escrever.
E a madrugada é a sua hora. O silêncio é que convida. Descobriu a noite desde meninote, quando tinha durante o dia que trabalhar.
O livro de literatura que gostaria de ter escrito e o deixaria plenamente satisfeito é Nils Lyhne, de Jacobs: acha-o apaixonante.
Quanto aos novos escritores, opina que são ainda os mais velhos que estão conduzindo o barco: os moços ainda não deram seu depoimento, parece que um horizonte tão aberto os assusta. Acha que, bem ou mal, está dando o seu recado. Concorda que é o escritor mais carioca do Brasil, mas não acha isso uma qualidade e sim produto de circunstâncias.
Quando perguntado sobre o que faz na Academia Brasileira de Letras responde sorrindo que marca passo para o mausoléu. Não se queixa dos críticos, às vezes se queixa de si mesmo. O momento mais decisivo de sua vida talvez tenha sido aquele em que decidiu ser escritor.
Viveu sempre modestamente, de trabalhos extraliterários, de modo a que lhe sobrasse tempo para ler e escrever. É um grande leitor. E escrever, para ele, vale a pena: é o seu reduto de liberdade. Fora escrever, o que mais lhe agrada mesmo é viver.
A literatura, segundo ele, nunca traz amigos, no máximo traz alguns simpáticos desafetos. Em literatura se sente muito sozinho; em vida se reparte bastante.
Nasceu em Vila Isabel, morou na Tijuca, Botafogo e Laranjeiras, cada bairro com uma personalidade própria: o Rio é uma cidade com muitas cidades dentro.
Seu clube de futebol? América, única paixão de sua vida. Esse time o alucina. O América perde sempre... Gosta de cinema, mas prefere teatro.
Quanto ao preço alto que se paga na vida, ele acha que vale.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
O porto
Um porto é um retiro encantador para uma alma cansada das lutas da vida. A largueza do céu, a móvel arquitetura das nuvens, o colorido cambiante do mar, o brilho dos faróis, são um prisma maravilhosamente adequado para distrair o olhar sem cansá-lo nunca.
As formas esguias dos navios, de construção complicada, aos quais a maré imprime oscilações harmoniosas, servem para entreter na alma o gosto do ritmo e da beleza. E há, além disso, uma espécie de prazer misterioso e aristocrático, para quem não tem mais curiosidade nem ambição, em contemplar, deitado no mirante ou debruçado no cais, todos os movimentos dos que partem e dos que chegam, dos que ainda têm a força de querer e o desejo de viajar ou fazer fortuna.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
As formas esguias dos navios, de construção complicada, aos quais a maré imprime oscilações harmoniosas, servem para entreter na alma o gosto do ritmo e da beleza. E há, além disso, uma espécie de prazer misterioso e aristocrático, para quem não tem mais curiosidade nem ambição, em contemplar, deitado no mirante ou debruçado no cais, todos os movimentos dos que partem e dos que chegam, dos que ainda têm a força de querer e o desejo de viajar ou fazer fortuna.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
segunda-feira, junho 24
Lagosta à moda francesa
Aos domingos, como os meus remanescentes amigos costumam passar fora o fim de semana e como este tem por finalidade, não confessada, exatamente essa espécie de ascese que é a gente livrar-se durante um dia e meio dos amigos, fico com o dia em branco e devoro literalmente os jornais. Desde os pequenos anúncios, onde encontro coisas deliciosamente assim: “Alugam-se duas salas para senhoras bem arejadas” — até seções dedicadas ao lar. Ora, na última destas, li e reli:
Isto é de a gente ficar com água na boca... E também é de amargar! Como é que a dona de casa, que não consegue nem um democrático sirizinho, vai conseguir a imperial lagosta?
Isto não pode ser.
É verdade que há gente que pode…
Também esclareça-se que não implico com as lagostas. A lagosta é dos poucos bichos que a gente pode ver inteiros antes de deglutir. Aquela sua armadura medieval e o seu aspecto heráldico, pois deve ter nascido para animal de brasão, tal como o nobre e irreversível hipocampo, aquele seu aspecto puramente decorativo não me constrange à mesma situação de quando fui enfrentar, há dias, uma cabeça de porco assado. Meu Deus, aquele sorriso, aquela sua face, aquilo tudo tão humano me provocou uma inibição impossível de dominar...E, dentro dessa mesma exemplificação de sentimentalismos gastronômicos, sei de uma boa senhora que não podia comer galinhas a quem “conhecia pessoalmente”, do seu terreiro. Apenas saboreava as que provinham anonimamente do mercado público.
Pois bem, meus ricos leitores, não sou, como vistes, contra lagostas e outros acepipes: isto seria levar muito longe a solidariedade democrática…
O que acontece comigo é que — com perdão da irreverência da comparação — penso como o apóstolo São Paulo, o qual, agradecendo numa de suas epístolas o auxílio financeiro que lhe haviam mandado alguns discípulos, respondeu-lhes que aproveitaria bem o dinheiro, visto que tanto estava acostumado a passar bem como a passar mal... Ótimo! Eis aí um grande santo que era também grandemente humano.
Mário Quintana, "Porta giratória"
“LAGOSTA À MODA FRANCESA — Ponha a lagosta, para cozinhar, num molho de escabeche bem grosso: deixe esfriar no próprio líquido em que foi cozida. Separe então a carne da lagosta, deixando intacta a carapaça da mesma. Reserve alguns pedaços mais bonitos e pique o resto para fazer um guisado. Refogue na manteiga, junte um pouco de Vinho do Porto e ligue tudo a um molho bem temperado. Recheie com essa carne a carapaça da lagosta, arrume dentro de uma fôrma, regue com um pouco mais de molho e leve ao forno para dourar, sem deixar no entanto ressecar por cima.”
Isto é de a gente ficar com água na boca... E também é de amargar! Como é que a dona de casa, que não consegue nem um democrático sirizinho, vai conseguir a imperial lagosta?
Isto não pode ser.
É verdade que há gente que pode…
Mas não são os da soçaiti nem os marginais que formam a classe média nacional, composta de honrados e suados barnabés. Dos marginais, nem é bom falar, porque isso nunca deixa de provocar na gente uma espécie de remorso de fundo coletivo... Quanto à “gente bem”, são como que o haut fond da sociedade, como o dizia um amigo meu, em contraposição ao bas fond. O que aliás não é implicar com ninguém.
Também esclareça-se que não implico com as lagostas. A lagosta é dos poucos bichos que a gente pode ver inteiros antes de deglutir. Aquela sua armadura medieval e o seu aspecto heráldico, pois deve ter nascido para animal de brasão, tal como o nobre e irreversível hipocampo, aquele seu aspecto puramente decorativo não me constrange à mesma situação de quando fui enfrentar, há dias, uma cabeça de porco assado. Meu Deus, aquele sorriso, aquela sua face, aquilo tudo tão humano me provocou uma inibição impossível de dominar...E, dentro dessa mesma exemplificação de sentimentalismos gastronômicos, sei de uma boa senhora que não podia comer galinhas a quem “conhecia pessoalmente”, do seu terreiro. Apenas saboreava as que provinham anonimamente do mercado público.
Pois bem, meus ricos leitores, não sou, como vistes, contra lagostas e outros acepipes: isto seria levar muito longe a solidariedade democrática…
O que acontece comigo é que — com perdão da irreverência da comparação — penso como o apóstolo São Paulo, o qual, agradecendo numa de suas epístolas o auxílio financeiro que lhe haviam mandado alguns discípulos, respondeu-lhes que aproveitaria bem o dinheiro, visto que tanto estava acostumado a passar bem como a passar mal... Ótimo! Eis aí um grande santo que era também grandemente humano.
Mário Quintana, "Porta giratória"
Caça aos livros
Está aberta a temporada de caça aos livros no Brasil! Mas atenção. A perseguição restringe-se à indicação pedagógica de certas obras capazes de promover o debate e a reflexão antirracista no país mais negro fora da África.
Este poderia ser o preâmbulo de uma publicação sobre uma distopia, um "lugar ruim" qualquer. Tragicamente é a síntese da reação adversa desencadeada pela adoção curricular de alguns livros que abordam a temática racial —a despeito da obrigação legal (lei 10.639/2003) do ensino da história e da cultura afro-brasileira em nossas escolas.
A leitura é um hábito fundamental para o desenvolvimento do raciocínio, senso crítico e capacidade de interpretação da realidade. E é justamente na problematização do preconceito e da discriminação que reside a resistência de setores da sociedade que se acostumaram a naturalizar o racismo institucionalizado.
Nessa toada, livros como "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório (vencedor do prêmio Jabuti, em 2021), sobre a vida de um professor negro morto numa ação policial; "Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas", de Flávia Martins de Carvalho, sobre 20 personalidades (a maioria negras) com histórias inspiradoras; "O Menino Marrom", de Ziraldo, que aborda a construção da identidade de uma criança preta discriminada ao oferecer ajuda a uma idosa; e "Omo-Oba: Histórias de Princesas", de Kiusam de Oliveira, sobre o conto dos Orixás e mitos africanos, vêm sendo "contraindicados" em escolas brasileiras desde 2018.
O poder combativo da linguagem é inegável. O livro é ferramenta importante no processo de construção da individualidade. E a literatura negra é uma forma de resistência que ajuda a enfrentar a intolerância à diversidade, além de afirmar identidades negras.
A questão é: quem está realmente interessado em promover a equidade racial num país onde critérios racistas definem privilégios e orientam as relações sociais há mais de 500 anos?
Este poderia ser o preâmbulo de uma publicação sobre uma distopia, um "lugar ruim" qualquer. Tragicamente é a síntese da reação adversa desencadeada pela adoção curricular de alguns livros que abordam a temática racial —a despeito da obrigação legal (lei 10.639/2003) do ensino da história e da cultura afro-brasileira em nossas escolas.
A leitura é um hábito fundamental para o desenvolvimento do raciocínio, senso crítico e capacidade de interpretação da realidade. E é justamente na problematização do preconceito e da discriminação que reside a resistência de setores da sociedade que se acostumaram a naturalizar o racismo institucionalizado.
Nessa toada, livros como "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório (vencedor do prêmio Jabuti, em 2021), sobre a vida de um professor negro morto numa ação policial; "Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas", de Flávia Martins de Carvalho, sobre 20 personalidades (a maioria negras) com histórias inspiradoras; "O Menino Marrom", de Ziraldo, que aborda a construção da identidade de uma criança preta discriminada ao oferecer ajuda a uma idosa; e "Omo-Oba: Histórias de Princesas", de Kiusam de Oliveira, sobre o conto dos Orixás e mitos africanos, vêm sendo "contraindicados" em escolas brasileiras desde 2018.
O poder combativo da linguagem é inegável. O livro é ferramenta importante no processo de construção da individualidade. E a literatura negra é uma forma de resistência que ajuda a enfrentar a intolerância à diversidade, além de afirmar identidades negras.
A questão é: quem está realmente interessado em promover a equidade racial num país onde critérios racistas definem privilégios e orientam as relações sociais há mais de 500 anos?
Sobre o escritor
O escritor não há de ter a pretensão de dizer verdades. Isso não cabe nem aos filósofos, talvez nem a Deus. Ao escritor interessa relatar as mentiras, as contradições, as frustrações do homem em sua trajetória pelo mundo – e, se sobrar espaço, algumas de suas alegrias. Se conhecêssemos a verdade, não precisaríamos de escritores.
O jovem, quando tem a pretensão de ser escritor, é tentado a confundir arte com artifício, o principal com o meramente acessório e, por estar na maravilhosa fase de descoberta das palavras, procura usá-las todas em seus textos, tenham cabimento ou não. Os textos se carregam então de festas feéricas, colheitas opíparas, estrelas iridescentes. E aproximar-se vira apropinquar-se, dificultar se torna obstaculizar, alimento saboroso transforma-se em iguaria, ambrosia ou – !!! – cibo. Depois dessa época em que vê a literatura como uma árvore de Natal e a enfeita com os mais exóticos penduricalhos, o candidato a escritor começará a notar, se tiver bom-senso, que o processo é inverso: despir a árvore dos balangandãs.
***
O compromisso que o escritor deve assumir é consigo mesmo. Fazer tudo que puder, sempre o melhor que puder. O leitor deve ser considerado o que é: uma testemunha que pode ser condescendente ou não, que pode dar ao escritor um instante de atenção, ou meio, ou nenhum. O escritor pode adulá-lo, bajulá-lo até, para ganhar sua simpatia. Mas o escritor não é um saltimbanco. Melhor será que o leitor o veja como é: alguém que, se der três saltos mortais seguidos, será não por mágicas suas, mas pelo poder que tiverem suas palavras.
***
O jovem, quando tem a pretensão de ser escritor, é tentado a confundir arte com artifício, o principal com o meramente acessório e, por estar na maravilhosa fase de descoberta das palavras, procura usá-las todas em seus textos, tenham cabimento ou não. Os textos se carregam então de festas feéricas, colheitas opíparas, estrelas iridescentes. E aproximar-se vira apropinquar-se, dificultar se torna obstaculizar, alimento saboroso transforma-se em iguaria, ambrosia ou – !!! – cibo. Depois dessa época em que vê a literatura como uma árvore de Natal e a enfeita com os mais exóticos penduricalhos, o candidato a escritor começará a notar, se tiver bom-senso, que o processo é inverso: despir a árvore dos balangandãs.
Há Viagens e Viagens
Heureux qui comme Ulysse,
a fait un bon voyage.
Du Bellay
Quase ninguém é indiferente ao apelo à viagem. E quase toda a gente inveja Ulisses, que, se não fez, exactamente, uma boa viagem, como canta Du Bellay, perpetrou, pelo menos, uma longuíssima e acidentada odisseia de retorno.
Há gostos para tudo. Du Bellay invejava Ulisses. Gide torcia o nariz à odisseia do grego, porque, no fim da viagem, esperava-o Penépole, que, para sempre, o iria amarrar ao lar. Exaltava, em contrapartida, Sindbad, o das Mil e Uma Noites, por ser livre como um passarinho: no fim da viagem, esperava-o, não uma amarra, mas uma nova viagem. Para Gide, também, uma viagem era apenas o prefácio à viagem seguinte, em contraste com a de Ulisses, que não passou de uma obrigatória navegação de regresso. Gide tinha igualmente um lar à espera, em Cuverville, mas fazia de conta que não dava por isso, e traiu, tanto quanto pôde – e sem complacências – a sua fiel Penélope que, para o caso, se chamava Madeleine. O que ele queria, está-se a ver, era copiar, com “gusto” e mesmo frenesi, o fluir libérrimo do marinheiro Sindbad.
Viajar tem boa e tem má imprensa. Há quem elogie, há quem diga mal e há quem, simplesmente, se aborreça. O actor e escritor Al Boliska propôs uma definição célebre que hoje anda citada por todo o lado: “Viajar de avião”, disse ele, “são horas de tédio interrompidas por puro terror.” Ainda assim, Boliska só critica o viajar de avião, não todo o viajar. Mas há quem demita qualquer espécie de viagem. O conhecido romancista Paul Theroux, com obra assinalável transposta para o cinema, observava que “viajar só é glamoroso em retrospecto”, isto é, só funciona depois de terminada a viagem, ao contá-la, ao serão, aos amigos. William Trevor dizia o mesmo, de outra maneira: “Ele só viajava para poder voltar para casa”, isto é, o melhor da viagem era o regresso. Nem Ulisses foi tão longe: suspeito que gostou mais da ida do que da volta
Claro que é preciso saber viajar, saber ver e, sobretudo, gostar de ver. Viajar por viajar é inútil e fica caro. Como dizia o outro, não vale a pena dar a volta ao mundo só para contar o número de gatos que há em Zanzibar.
Viajar – o convite à viagem! Há quem proteste em termos paradoxais: “É pena”, dizia Chesterton, “as pessoas viajarem por países estrangeiros; estreita-lhes de tal maneira o espírito.” Sterne, no seu imenso Tristram Shandy, não vai tão longe, mas faz uma recomendação: “Um homem deve também conhecer alguma coisa do seu próprio país, antes de ir para o estrangeiro.”
“Viajar é quase como falar com homens de outros séculos”, dizia Descartes.
Viajar tem boa e tem má imprensa. Há quem elogie, há quem diga mal e há quem, simplesmente, se aborreça. O actor e escritor Al Boliska propôs uma definição célebre que hoje anda citada por todo o lado: “Viajar de avião”, disse ele, “são horas de tédio interrompidas por puro terror.” Ainda assim, Boliska só critica o viajar de avião, não todo o viajar. Mas há quem demita qualquer espécie de viagem. O conhecido romancista Paul Theroux, com obra assinalável transposta para o cinema, observava que “viajar só é glamoroso em retrospecto”, isto é, só funciona depois de terminada a viagem, ao contá-la, ao serão, aos amigos. William Trevor dizia o mesmo, de outra maneira: “Ele só viajava para poder voltar para casa”, isto é, o melhor da viagem era o regresso. Nem Ulisses foi tão longe: suspeito que gostou mais da ida do que da volta
De entre os demolidores do mito da viagem, citarei o talvez mais antigo (será?): Sócrates, que disse, imaginem, esta barbaridade: “Vê um promontório, uma montanha, um mar, um rio e viste tudo.” Como se não houvesse rios e rios, promontórios e promontórios, cidades e cidades! Quem pode ser de opinião que o Amazonas é o mesmo que qualquer pífio afluente de um rio de trazer por casa… Quem pode afirmar que ver Leiria é o mesmo que ver Paris ou Veneza! Ou como se Florença fosse o mesmo que Alguidares de Baixo! Ou como se o Iguaçu não diferisse grande coisa das pindéricas “cascatas” da Namaacha, da minha saudosa infância africana!
Claro que é preciso saber viajar, saber ver e, sobretudo, gostar de ver. Viajar por viajar é inútil e fica caro. Como dizia o outro, não vale a pena dar a volta ao mundo só para contar o número de gatos que há em Zanzibar.
Viajar – o convite à viagem! Há quem proteste em termos paradoxais: “É pena”, dizia Chesterton, “as pessoas viajarem por países estrangeiros; estreita-lhes de tal maneira o espírito.” Sterne, no seu imenso Tristram Shandy, não vai tão longe, mas faz uma recomendação: “Um homem deve também conhecer alguma coisa do seu próprio país, antes de ir para o estrangeiro.”
“Viajar é quase como falar com homens de outros séculos”, dizia Descartes.
quinta-feira, junho 20
Os meus mortos
Durante grande parte da nossa vida, a morte é uma coisa alheia e distante que só vaga e incertamente nos diz respeito. Até que, um dia, damos subitamente com ela à porta da nossa própria casa e descobrimos então que sempre ali esteve.
Antes de morrer com 16 facadas, numa longínqua auto-estrada da Turquia, Sérgio escreveu-me uma última vez. Uma carta trivial, dizendo coisas triviais sobre coisas triviais, como se não tivesse ainda morrido. A notícia da sua morte chegara, no entanto, primeiro do que a carta. Que podia eu fazer com ela, com a carta, com tanto peso, com tanta desmesura? Também Fernando me escreveu antes de se enforcar. Mandou-me um cheque. Emprestara-lhe em tempos dinheiro e ele esquecera-se de que já mo havia pago e pagava-mo de novo. Que podia eu fazer com um dinheiro tão insustentável como aquele?
E com os seus nomes, que poderei fazer agora com os seus nomes? E que outro nome terão agora o Fernando, o Sérgio, o Chico, o Assis, o Arnaldo, a Marcela, o Luís, o Manuel Hermínio e os outros? Abro a minha agenda telefónica e estão ainda todos paradamente lá, os nomes que um dia tiveram. Que poderei fazer com eles? Riscá-los? Apagá-los? São agora aparentemente inúteis, esses nomes e esses números. E, contudo, ali permanecem, alguns há vários anos. Porque se trata, cada um, de uma questão comigo mesmo, uma questão insolúvel, ainda não encerrada. Todos os anos copio outra vez os seus nomes. Porque ainda não me conformei. Há de facto na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu, tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel Hermínio. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o Sol declinava lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e pedras. Como poderia conformar-me?
Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.
Manuel António Pina
Quando somos jovens e morrem os avós, ou os pais, ou os amigos dos pais, não é ainda a morte. Mesmo se um amigo morre, morre por acidente, morre por acaso, morre antes do tempo de morrer. A morte apenas começa a ter um rosto, o nosso rosto, quando, à volta, os amigos morrem tão-só de morrer e os motivos por que morrem são uma explicação, não uma razão. A mãe de minha mulher costumava dizer: «Os meus mortos...», e eu não compreendia. Hoje, porém, também eu tenho mortos. Quando o Chico morreu escrevi um poema a que pus o título de «O mundo sem o Chico», porque, descobri, a sua morte tinha levado o mundo consigo e o que me restava era um outro mundo, desconhecido e desabrigado, onde penosamente aprendia a viver outra vida, a minha vida. Depois disso, muitos mais mundos se foram desfazendo diante de mim e, de cada vez, fiquei mais só do lado de cá de qualquer coisa.
Antes de morrer com 16 facadas, numa longínqua auto-estrada da Turquia, Sérgio escreveu-me uma última vez. Uma carta trivial, dizendo coisas triviais sobre coisas triviais, como se não tivesse ainda morrido. A notícia da sua morte chegara, no entanto, primeiro do que a carta. Que podia eu fazer com ela, com a carta, com tanto peso, com tanta desmesura? Também Fernando me escreveu antes de se enforcar. Mandou-me um cheque. Emprestara-lhe em tempos dinheiro e ele esquecera-se de que já mo havia pago e pagava-mo de novo. Que podia eu fazer com um dinheiro tão insustentável como aquele?
E com os seus nomes, que poderei fazer agora com os seus nomes? E que outro nome terão agora o Fernando, o Sérgio, o Chico, o Assis, o Arnaldo, a Marcela, o Luís, o Manuel Hermínio e os outros? Abro a minha agenda telefónica e estão ainda todos paradamente lá, os nomes que um dia tiveram. Que poderei fazer com eles? Riscá-los? Apagá-los? São agora aparentemente inúteis, esses nomes e esses números. E, contudo, ali permanecem, alguns há vários anos. Porque se trata, cada um, de uma questão comigo mesmo, uma questão insolúvel, ainda não encerrada. Todos os anos copio outra vez os seus nomes. Porque ainda não me conformei. Há de facto na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu, tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel Hermínio. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o Sol declinava lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e pedras. Como poderia conformar-me?
Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.
Manuel António Pina
Comparamento
Os rios recebem, no seu percurso,
pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra antes de chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem nossas torpezas,
nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.
Manoel de Barros, "Ensaios fotográficos"
pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra antes de chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem nossas torpezas,
nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.
Manoel de Barros, "Ensaios fotográficos"
Bicicleta
Ninguém toma a sério a bicicleta como eventual substituto do automóvel na crise de energia que atravessamos, que nos atravessa. A bicicleta é resignação, fleuma, ginástica, infância revisitada, revivida (mais como sonho do que como prática), humor, euforia dominical de carolas que vão «pescar» a sua caldeirada a vinte ou trinta quilómetros da cidade. A bicicleta poderá ser a pedalada contestação dos amigos da Natureza. Para nós, os escravos do volante, ela não passa de mais uma ideia que nos faz sorrir. Nada substituirá, no nosso apreço, o automóvel. Nem no trabalho, nem no lazer. Por enquanto... Mas a bicicleta tem outros pedais que não podemos ver. Movido pela necessidade, esse «tubular engonço», como em jeito barroco uma vez lhe chamei, desenrola quilómetros bem menos alegres do que as tiradas que nele sonhamos fazer. A bicicleta pode ser o mundo às costas: serra de carpinteiro, caixa de ferramentas, cesto de padeiro. A bicicleta pode ser a cruz às costas. Para um renovado olhar sobre a bicicleta, aqui transcrevo, sem mais oitos, o «Apelo Angustiante» que há anos, por ocasião das grandes cheias na região de Lisboa, apareceu nos jornais:
"O meu marido saiu de casa no dia 25 de Novembro para procurar trabalho no Carregado ou no Barreiro, levava: uma bicicleta a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro, vestia calças azuis de zuarte, camisa verde, blusão cinzento, tipo militar, e calçava botas de borracha e tinha chapéu cinzento e levava na bicicleta um saco com uma manta e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo e uma panela de esmalte azul. Como houve as inundações e não tive mais notícias, já estou alarmada e já espero o pior. Estou aflita, eu e os meus dois filhos."Alexandre O’ Neill
O sonho de Er
Esta é a história do valoroso Er, armênio de Panfília. Morto na guerra, seu cadáver incontaminado foi recolhido após dez dias. A pira estava pronta, quando no décimo segundo dia despertou e contou o que havia visto no outro mundo.
Depois de abandoná-lo, sua alma encaminhou-se com outras até um lugar onde havia dois buracos na terra em frente a dois que estavam no céu. Dois juízes pronunciavam as sentenças; os justos se encaminhavam ao céu, pela direita, e os injustos à terra, pela esquerda.
Quando viram Er chegar disseram-lhe que seria mensageiro entre os homens de tudo o que ali ocorria, e que prestasse atenção.
Pelo outro buraco da terra saíam almas sujas ou empoeiradas; pelo outro do céu, almas inteiramente puras. Pareciam chegar de uma longa viagem. Reuniram-se na pradaria e, como velhas conhecidas, as da terra perguntavam pelo céu, e as do céu pela terra. Umas choravam os seus padecimentos de um milênio; outras exaltavam sua bem-aventurança.
Cada alma sofria por dano cometido, outro dano dez vezes maior, durante cem anos (tempo da vida humana). As almas piedosas recebiam pelas boas ações prêmios igualmente maiores.
Uma das almas perguntou pela sorte de Ardieo, tirano de Panfilia mil anos antes. Outra respondeu que não o tinha visto.
Ardieo havia assassinado seu velho pai e seu irmão mais velho; para os que pecavam contra os deuses e contra os pais, os castigos eram piores dos que os mencionados.
De repente Ardieo e outros grandes pecadores emergiram do buraco. A abertura fechou-se e bramiu, e uns seres selvagens envoltos em fogo precipitaram-nos no abismo. Amarraram os pés de Ardieo e o esfolaram e mutilaram de encontro aos espinhos. Para os condenados, porém, o mais atroz de tudo era o bramido.
As almas descansaram sete dias na pradaria; no oitavo saíram em marcha.
Acompanhavam as sereias em seu canto; Láquesis lembrava os tempos passados, Cloto falava nos presentes e Atropo previa os futuros.
Ao chegar perante Láquesis, as almas foram informadas por um adivinho que empreenderiam uma nova etapa em um corpo portador de morte. “Elegereis vós mesmas a vossa sorte, e permanecereis irrevogavelmente unidas; como a virtude não tem dono, cada uma a possuirá conforme a honre. A divindade é inocente.”
Cada uma elegeu um número de ordem, menos Er, e de acordo com a precedência, elegeram um modelo de vida. Havia modelos de tiranos, de mendigos, desterrados, necessitados; prestigiosos por beleza, por vigor, tenacidade, progênie ou prosápia. Havia também, para homens e mulheres, vidas sem qualquer relevo. Riqueza e pobreza, saúde e doença se misturavam. O perigo era grande; necessitava-se de discrição e conhecimento para escolher bem.
Disse o adivinho: — Mesmo para a última que escolher haverá boa fortuna se for sensata; não se descuide a primeira, nem desanime a última.
A primeira precipitou-se e optou por ser tirano: seu destino incluía devorar os próprios filhos. Quando o soube lançou a culpa na sua má sorte e nos deuses, e amaldiçoou a todos menos a si mesma; era uma alma que vinha do céu e que em toda a sua vida havia exercido a virtude. As que provinham da terra eram experimentadas no sofrimento e escolhiam com mais cuidado.
Por não ser gerado por mulher, por aversão ao sexo feminino e porque se lembrava de sua morte, Orfeu escolheu ser cisne. Tâmiras decidiu reencarnar como um rouxinol, e algumas aves como seres humanos. A vigésima alma a escolher, quis ser leão: era Ajax. A seguinte optou por ser águia: era Agamenon, que, como é sabido, odiava a Humanidade. Atalanto decidiu ser atleta e conquistar honrarias; e Epeo resolveu ser artesã. Entre as últimas estava a de Tersites, revestido da ridícula forma de um símio: decidiu ser Ulisses, cuja alma permanecia afastada e esquecida por todos. Ulisses, por sua vez, havia optado por uma existência obscura e sedentária.
Terminada a eleição, cada alma recebeu de Láquesis o seu gênio tutelar; Cloto confirmou os destinos e Átropo tornou-os irrevogáveis.
Junto com seu respectivo gênio tutelar, cada alma (que já não podia retroceder) passou diante do trono da Necessidade e se dirigiu à planície do Esquecimento, onde não havia árvores nem nada do que a terra produz, e onde o calor era atroz. Ao entardecer foram até o rio da Despreocupação, cuja água nenhum recipiente consegue reter. Aí, os que beberam demais, perderam a memória. À meia-noite, todas as almas dormiam. A terra rugiu e moveu-se, e as almas foram lançadas no espaço como estrelas diferentes do seu nascimento anterior.
A Er não foi permitido beber; reencarnou em seu próprio corpo, ergueu os olhos para o céu, viu que era madrugada e encontrou-se sobre sua pira.
Jorge Luís Borges, "Livro de Sonhos"
Depois de abandoná-lo, sua alma encaminhou-se com outras até um lugar onde havia dois buracos na terra em frente a dois que estavam no céu. Dois juízes pronunciavam as sentenças; os justos se encaminhavam ao céu, pela direita, e os injustos à terra, pela esquerda.
Quando viram Er chegar disseram-lhe que seria mensageiro entre os homens de tudo o que ali ocorria, e que prestasse atenção.
Pelo outro buraco da terra saíam almas sujas ou empoeiradas; pelo outro do céu, almas inteiramente puras. Pareciam chegar de uma longa viagem. Reuniram-se na pradaria e, como velhas conhecidas, as da terra perguntavam pelo céu, e as do céu pela terra. Umas choravam os seus padecimentos de um milênio; outras exaltavam sua bem-aventurança.
Cada alma sofria por dano cometido, outro dano dez vezes maior, durante cem anos (tempo da vida humana). As almas piedosas recebiam pelas boas ações prêmios igualmente maiores.
Uma das almas perguntou pela sorte de Ardieo, tirano de Panfilia mil anos antes. Outra respondeu que não o tinha visto.
Ardieo havia assassinado seu velho pai e seu irmão mais velho; para os que pecavam contra os deuses e contra os pais, os castigos eram piores dos que os mencionados.
De repente Ardieo e outros grandes pecadores emergiram do buraco. A abertura fechou-se e bramiu, e uns seres selvagens envoltos em fogo precipitaram-nos no abismo. Amarraram os pés de Ardieo e o esfolaram e mutilaram de encontro aos espinhos. Para os condenados, porém, o mais atroz de tudo era o bramido.
As almas descansaram sete dias na pradaria; no oitavo saíram em marcha.
Depois de quatro dias viram uma coluna de luz semelhante a um arco-íris, porém mais brilhante; em um dia mais chegaram até ela, que ocupava todo o céu e a terra. Viram as correntes do céu; a luz era o laço que unia toda a esfera celeste. Ali estava, aumentado, o fuso da Necessidade que permite girar todas as esferas, e se percebiam os oito céus concêntricos, cada um deles encaixando no outro, como potes côncavos, cujas bordas, de diferentes cores e brilho, formam um mesmo plano. Giram com diferente velocidade e no sentido inverso do fuso, que atravessa a oitava esfera bem no centro. Cada céu era presidido por uma sereia, que emitia um som único, de tom invariável; as oito vozes formavam um conjunto harmônico. Equidistantes e em seus tronos, se achavam as Parcas, filhas da Necessidade; Láquesis, Cloto e Atropo.
Acompanhavam as sereias em seu canto; Láquesis lembrava os tempos passados, Cloto falava nos presentes e Atropo previa os futuros.
Ao chegar perante Láquesis, as almas foram informadas por um adivinho que empreenderiam uma nova etapa em um corpo portador de morte. “Elegereis vós mesmas a vossa sorte, e permanecereis irrevogavelmente unidas; como a virtude não tem dono, cada uma a possuirá conforme a honre. A divindade é inocente.”
Cada uma elegeu um número de ordem, menos Er, e de acordo com a precedência, elegeram um modelo de vida. Havia modelos de tiranos, de mendigos, desterrados, necessitados; prestigiosos por beleza, por vigor, tenacidade, progênie ou prosápia. Havia também, para homens e mulheres, vidas sem qualquer relevo. Riqueza e pobreza, saúde e doença se misturavam. O perigo era grande; necessitava-se de discrição e conhecimento para escolher bem.
Disse o adivinho: — Mesmo para a última que escolher haverá boa fortuna se for sensata; não se descuide a primeira, nem desanime a última.
A primeira precipitou-se e optou por ser tirano: seu destino incluía devorar os próprios filhos. Quando o soube lançou a culpa na sua má sorte e nos deuses, e amaldiçoou a todos menos a si mesma; era uma alma que vinha do céu e que em toda a sua vida havia exercido a virtude. As que provinham da terra eram experimentadas no sofrimento e escolhiam com mais cuidado.
Por não ser gerado por mulher, por aversão ao sexo feminino e porque se lembrava de sua morte, Orfeu escolheu ser cisne. Tâmiras decidiu reencarnar como um rouxinol, e algumas aves como seres humanos. A vigésima alma a escolher, quis ser leão: era Ajax. A seguinte optou por ser águia: era Agamenon, que, como é sabido, odiava a Humanidade. Atalanto decidiu ser atleta e conquistar honrarias; e Epeo resolveu ser artesã. Entre as últimas estava a de Tersites, revestido da ridícula forma de um símio: decidiu ser Ulisses, cuja alma permanecia afastada e esquecida por todos. Ulisses, por sua vez, havia optado por uma existência obscura e sedentária.
Terminada a eleição, cada alma recebeu de Láquesis o seu gênio tutelar; Cloto confirmou os destinos e Átropo tornou-os irrevogáveis.
Junto com seu respectivo gênio tutelar, cada alma (que já não podia retroceder) passou diante do trono da Necessidade e se dirigiu à planície do Esquecimento, onde não havia árvores nem nada do que a terra produz, e onde o calor era atroz. Ao entardecer foram até o rio da Despreocupação, cuja água nenhum recipiente consegue reter. Aí, os que beberam demais, perderam a memória. À meia-noite, todas as almas dormiam. A terra rugiu e moveu-se, e as almas foram lançadas no espaço como estrelas diferentes do seu nascimento anterior.
A Er não foi permitido beber; reencarnou em seu próprio corpo, ergueu os olhos para o céu, viu que era madrugada e encontrou-se sobre sua pira.
Jorge Luís Borges, "Livro de Sonhos"
terça-feira, junho 18
Saberes
Minha filosofia da educação pode ser resumida assim: o objetivo da educação é aumentar as possibilidades de prazer e alegria. Os professores começam por ensinar saberes. O ensino dos saberes é a transmissão de uma herança. Os velhos ensinam saberes para que os jovens possam começar a navegar a partir do porto onde eles chegaram. O que, para os velhos, foi porto de chegada, será para os jovens porto de partida: para que possam ir além deles mesmos. Vem, então, a hora de ensinar os saberes não sabidos: “Mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe”. Mas como é possível ensinar saberes que não sei? O navegador voltou de suas viagens trazendo nas mãos os mapas que desenhara nos mares onde navegara. Mapas são metáforas do mundo dos saberes. São úteis. Neles encontramos as rotas a serem seguidas, caso deseje. Chegam os alunos. Desejam aprender os mares do mundo. O professor lhes mostra os seus mapas e fala sobre aquilo que sabe. Os alunos aprendem. Mas, de repente, um aluno inquieto aponta para um vazio indefinido, sem contornos, no mapa. “Qual é o nome daquele mar?”, ele pergunta. O professor responde: “O nome daquele mar eu não sei. Nunca fui lá. Não o naveguei. Não o conheço. Por isso, nada tenho a dizer. É mar desconhecido, por navegar. Mas, com o que sei sobre os outros mares, vou lhe ensinar a se aventurar por mares desconhecidos: essa é a aventura suprema. Para isso nascemos”.
Rubem Alves, "Do universo à jabuticaba"De um diário de viagem
Às vezes, nas grandes cidades, descobrem-se esquinas de aldeias, com um botequim honesto e sem pressa, com fregueses fixos que não necessitam fazer o costumeiro pedido.
Entrei. Tudo conferia, tanto que fui à porta espiar o céu para ver se a lua não seria também uma lua de aldeia: não havia céu, não havia lua — como acontece em todas estas babilônias.
Essa espécie de choques cronológicos — que eu, num poema desconhecido, denominei esconderijos do tempo — são como se a roupa nova da cidade estivesse aqui e ali remendada com trapos velhos.
Reentrei. Pedi algo bem forte — uma dessas metralhas que mergulham a gente em plena intemporalidade. A coisa se chamava “O Bafo da Onça”... Deu certo.
Mario Quintana, "Caderno H"
Entrei. Tudo conferia, tanto que fui à porta espiar o céu para ver se a lua não seria também uma lua de aldeia: não havia céu, não havia lua — como acontece em todas estas babilônias.
Essa espécie de choques cronológicos — que eu, num poema desconhecido, denominei esconderijos do tempo — são como se a roupa nova da cidade estivesse aqui e ali remendada com trapos velhos.
Reentrei. Pedi algo bem forte — uma dessas metralhas que mergulham a gente em plena intemporalidade. A coisa se chamava “O Bafo da Onça”... Deu certo.
Mario Quintana, "Caderno H"
Minha terra, minha casa e minha gente
Pirapemas, o povoado em que eu nasci, era um dos lugarejos mais pobres e mais humildes do mundo. Ficava à margem do Itapicuru, no Maranhão, no alto da ribanceira do rio.
Uma ruazinha apenas, com vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização — a escola, apenas.
A rua e os caminhos tinham mais bichos do que gente. Criava-se tudo à solta: as galinhas, os porcos, as cabras, os carneiros e os bois.
Vila pacata e simples de gente simples e pacata. Parecia que ali as criaturas formavam uma só família. Se alguém matava um porco, a metade do porco era para distribuir pela vizinhança. Se um morador não tinha em casa café torrado para obsequiar uma visita, mandava-o buscar, sem-cerimônia, ao vizinho.
Para aquela gente paupérrima, éramos ricos.
Meu pai tinha umas duzentas cabeças de gado no campo, uma engenhoca de moer cana, uma máquina de descaroçar algodão e uma casa de negócios, em que vinham comprar moradores até de quinze ou vinte léguas distantes.
Não havia no lugarejo ninguém mais importante do que meu pai. Era tudo: autoridade policial, juiz, conselheiro, até médico.
A sua figura inspirava respeito; a sua presença serenava discórdias. Se havia uma desordem, mal ele chegava à desordem acabava. Bastava que desse razão a uma pessoa, para que todo mundo afirmasse que essa pessoa é que estava com a razão. Os seus conselhos faziam marido e mulher, desunidos, voltarem a viver juntos. Ninguém tomava um remédio sem lhe perguntar que remédio devia tomar.
Era um homem inculto, mas com uma inteligência tão viva, que se acreditava ter ele cursado escolas. E, ao lado disso, uma alma aberta, franca, alegre, jovial e generosa, que fazia amigos ao primeiro contato.
Nossa casa vivia cheia de gente. Gente da família, gente do povoado, gente de fora.
Meus pais eram padrinhos de quase toda a meninada dos arredores e o maior prazer de minha mãe era criar.
Se uma de suas comadres morria, deixando filhos pequeninos, ela, a pretexto de que as madrinhas devem ser segundas mães, ia buscá-los para que não morressem de abandono e de fome.
Às vezes, pela porta adentro, nos entravam verdadeiras braçadas de fedelhos, enchendo os quartos de alaridos e de berros. E minha mãe os criava com os mesmos cuidados e os mesmos carinhos com que criava os filhos.
Os “gaiolas” (vaporezinhos de roda que faziam a navegação do rio) paravam no povoado para se abastecer de lenha e para embarcar e desembarcar mercadorias e passageiros.
Não sei por que, os fazendeiros do sertão, quando tinham de tomar passagem para a capital, preferiam aquele porto insignificante. Rara era a semana em que não chegava gente de fora à povoação.
E, como a nossa casa era a maior de todas, era nela que eles se hospedavam.
No interior do Brasil a hospitalidade é um dever sagrado que se cumpre religiosamente. Nossa casa vivia apinhada de criaturas estranhas vindas de longe.
Às vezes, tarde da noite, ouviam-se rumores no terreiro. Eram hóspedes pedindo pousada.
Ao hóspede que chega não se pergunta de que precisa. Quem vem de longe, através de caminhos difíceis e desertos, certamente tem cansaço e fome. Necessita de alimento e de cama.
À nossa porta, ora à meia-noite, ora mais tarde, chegavam frequentemente dez, doze, quinze pessoas desconhecidas. A essa hora acordavam meu pai e minha mãe para mandar fazer comida para os hóspedes.
Em certos dias, ao amanhecer, eu despertava num quarto que não era o meu e no meio de um punhado de crianças. É que nem sempre havia redes para todas as pessoas de fora. A família desalojava-se: dormiam duas ou três pessoas juntas, para que não faltasse acomodação aos estranhos.
Em outras ocasiões, quando os hóspedes chegavam, o "gaiola" havia passado na véspera. Só havia outro, dez ou quinze dias depois.
Dez ou quinze dias ficavam famílias inteiras em nossa casa, morando e comendo tranquilamente.
Ao se despedirem apertavam a mão de minha mãe, apertavam a mão de meu pai, dizendo-lhes "obrigado" e nada mais.
É que nada mais lhes era permitido. No sertão do Brasil, quem perguntar o preço da hospedagem ofende aquele que a deu.
A hospitalidade por lá é uma religião e ninguém se furta a um dever religioso.
Viriato Corrêa, "Cazuza"
Uma ruazinha apenas, com vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização — a escola, apenas.
A rua e os caminhos tinham mais bichos do que gente. Criava-se tudo à solta: as galinhas, os porcos, as cabras, os carneiros e os bois.
Vila pacata e simples de gente simples e pacata. Parecia que ali as criaturas formavam uma só família. Se alguém matava um porco, a metade do porco era para distribuir pela vizinhança. Se um morador não tinha em casa café torrado para obsequiar uma visita, mandava-o buscar, sem-cerimônia, ao vizinho.
A melhor casa de telha era a da minha família, com muitos quartos e largo avarandado na frente e atrás. Chamavam-lhe a casa-grande por ser realmente a maior do povoado.
Para aquela gente paupérrima, éramos ricos.
Meu pai tinha umas duzentas cabeças de gado no campo, uma engenhoca de moer cana, uma máquina de descaroçar algodão e uma casa de negócios, em que vinham comprar moradores até de quinze ou vinte léguas distantes.
Não havia no lugarejo ninguém mais importante do que meu pai. Era tudo: autoridade policial, juiz, conselheiro, até médico.
A sua figura inspirava respeito; a sua presença serenava discórdias. Se havia uma desordem, mal ele chegava à desordem acabava. Bastava que desse razão a uma pessoa, para que todo mundo afirmasse que essa pessoa é que estava com a razão. Os seus conselhos faziam marido e mulher, desunidos, voltarem a viver juntos. Ninguém tomava um remédio sem lhe perguntar que remédio devia tomar.
Era um homem inculto, mas com uma inteligência tão viva, que se acreditava ter ele cursado escolas. E, ao lado disso, uma alma aberta, franca, alegre, jovial e generosa, que fazia amigos ao primeiro contato.
Nossa casa vivia cheia de gente. Gente da família, gente do povoado, gente de fora.
Meus pais eram padrinhos de quase toda a meninada dos arredores e o maior prazer de minha mãe era criar.
Se uma de suas comadres morria, deixando filhos pequeninos, ela, a pretexto de que as madrinhas devem ser segundas mães, ia buscá-los para que não morressem de abandono e de fome.
Às vezes, pela porta adentro, nos entravam verdadeiras braçadas de fedelhos, enchendo os quartos de alaridos e de berros. E minha mãe os criava com os mesmos cuidados e os mesmos carinhos com que criava os filhos.
Os “gaiolas” (vaporezinhos de roda que faziam a navegação do rio) paravam no povoado para se abastecer de lenha e para embarcar e desembarcar mercadorias e passageiros.
Não sei por que, os fazendeiros do sertão, quando tinham de tomar passagem para a capital, preferiam aquele porto insignificante. Rara era a semana em que não chegava gente de fora à povoação.
E, como a nossa casa era a maior de todas, era nela que eles se hospedavam.
No interior do Brasil a hospitalidade é um dever sagrado que se cumpre religiosamente. Nossa casa vivia apinhada de criaturas estranhas vindas de longe.
Às vezes, tarde da noite, ouviam-se rumores no terreiro. Eram hóspedes pedindo pousada.
Ao hóspede que chega não se pergunta de que precisa. Quem vem de longe, através de caminhos difíceis e desertos, certamente tem cansaço e fome. Necessita de alimento e de cama.
À nossa porta, ora à meia-noite, ora mais tarde, chegavam frequentemente dez, doze, quinze pessoas desconhecidas. A essa hora acordavam meu pai e minha mãe para mandar fazer comida para os hóspedes.
Em certos dias, ao amanhecer, eu despertava num quarto que não era o meu e no meio de um punhado de crianças. É que nem sempre havia redes para todas as pessoas de fora. A família desalojava-se: dormiam duas ou três pessoas juntas, para que não faltasse acomodação aos estranhos.
Em outras ocasiões, quando os hóspedes chegavam, o "gaiola" havia passado na véspera. Só havia outro, dez ou quinze dias depois.
Dez ou quinze dias ficavam famílias inteiras em nossa casa, morando e comendo tranquilamente.
Ao se despedirem apertavam a mão de minha mãe, apertavam a mão de meu pai, dizendo-lhes "obrigado" e nada mais.
É que nada mais lhes era permitido. No sertão do Brasil, quem perguntar o preço da hospedagem ofende aquele que a deu.
A hospitalidade por lá é uma religião e ninguém se furta a um dever religioso.
Viriato Corrêa, "Cazuza"
domingo, junho 16
24 de Abril de 1993
Passeio com Elena Butragueño e Glória González, que é a das fotos. Javier, pacientíssimo, foi de condutor e guia. Visitámos uma mulher chamada Dorotea, anciã de 94 anos, antiga oleira de obra grossa, uma espécie de Rosa Ramalho mais rústica. Já não trabalha, mas a dinastia (a avó dela já estava nesta arte) continua na pessoa de um genro, que, assinando com o seu próprio nome as peças que faz, também usa, algumas vezes, o nome da sogra... Entre os objectos que produzem, geralmente utilitários (embora seja duvidoso, nesta era do plástico triunfante, que alguém vá utilizar formas tão primitivas e pesadas), há duas figuras humanas, uma de homem, outra de mulher, nuas, com os órgãos sexuais ostensivamente modelados, e a que chamam os Noivos. Parece (mas talvez seja belo de mais para ser verdadeiro) que os noivos conejeros, dantes, trocavam um com o outro estas figuras, a noiva dava ao noivo a efígie feminina, o noivo à noiva a efígie masculina, era como se estivessem a dizer: “Este é o meu corpo, aqui o tens, é teu.” Comprámo-los, estão ali, diante de mim, ao lado de uma pequena estante de mesa, provavelmente do século XVIII, que exibe uma figurinha feita de madeiras embutidas representando o Cordeiro de Deus: “Este é o meu Corpo, tomai-o...” Por ideia de Pilar (como poderia não ser?), oferecemos a Glória e Elena dois gomis, do mesmo tipo daquele que já tínhamos comprado, há tempos, no Mirador del Río, e, para nós, também, um jarro de boca baixa e larga que ainda tem cinzas dentro, vestígios do lume em que foi cozido. Estes artesãos não usam forno, as peças são cozidas ao ar livre, sobre grelhas de ferro. Quando Elena perguntou à velha Dorotea se gostava de ver por ali os turistas, ela respondeu que sim, tanto fazia entendê-los como não... O passeio terminou com uma rápida passagem por El Golfo, mas antes tínhamos estado com uma personagem estranhíssima, um Enrique Díaz de Bethancourt, descendente, ao que se diz e ele confirma, da antiga família fundadora, no princípio do século XV. Vive numa finca meio abandonada, entre sujidade, trapos velhos, lixo por toda a parte, como um anacoreta descuidado dos primores do corpo, salvo a barba, bem aparada, num estilo entre o profeta e o sátiro. Por trás da casa, na encosta, há uma nespereira cujos frutos devem ser dos mais doces do mundo. No fundo duma cova, agachada sobre a terra negra como um enorme animal escondido, a árvore suga das artérias secas dos vulcões os depósitos alquímicos com que elabora a substância última da doçura. Punha-se o Sol quando regressámos de El Golfo. Uma enorme nuvem cor de fogo quase tocava o alto de uma montanha que refulgia da mesma cor. Era como se o céu não fosse mais do que um espelho e as imagens dele só pudessem ser as da Terra.
José Saramago, "Cadernos de Lanzarote"
José Saramago, "Cadernos de Lanzarote"
O medo
Nada nos faz acreditar mais do que o medo, a certeza de estarmos ameaçados. Quando nos sentimos vítimas, todas as nossas ações e crenças são legitimadas, por mais questionáveis que sejam. Os nossos opositores, ou simplesmente os nossos vizinhos, deixam de estar ao nosso nível e transformam-se em inimigos. Deixamos de ser agressores para nos convertermos em defensores. A inveja, a cobiça ou o ressentimento que nos movem ficam santificados, porque pensamos que agimos em defesa própria. O mal, a ameaça, está sempre no outro. O primeiro passo para acreditar apaixonadamente é o medo. O medo de perdermos a nossa identidade, a nossa vida, a nossa condição ou as nossas crenças. O medo é a pólvora e o ódio o rastilho. O dogma, em última instância, é apenas um fósforo aceso.
Carlos Ruiz Zafón, "O Jogo do Anjo"
Carlos Ruiz Zafón, "O Jogo do Anjo"
Lembrança do mundo antigo
Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do mundo a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de Andrade, "Sentimento do mundo"
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do mundo a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de Andrade, "Sentimento do mundo"
Parábola do homem rico
Todos são poetas à sua maneira, mas é bem possível que, se todos o fossem realmente, não houvesse mais lugar para a poesia. Porque a poesia é a amante espiritual dos homens, aquela com quem eles traem a rotina do cotidiano. A poesia restitui-lhes o que a vida prática lhes subtrai: a capacidade de sonhar. O desgaste físico e moral imposto pelo exercício das profissões, em que o ser humano deve despersonalizar-se ao máximo para atingir um índice ideal de eficiência - eis a grande arma da poesia. Depois que o banqueiro passa o dia manipulando o jogo de interesses do seu banco, vem a poesia e, na forma de um beijo de mulher, diz-lhe que o amor é menos convencional que o dinheiro. Ou o bancário, que passa o dia depositando e calculando o dinheiro alheio, ao ver chegar a depositária grã-fina, linda e sofisticada, sonha em tornar-se um dia banqueiro. E fazendo-o, invade o campo da poesia. Pois tudo é fantasia. Cada ação provoca um sonho que lhe é imediatamente contrário. Tal é a dinâmica da vida, e sem ela a poesia não teria vez.
Isso me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta, uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro impalpável. E como as mulheres - dizia-me ele ao lado da sua - são seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a própria mulher.
- Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo, podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza. Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs do capitalismo.
Ponderei-lhe que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se deixou perturbar e me disse assim:
- É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda.
- Eu conheci e era amigo - ponderei-lhe - de um grande poeta que foi também um grande homem de negócios.
- Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo tempo.
Admirei-lhe, não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e honestidade - ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante, resolvemos esticar na boate New Jimmy's. O nosso prezado homem rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos, mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras.
- Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral, depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir.
Depois, na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou com uma voz que não permitia réplica:
- Não é uma beleza, poeta?
Vinicius de Moraes
Isso me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta, uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro impalpável. E como as mulheres - dizia-me ele ao lado da sua - são seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a própria mulher.
- Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo, podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza. Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs do capitalismo.
Ponderei-lhe que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se deixou perturbar e me disse assim:
- É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda.
- Eu conheci e era amigo - ponderei-lhe - de um grande poeta que foi também um grande homem de negócios.
- Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo tempo.
Admirei-lhe, não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e honestidade - ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante, resolvemos esticar na boate New Jimmy's. O nosso prezado homem rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos, mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras.
- Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral, depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir.
Depois, na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou com uma voz que não permitia réplica:
- Não é uma beleza, poeta?
Vinicius de Moraes
sábado, junho 15
Os males do dinheiro
Achava que o homem vivia para ser feliz. Para isso devia fazer o bem ao próximo. Quando refletia sobre as condições críticas que o homem abraçava como meta de vida, em algumas ocasiões monologava. Como agora em que o pensamento discorre sobre os males causados pelo dinheiro quando desviado de suas funções essenciais.
O dinheiro dá muito poder e prazer, você tem o domínio sobre
os seres e as coisas, mas tome cuidado, hoje em dia é como uma arma
de fogo, que faz com que os bandidos troquem tiros em qualquer
lugar com a polícia, a disputa ferrenha entre caçador e caça, sem
nada se temer, tira a vida dos inocentes na rua ou em casa com a
bala perdida, tudo por causa desse instrumento que deveria ser bem
aplicado, servir como troca das coisas, não para instigar ambições,
que nunca enchem o cofre sem fundo de quem o tem como moléstia
sem cura, quando se tem muito dinheiro é preciso dominar essa arma
que pode fazer qualquer um o escravo dela, nisso está o perigo, o dono
pode passar a ser servo dessa ferramenta incontrolável na urdidura
do mal, pra não se falar das atrocidades em que ela opera para
deflorar virgindades, sem que haja remorso do que se cometeu como
cruel, como se tudo fosse natural, nada de mais estivesse acontecendo
à vontade, o dinheiro assim instaura o desamor, não querendo a
união geral como a canção permanente de todos, torna-se indiferente
à infância que vive nas colmeias de fome, dorme em escadaria das
igrejas, espreme os favelados, expande as prostitutas no comércio do
sexo, tritura os negros açoitados nos porões da rota escrava, até hoje
sem chance de subir na vida como os brancos, mutila nativos em grito
de fuga e desespero, em expectativas e colisões na rota de vilezas e
assombros, assim é a voz inclemente desse abjeto utensílio que até
o ar confunde com tantas mazelas, covardias, ao invés de produzir
sadios frutos bem-vindos no amor com o sabor da benesse, ao invés
disso no lado da vida ultrajada com fereza, só pretende oprimir gentes
indefesas, alimentar-se nas ondas da corrupção com os detentores do
poder, que inventam sem cessar o caldo da maldade, disfarçando na
cena negativa sua mentira perante os excluídos, que sem saída vão
viver no lixo, servindo aos propósitos do individualismo daqueles que
são empoderados como uns poucos privilegiados, para esses seria bom
mesmo que toda essa gente periférica permanecesse sempre servil ao
dinheiro, nunca aparecesse para reivindicar dias melhores no caminho
desse deus cobiçado, adorado, urdido numa seita fabricante de
homicídios perenes, que põe na alma vícios, humilhações, ostentações,
tormentas, racismos, gritos…
de fogo, que faz com que os bandidos troquem tiros em qualquer
lugar com a polícia, a disputa ferrenha entre caçador e caça, sem
nada se temer, tira a vida dos inocentes na rua ou em casa com a
bala perdida, tudo por causa desse instrumento que deveria ser bem
aplicado, servir como troca das coisas, não para instigar ambições,
que nunca enchem o cofre sem fundo de quem o tem como moléstia
sem cura, quando se tem muito dinheiro é preciso dominar essa arma
que pode fazer qualquer um o escravo dela, nisso está o perigo, o dono
pode passar a ser servo dessa ferramenta incontrolável na urdidura
do mal, pra não se falar das atrocidades em que ela opera para
deflorar virgindades, sem que haja remorso do que se cometeu como
cruel, como se tudo fosse natural, nada de mais estivesse acontecendo
à vontade, o dinheiro assim instaura o desamor, não querendo a
união geral como a canção permanente de todos, torna-se indiferente
à infância que vive nas colmeias de fome, dorme em escadaria das
igrejas, espreme os favelados, expande as prostitutas no comércio do
sexo, tritura os negros açoitados nos porões da rota escrava, até hoje
sem chance de subir na vida como os brancos, mutila nativos em grito
de fuga e desespero, em expectativas e colisões na rota de vilezas e
assombros, assim é a voz inclemente desse abjeto utensílio que até
o ar confunde com tantas mazelas, covardias, ao invés de produzir
sadios frutos bem-vindos no amor com o sabor da benesse, ao invés
disso no lado da vida ultrajada com fereza, só pretende oprimir gentes
indefesas, alimentar-se nas ondas da corrupção com os detentores do
poder, que inventam sem cessar o caldo da maldade, disfarçando na
cena negativa sua mentira perante os excluídos, que sem saída vão
viver no lixo, servindo aos propósitos do individualismo daqueles que
são empoderados como uns poucos privilegiados, para esses seria bom
mesmo que toda essa gente periférica permanecesse sempre servil ao
dinheiro, nunca aparecesse para reivindicar dias melhores no caminho
desse deus cobiçado, adorado, urdido numa seita fabricante de
homicídios perenes, que põe na alma vícios, humilhações, ostentações,
tormentas, racismos, gritos…
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