Segundo a consultora GFK, que audita o mercado livreiro em Portugal, a quebra das vendas de livros nos primeiros nove meses de 2020 (juntando as fases de confinamento e de pós-confinamento, portanto) foi de 15,8%. Já sob o jugo da chamada segunda vaga da pandemia da Covid-19, os profissionais do setor temem um final de ano que, ao invés de oferecer uma recuperação, os oprima ainda mais. A crise está aí e a memória nunca se mostra curta no que toca aos problemas próprios – todos se lembram do que aconteceu depois da crise de 2008, todos sabem que, na última década, as vendas de livros em Portugal caíram quase 30%.
Os economistas conseguirão explicá-lo melhor, especialistas em psicologia e em sociologia do consumo também, mas o que a crise anterior demonstrou foi que uma quebra abrupta dos hábitos de consumo de livros (e, digo eu, dos hábitos de leitura) pode tornar-se, pelo menos em parte, perene, uma vez que nunca recuperámos os números de vendas anteriores a essa crise. Vem agravar esta realidade o facto de, nos tempos que correm, esses hábitos tenderem a ser rapidamente substituídos por outros de cariz mais imediato e fácil (como os ligados às redes sociais, ou às plataformas de streaming). Em suma, a crise económica origina também empobrecimento cultural. E os números aí estão, demonstrando que as letras se encontram em apuros: os dados já conhecidos do novo estudo do Plano Nacional de Leitura (PNL) e do ISCTE sobre os hábitos de leitura dos portugueses revelam, como se esperava, que os alunos do 3.º ciclo e do ensino secundário leem cada vez menos. E, tal como o anterior, este estudo aponta ainda para a influência da família nos hábitos de leitura. Ou seja, um sexto do mercado livreiro desapareceu e os portugueses leem cada vez menos. O livro e a leitura, enquanto constituintes de um alicerce fundamental de uma sociedade que se pretende desenvolvida, perdem importância. O que fazer?
A reportagem da Visão dá a conhecer o Bibliomóvel, um excelente exemplo de políticas públicas para a leitura criado há quase vinte anos pela Câmara Municipal de Penafiel (que também organiza o muito original e meritório Escritaria) e inspirado nas Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. Conceição, utente do Bibliomóvel, do qual os filhos já eram frequentadores, é exemplo perfeito de que o acesso aos livros e a influência familiar (neste caso, em sentido deliciosamente inverso face ao habitual) criam leitores. Penso nisto e atento também no que fez a Câmara Municipal de Lisboa, ao dar abrigo em estantes à biblioteca do escritor Alberto Manguel, encaixotada há cinco anos em França, ou a Câmara Municipal de Bragança, ao apostar num Museu da Língua Portuguesa, ou até um privado, como a empresa que detém a livraria Lello, no Porto, a partir de um espaço que, em Portugal, dignifica os livros como nenhum outro, atento nisto tudo e não consigo senão pensar em tantas outras possibilidades de valorização do livro e da leitura. Não me refiro à chamada festivalização da cultura, que desde os tempos de Jack Lang tem alimentado debates, mas considero que dignificar o objeto livro, dando-lhe visibilidade, resulta inevitavelmente numa proclamação – que, por não ser ostensiva, é mais eficaz – do quão gratificante e benéfica é a leitura.
Não sei quanto vai gastar a autarquia lisboeta, no contexto da guarida dada à biblioteca de Manguel e da criação do Centro de Estudos da Leitura, mas trata-se de uma medida que contribui muito para o referido propósito; sei que, na construção do Museu da Língua Portuguesa, a sua homóloga de Bragança vai investir dez milhões de euros e até estou certo de que o projeto prevê retorno económico para a cidade; desconheço os lucros da Lello, mas conheço as filas à porta da livraria (é claro que ali se vai pela arquitetura do espaço – a propósito, tal como acontece no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro –, mas ainda bem que nele estão expostos livros e não copos e garrafas, como poderia ter acontecido) e sei que os proprietários adquiriram recentemente outro espaço icónico da cidade, o Teatro Sá da Bandeira, prova de que o investimento está a valer a pena. Estes são exemplos de apostas públicas e privadas que, possuindo propósitos distintos, resultam na valorização do livro e da leitura. Exemplos daquilo a que o estado deve dedicar-se e do que os privados podem fazer. Atividade económica com livros? Com certeza que sim. Poucas serão, aliás, as áreas em que o potencial económico será tão capaz de se constituir também gerador de valor cultural e civilizacional.
Em abril, já aqui escrevi sobre o acolhimento que a Câmara Municipal de Setúbal deu a parte da biblioteca de 80 mil volumes de Lauro António; sei também que 70 dos 80 mil livros da igualmente impressionante biblioteca de Mário Sottomayor Cardia estão hoje à disposição dos estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. São boas e profícuas ideias, tais como muitas outras, nas quais quem tem funções e responsabilidades públicas pode inspirar-se. Porque são positivas e urgentes todas as medidas que, de algum modo, possam contribuir para a familiarização dos portugueses – de todas as idades, como na realidade apresentada por Miguel Carvalho – com o objeto livro. E não duvidem os empresários de que há oportunidades neste meio. Venham daí esses investimentos, se forem capazes de contribuir para aproximar os cidadãos dos livros. Ver livros, lidar com livros, percepcionar valor nos livros – raros e felizes aqueles que se fazem leitores sem o incentivo calado que constitui crescer com livros em casa ou a ver os pais a lerem – produz resultados. Porque um país que não lê não pode aspirar a muita coisa, investir no livro e na leitura é um dos caminhos para o Portugal que temos de ambicionar ser.
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