terça-feira, junho 4

Um conto de Natal

Barcelona, dezembro de 1957

Naquele ano, o Natal deu para amanhecer todo dia vestido de chumbo e geada. Uma penumbra azulada tingia a cidade, e as pessoas andavam rápido cobertas da cabeça aos pés, com o hálito desenhando jatos de vapor no ar frio. Eram poucos os que paravam para admirar as vitrines de Sempere & Filhos e menos ainda os que se aventuravam a entrar e perguntar por aquele livro perdido, que esteve esperando por eles a vida inteira e cuja venda, poesia à parte, poderia contribuir para remediar as precárias finanças da livraria.
 
— Estou sentindo que hoje é o dia. Hoje a nossa sorte vai mudar —proclamei na animação do primeiro café do dia, puro otimismo em estado líquido.

Meu pai, que desde as oito da manhã estava lutando com os livros de contabilidade, fazendo malabarismo com lápis e borracha, levantou os olhos do balcão e observou o desfile de clientes escorregadios desaparecendo rua abaixo.

— Deus te ouça, Daniel, porque, do jeito que as coisas andam, se perdermos as vendas de Natal, não vamos ter como pagar nem a conta de luz de janeiro.
 Precisamos fazer alguma coisa.

— Fermín teve uma ideia ontem — sugeri. — Segundo ele, trata-se de
um plano genial para salvar a livraria da falência iminente.

— Que o céu nos proteja.

Citei as palavras dele:

— Quem sabe se eu fosse decorar a vitrine só de cueca, alguma mulher
ávida de literatura e de emoções fortes não entrava para comprar? Dizem os
entendidos que o futuro da literatura está nas mãos das mulheres, e Deus é
testemunha de que está para nascer uma dona capaz de resistir ao charme
rústico desse meu corpinho atraente — repeti. Ouvi quando o lápis de meu
pai caiu no chão e me virei.

— Palavras de Fermín — acrescentei.

Pensei que meu pai ia rir da ideia de Fermín, mas ao ver que ele não saía de seu silêncio, comecei a observá-lo de rabo de olho. Sempere pai não parecia estar achando graça nenhuma naquele disparate e ainda exibia uma expressão pensativa, como se considerasse a possibilidadede levar a sugestão a sério.

— Mas olhe só, não é que Fermín acertou na mosca? — disse baixinho.

Olhei para ele incrédulo. Talvez a seca comercial que nos assolava nas
últimas semanas tivesse afetado o juízo de meu pai.

— Não vai me dizer que vai deixar Fermín passear de cueca pela livraria.

— Não, claro que não. É a vitrine. O que você disse me deu uma ideia...
Talvez ainda dê tempo de salvar o Natal.

Vi quando meu pai desapareceu no fundo da loja e retornou vestido com seu uniforme oficial de inverno: casaco, echarpe e chapéu, os mesmos que eu conhecia desde pequeno. Minha mulher, Bea, não cansava de manifestar suas suspeitas de que meu pai não comprava roupas desde 1942 e todos os indícios diziam que tinha razão. Enquanto enfiava as luvas, meu pai sorria vagamente e seus olhos exibiam aquele brilho quase infantil que só os grandes projetos conseguiam provocar.

— É só um instantinho — anunciou. — Vou sair para tomar umas
providências.

— Posso perguntar aonde vai?

Meu pai piscou um olho.

— É surpresa. Você vai ver.

Fui atrás dele até a porta e vi quando partiu em direção à Puerta del Ángel num passo firme, uma silhueta a mais na maré cinzenta de passantes navegando por mais um longo inverno de sombra e cinzas.
Carlos Ruiz Zafón, "O prisioneiro do céu"

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