Há 45 anos que o dia de Aziz é pautado por rituais. De manhã, abre a minúscula livraria de que é proprietário, na parte antiga da Avenida Maomé V, na medina de Rabat, capital de Marrocos, e dá-se ao primeiro. Com as duas portas abertas, o que se vê não parece uma livraria, mas um armário atafulhado de livros, prestes a desabar sobre o homem magro de 75 anos. Deixar este mundo soterrado pelo peso do conhecimento, pelo peso dos livros que ele próprio escolheu, talvez não fosse uma forma de morrer que lhe desagradasse, imagino. E avanço para lho perguntar. Felizmente – quem sabe se trazida pelo siroco que se faz sentir, o vento quente do Saara, carregando já a sabedoria das aldeias de montanha berberes –, a sensatez regressa de imediato ao meu espírito, avisando-me de que aquele talvez não seja o melhor modo de inaugurar a conversa. E, como a avalanche de papel não aconteceu – nem naquele nem em nenhum dos mais de 16 mil dias em que repetiu tais gestos –, Aziz principia a tarefa de dispor no exterior da livraria, sob a forma de pilhas que se assumem escaparates, a quantidade de livros necessária para poder entrar na loja e passar aos rituais seguintes. Aquele ainda lhe tomará uma hora e, aqui e ali, será interrompido pela chegada de um cliente, de um fornecedor, ou por uma interpelação de um qualquer comerciante vizinho, o que me dá tempo para olhar em redor.
O vendedor do lado borrifa o chão com uma espécie de chuveiro portátil improvisado – uma garrafa plástica cheia de água e perfurada no topo, abaixo da tampa, que está devidamente enroscada. De seguida, pega num garrafão amarelo, despeja um pouco de lixívia no chão e esfrega a pedra, com uma vassoura de cabo curto e pelos pouco azuis e muito gastos, fazendo-a regressar da cor de carvão ao tom cinza-claro original. Ao lado, um varredor encartado junta num monte o muito lixo resultante da intensa atividade comercial do dia anterior, mas, apesar de modernamente fardado, fá-lo com uma grande folha de palmeira. Ao contrário da casbá, o bairro fortificado que rodeia o Palácio dos Udaias, a medina não é exemplo de asseio, ainda que Rabat, por ser a capital e a cidade do rei, representante da dinastia alauita, no poder desde 1664, se distinga do resto do país em termos de organização e de limpeza. Mas, nesta parte da cidade, as sarjetas estão entupidas de lixo, as solas colam-se ao chão e é frequente ver indivíduos andrajosos a vender meia dúzia de peixes acabados de pescar, separados do chão apenas por uma folha de jornal.
Enquanto Aziz vai dando forma à montra ao ar livre, prepara-se, no café Picasso, mesmo em frente, um balcão de madeira virado para a rua, cujo letreiro anuncia o pintor espanhol com o “A” de pernas para o ar. O proprietário passa um pano húmido sobre o balcão já montado e sobre a joia da coroa, uma máquina de café expresso La Cimbali, a marca italiana que no Porto deu nome ao cimbalino. Mesmo ao lado, e tal como na livraria de Aziz, também no micromercado vizinho não se consegue entrar, por não ter mais do que três metros quadrados carregados de produtos, como detergentes da roupa, vassouras, sacos de arroz (alguns deles da marca portuguesa Cigala), pacotes de batatas fritas, chocolates variados e em grande quantidade (os marroquinos são gulosos) e ainda uma arca de gelados, que fica metade dentro, metade fora da loja e à qual Aziz, quando o calor chegar, há de ir procurar refrigério. Esta venda multiproduto tem tanto de regra como de exceção, uma vez que, na muralhada medina, os estabelecimentos são quase sempre espaços pequeníssimos, é um facto, mas especializados. E são-no tanto no que é típico do país como no que é igual em todo o lado. Bancas de frutos secos, ou de especiarias, convivem, paredes-meias, com lojas de tecnologia cheias de computadores portáteis, telemóveis e acessórios capazes de apetrechar até às orelhas o influenciador mais exigente. Bancas de azeitonas e talhos perfumam cruamente o ar, ao lado de lojas de roupa ou de calçado contrafeitos, de vestimentas e de malas de pele nacional, ou de produtos de cosmética naturais, panaceias que prometem curar tudo por menos do que o equivalente a cinco euros – ou metade, se formos bons a negociar.
Tantas vezes olhada de lado pelos europeus, que veem nela uma expressão ostensiva de desonestidade, a negociação intensa – o regateio – faz parte da cultura árabe e é uma modalidade praticada por todos os mais de 30 milhões de marroquinos, que se consideram mais árabes do que africanos. Até há pouco tempo, nada na medina tinha preço fixo, e os valores indicados pelos vendedores eram apenas um ponto de partida para um entendimento que todos sabiam que chegaria por menos dinheiro. Hoje, já muitos produtos têm preço marcado, mas, nos demais, se nos pedem 40 dirhams, sabemos que vamos fechar negócio por 30 – ou por 20, se formos competentes na referida arte.
Quando Aziz acaba de preparar a venda, já o cheiro a óleo, vindo do snack-bar do lado, chamado Good Way, se sente intensamente. Vende pizzas, tacos, saladas e toda a variedade de fritos. O odor frigido é, de resto, constante em toda a medina e ali só se mostra atenuado pelo cheiro da lixívia, com que o vizinho esfregou o chão, e pelo aroma a detergente da roupa vindo da secção de drogaria do micromercado. No meio da rua, reclames coloridos a milkshakes, cappuccinos, frappucinos, crepes e mojitos sem álcool. Um gato jovem, e com ar de se ter envolvido em desacatos noturnos, assusta uma turista com o seu aspeto pestilento, fazendo-a deixar cair um bolo comprado numa das 400 mil pastelarias da medina, normalmente carregadas de vespas famintas. O bolo por lá ficará, tal como o gato, juntamente com beatas, papéis, plásticos, pedaços de pão e poças de água de origem duvidosa. Adiante, uma loja com centenas de sapatilhas falsificadas das marcas mais desejadas enche o ar de perfume a borracha.
Ainda assim, nos degrauzitos que dão acesso à livraria de Aziz, onde só cabe o próprio, e mal, o que se sente – e que, digamos, triunfa sobre tudo o resto – é o cheiro a papel velho. O livreiro, que usa uma camisola azul, com riscas horizontais vermelhas e brancas, ostentando no peito um símbolo em forma de crocodilo, puxa de uma almofada, ajeita o boné e senta-se, para dar início ao segundo ritual do dia: o da leitura. Porém, ainda antes de pegar no livro, chega uma motoreta barulhenta com um pequenino reboque. Buzina, para chamar a atenção de Aziz, e este faz-lhe sinal para aguardar. Está a falar-me de Freud, que considera o mais brilhante dos pensadores da natureza humana, e só depois desce para junto daquele potencial fornecedor. Todos os dias, é visitado por pessoas que lhe levam livros. Quem tem alguns em casa e não os quer, ou quem está em situação de aflição, sabe que pode dirigir-se a ele para tentar amealhar algum dinheiro. Mas também há quem lhe ofereça livros, para que ele depois os venda. Foi o que fiz, quando lhe dei aquele que passou a ser o único exemplar em língua portuguesa do seu pequeno alfarrábio. Aziz vende sobretudo obras em árabe e em francês, como as que o vendedor lhe tenta impingir.
Mas não se pense que este homem da moto com atrelado é caso único. Em Rabat, surpreende a quantidade de gente que vende livros. Há jovens a percorrer as ruas com pilhas deles entre as mãos e os queixos, que param diante de nós e tentam impingir-nos edições em francês, ou inglês, de Amin Maalouf, Tahar Ben Jelloun ou Patrick Modiano. Nas avenidas, debaixo dos cobertos dos edifícios, ou nas praças, dezenas de vendedores expõem sobre lençóis imensidões de volumes, que lhes demoram não muito menos tempo a montar do que as montras empilhadas de Aziz. Alguns têm mesmo estantes carregadas de livros encostadas a árvores, que me levam a perguntar o que lhes farão à noite. Posso dirigir-me a eles e acabar com o mistério, mas prefiro não o fazer – é mais divertido manter a curiosidade e imaginar hipóteses. Sentam-se em cadeiras de praia e aguardam pelos clientes, que aparecem, pedem conselhos, folheiam e regateiam – com sorte e engenho, levam para casa livros a 50 cêntimos ou a um euro.
Desta vez, Aziz não compra nada para abastecer a livraria, mas todos os dias – todos os dias, sublinha, fitando-me com olhos subitamente grandes – procura livros para revender. Depois, pega no maço de tabaco, baixa o tom de voz e explica-me que há um provérbio francês que diz: Qui cherche trouve – isto é, quem procura encontra. E sorri. Puxa de um cigarro – da famosa marca francesa Gauloises, criada em 1910 e hoje produzida na Polónia – e, embora só tenhamos conversa marcada para a tarde, aceita contar-me por que motivo se tornou livreiro, há 60 anos.
Não tinha dinheiro para continuar os meus estudos, começa por dizer, antes de acrescentar: desgraçadamente. É a palavra que mais vezes lhe sai da boca. Pontua cada visita ao passado com um lento e silabado mal-heu-reu-se-ment. De seguida, explica: A minha família era miserável, os meus pais não sabiam ler nem escrever e não tinham livros em casa. Vi um livro pela primeira vez aos 4 anos, quando entrei para a escola corânica e aprendi o árabe e, mais tarde, o francês. Era um aluno brilhante, acrescenta. Mas, malheureusement, aos 15 anos, viu-se órfão e impedido de prosseguir os estudos, por não poder comprar os livros escolares. Foi então que Aziz se vingou – a expressão é dele – daquela situação. O dinheiro que tinha poderia não dar para comprar os manuais escolares, mas daria para comprar um livrinho muito barato e revendê-lo por um pouco mais. Assim começou, em 1963, vendendo nas ruas, até conseguir estabelecer-se no espaço atual, 15 anos mais tarde. Faz rodopiar o cigarro entre os dedos e oferece-me um pouco mais: conta-me que, no final de cada ano letivo, dão entrada naquele espaço vários livros escolares usados, que ele vende a baixo preço, na esperança de que possam servir para jovens que, como ele, tenham a sua continuidade na escola ameaçada por falta de recursos. Leva o cigarro à boca, mas de imediato volta a fazê-lo dançar no ar, para responder à pergunta que lhe faço sobre o tipo de clientes que recebe. A maioria dos meus clientes é composta por mulheres que leem em árabe. As mulheres conhecem bem a cultura, realça, ao passo que os homens procuram diplomas. Tem clientes que viajam de Casablanca e de Marraquexe. Fala-me num que integra o governo, noutro que é polícia, em advogados. Pergunto-lhe quantos livros vende, em média, por dia, e Aziz diz-me que há dias em que vende um, outros em que vende dois, nos dias bons cinco ou seis e que noutros não vende nenhum. Mas sublinha que trabalha sempre 11 horas. Começo às dez da manhã e fecho às nove da noite; depois, vou para casa, janto e vou dormir. Pelo meio, lê. Passa os dias a ler, deitado no interior da livraria. Só interrompe a leitura para comer, rezar (cinco vezes por dia, numa mesquita próxima), atender clientes e fumar, que é o que vai fazer agora. Acende o cigarro, dá uma baforada e diz, sorrindo: Malheureusement, sou fumador. Despedimo-nos, até meio da tarde, como combinado.
Na confusão da medina, não se veem trotinetes nem bicicletas, como na maioria das grandes cidades europeias, mas depressa se tornou claro que só mesmo por sorte não assisti a nenhum acidente. De tempos a tempos, fazendo gincanas entre os visitantes, passam motorizadas conduzidas por homens sem capacetes. E só por intervenção divina não vi rodas tirarem vidas a gatos, que estão por todo o lado: correm por entre as pernas das pessoas, sentam-se ao lado delas e esparramam-se ao sol no meio das ruas, quando não escolhem descansar à fresca, dentro das lojas, por entre os produtos expostos, sem nunca serem enxotados. Aqui acredita-se na feitiçaria, e os gatos funcionam como um filtro que absorve o mau-olhado dirigido às pessoas. Mais do que amuletos, operam como escudos protetores de elevada resistência, por possuírem sete vidas. Se um gato morre, é porque por sete vezes acolheu o mau-olhado com que o dono, ou outro humano, foi visado.
Em certas zonas, as ruas são cobertas por enormes estruturas de madeira trabalhada, um investimento público que protege os visitantes do pesado sol africano, para que estes não deixem de encher as malas de souvenirs. Não é difícil passar dois dias às voltas na medina e, por isso, também não é incomum ver turistas de pele clara com grandes escaldões nas testas, nos narizes, nos pescoços e nos braços. As zonas cobertas são sobretudo para eles. De resto, a medina é para todos: estrangeiros e locais, ricos e pobres. Os marroquinos são um povo alegre, mas não expansivo. Respondem não mais do que o suficiente, quando se lhes faz perguntas, mas sempre com simpatia. E, das duas, uma: ou algo está a mudar face ao que é costume dizer-se deles ou viram em mim um forreta, porque só numa ocasião me pediram dinheiro a troco de informações ou mesmo quando tomavam a liberdade de me conduzir até determinado local. Entre cidades, desloquei-me de transportes públicos e, dentro delas, sempre a pé. Só por duas vezes utilizei táxis, mas valeu a pena, porque encontrei motoristas faladores. O primeiro contou-me que o carro, em que eu tinha o privilégio de me sentar, lhe havia sido oferecido pelo rei, depois de ele, ao cabo de alguns anos a transportar clientes de moto, lhe ter pedido um automóvel para passar a ser um taxista a sério. O segundo, que dizia gostar muito do jogador português Rolando – e insistia: Rolando, Rolando, Rolando! –, não se pôs com histórias quando, apercebendo-me de que o taxímetro estava desligado, lhe perguntei o preço da corrida: Beaucoup d’argent, beaucoup d’argent! Muito dinheiro, muito dinheiro.
Como o verão sucede à primavera, à leitura segue-se a oração, o mais importante dos rituais que pontuam o dia do livreiro. E Aziz já tinha ido rezar, passando antes por casa, para as abluções, quando nos reencontrámos. Mantendo a reserva natural dos marroquinos, conversou comigo nessa tarde – enquanto comia um gelado de chocolate e nata, acompanhado por um copo de kefir, que ia bebericando de tempos a tempos – e na seguinte. A princípio, mostrou-se lacónico, mas, a dado momento, os temas começaram a entusiasmá-lo. Um turista que o visse a elevar as mãos e o tom de voz talvez pensasse tratar-se de um pregador. Nada mais errado. Não há nele nenhuma ambição doutrinária. Porém, move-o uma dupla devoção, como aos poucos fui testemunhando.
Depois da nossa breve conversa matinal, fiquei a pensar nos sonhos interrompidos do jovem Aziz, que abandonou a escola precocemente, por isso pergunto-lhe o que, nessa altura, sonhava ser quando fosse grande. O livreiro surpreende-me com a resposta: Não queria ser nada, porque o que eu iria ser já estava escrito. Mantenho-me em silêncio, para o instigar a continuar. Sim, já estava escrito, já estava escrito, repete, sem se alongar. Em resposta, pergunto-lhe se, aos 15 anos, já sabia que esse destino estava escrito, mas Aziz divaga, como fará sempre que procuro direcionar demasiado a conversa a meu contento. Numa dessas ocasiões, deu-me uma resposta de sketch: a partir das 18 horas, fica fresco, é a temperatura do deserto que chega. Perante o meu espanto, dado que lhe havia perguntado sobre o sistema político marroquino, ele insiste: Independentemente da temperatura que faça durante o dia, é certo que à noite é sempre fresco. Ainda procurei segundos sentidos no francês dele, mas conformei-me e, como se percebe, acabei até por dar uso à informação de cariz meteorológico que insistia em transmitir-me. Será assim, nas duas tardes de conversa, em relação a todos os assuntos, menos dois: a religião e a leitura.
Os primeiros livros que o seduziram eram de banda desenhada. Mas a de antigamente era melhor, adverte, quando lhe pergunto porquê não concretiza senão com exemplos nostálgicos das coleções que mais o marcaram: Kiwi, Rodeo, Asterix, Tintin e Luky Luke. Como favoritos, identifica os dois últimos, que considera muito divertidos. Para Aziz, a BD ensina a comunicar. Vira-se para a estante, pega num livro do género, abre-o, folheia-o até onde quer e aponta, com a unha amarelecida: Para uma criança aprender a comunicar bem, é só ler estes diálogos. A partir daí, começa a ler e a falar bem. Neste caso, a língua francesa. Se uma pessoa quiser aprender francês, tem de ser forte, porque é muito difícil. Primeiro, aprende o alfabeto, depois as frases e, por fim, tem de entrar na gramática. A gramática é exigente, porque é preciso conhecer as regras. Eu conheço bem as regras, salienta. E começa a entoar lengalengas portadoras de regras gramaticais.
Da banda desenhada, o jovem Aziz passou para o chamado livre de poste, uma espécie de guias de viagem para os correios a cavalo, e, depois, para os policiais. Só mais tarde veio o ensaio e a não ficção em geral. Os meus livros favoritos são os de psicologia – sim, os de psicologia, repete, satisfeito. Explica-me, de seguida, que gosta muito do pai da psicanálise e é assim que se refere novamente a Freud, para ver se demonstro conhecer o autor que mais o entusiasma. Ainda procura um exemplar de A Interpretação dos Sonhos, mas, ao cabo de dois ou três minutos, chega à conclusão de que vendeu o último que tinha. Aproveito a quebra na conversa para lhe perguntar por autores de ficção. Aziz diz-me que já leu muitos grandes escritores e muitos grandes livros. Exemplifica com a literatura francesa, sem dúvida a que conhece melhor: de Victor Hugo, Os Miseráveis, é um grande livro, diz-me. E Notre-Dame de Paris também, acrescenta. Destaca ainda Germinal, de Émile Zola, e O Vermelho e o Negro, de Stendhal.
Em média, lê quatro romances por mês, além de vários livros de outros géneros, mas garante não saber com exatidão que outras leituras o seduzem. Na eleição do que lê não há, de resto, qualquer programa ou objetivo. Aziz prefere deixar as escolhas nas mãos do destino: Eu não sei o que me interessa, começo e depois percebo se me cativa ou não. Ainda assim, admite que lê sempre a sinopse, antes de começar. Não dá crédito à capa; vira o livro de imediato e lança-se ao texto da contracapa. Depois, espreita alguns capítulos e, se gostar, avança. Aziz diz ler apenas pela vontade de ler, que é, para ele, tudo o que importa. Leio para sentir o prazer de ler, sentencia.
Trocamos algumas ideias sobre o bem-estar que a leitura oferece, até que surgem dois clientes – dois homens europeus, na casa dos 60 e muitos, talvez 70, com ar de turistas. Teriam um aspeto absolutamente indiferenciado, não fosse o facto de cada um trazer num dos pés um sapato do outro, isto é, o mais alto usava um sapato castanho, no pé direito, e um bege, no pé esquerdo, já o indivíduo mais baixo trazia um sapato bege, no direito, e um castanho, no esquerdo. Pus-me a tentar imaginar a qual deles pertenceria cara par, sendo também possível que os tivessem comprado a meias. Talvez cruzassem sempre o calçado, por excentricidade, por absoluta afinidade eletiva ou até mesmo por puro romantismo.
O que é para si um livro, Monsieur Aziz? O livro, para mim, é a vida, porque quem não lê não sabe nada, é ignorante. Os franceses dizem que a melhor coisa que existe é a busca do conhecimento. E repete: La meilleure chose qui existe c’est chercher la connaissance. O conhecimento é equivalente à sageza – sabe o que quer dizer sageza? Assinto, com um meneio de cabeça, e Aziz comenta: Dizem que o Papa, o Dalai Lama e Ghandi são grandes exemplos de sageza. É essa sageza que procura alcançar com a leitura? Claro, porque ler é uma bênção de Deus, é uma forma de alcançar o outro mundo.
Terá de facto Aziz sido um menino sem sonhos? É possível ser-se criança sem se sonhar? Haverá condicionantes culturais e religiosas capazes de tornar uma criança marroquina diferente daquilo que julgamos ser a natureza de todas as crianças? Será a pobreza castradora de sonhos? Tenho tudo isto na cabeça quando, na tarde seguinte, volto a encontrar-me com o velho livreiro. Mas, malheureusement, não consigo que, neste domínio, me responda com outra coisa que não evasivas. Respeito a vontade dele e dou um salto de seis décadas. Quero perceber se o facto de ter conseguido construir uma vida normal e sustentar uma família com seis filhos lhe devolveu a capacidade de sonhar. Aziz avança pouco na resposta, até que lhe pergunto por objetivos, ou ambições, atuais. Nesse momento, sentencia: Eu quero ser assim, como sou. Pourquoi, Monsieur Aziz? Porque, como diz o provérbio francês, le sérieux paye, a seriedade compensa. O que eu quero é ser um homem honesto, parce que l’argent ne fait pas le bonheur, o dinheiro não traz felicidade. Então o que traz a felicidade? A felicidade é muito difícil de encontrar. O que me faz feliz é ler livros e pescar, porque adoro pescar. Ponho-me a ver o mar e a procurar nele os peixes, para os pescar e depois comer, ou vender. A minha vida é ler e ir para o mar, porque, quando pesco, não vejo nada para além da imensidão de azul e dos outros pescadores – quando pesco, esqueço o mundo. Como quando está a ler? Oui. Quando lê também esquece o mundo? Exatamente. Mas o que é que há para esquecer no mundo? Aziz descruza rapidamente as pernas, abre as mãos e responde: A miséria e a ignorância.
Estou de pé, com uma sapatilha na calçada e outra no degrau de acesso à livraria, a conversar com Aziz, que está sentado do lado de dentro. De súbito, mesmo ao meu lado, duas das pilhas de livros amontoados começam a abanar. Será um sismo? Há uma falha na crosta terrestre algures a meio caminho entre Portugal e Marrocos. E também há incontáveis gatos na medina de Rabat. Um deles, todo dengoso, dá turras a uma das torres de livros, antes de se espreguiçar demoradamente. Dormia debaixo de um banquinho, quase invisível, por estar envolto em livros, e entendeu ser aquela a hora de acordar e ir tratar de outros assuntos. Retomo a conversa, assinalando que Aziz está a falar-me somente do presente e que eu gostava de saber como vê o futuro. O futuro? Sim, o seu futuro; de que forma antevê, ou idealiza, o seu futuro? Neste momento, surge no rosto do livreiro um esgar indecifrável. Depois, um leve sorriso. Até que me olha fixamente e sentencia: O futuro é no outro mundo. O que eu faço na vida é procurar o outro mundo. E como se faz?, questiono. A primeira coisa a fazer é o bem. Fazer o bem ajuda a encontrar o outro mundo? Sim. É por isso que procura ser um homem honesto? Sim, para depois poder atravessar a porta. Há mesmo uma porta? Claro, entra-se e depois sai-se no paraíso.
Três rapazes e três raparigas – são seis os filhos de Aziz. Mas nenhum gosta de ler. Malheureusement. Dos rapazes, fico a saber que um é gendarme e que outro é engenheiro informático e passa o dia no computador. Puxo o tema da leitura entre os jovens, e Aziz, qual francoatirador, atira: La jeunesse est perdue! A juventude está perdida é opinião que repete, sem medo, uma e outra vez. Afirma ter conhecimento de causa, dado que o filho de 25 anos é viciado no computador e no telemóvel. Não quer saber de mais nada, diz o pai, encolhendo os ombros e cruzando as pernas finas. Desalentado pelo exemplo doméstico, não vê forma de se criar leitores. Os jovens de hoje estão perdidos, por causa dos telemóveis e dos vários aparelhos informáticos. Estão perdidos, repete. O meu filho não sabe tirar o melhor proveito da juventude. Esta nova geração está verdadeiramente perdida. Porquê? Porque não sabe nada, não sabe nada. Não é a geração toda, na verdade, mas um pouco mais de 70% está perdida. Acende um cigarro, sorve o ar devagar, e depois lamenta que demasiados jovens marroquinos não encontrem trabalho e não possam ter esperança. Malheureusement. O que mais queria era que as pessoas pudessem ler o Corão e com isso reforçar a fé delas. Desse modo, encontrariam o outro mundo, mas muitos não sabem ler e os que sabem não querem fazê-lo.
Vou preparado para aquele assunto. Sei que a iliteracia ainda não deixou de ser um problema em Marrocos, mas também que diminuiu significativamente nas décadas recentes – 55%, de acordo com os dados disponibilizados pelo Alto-Comissariado para o Planeamento, o equivalente marroquino ao nosso Instituto Nacional de Estatística. Provavelmente, até decresceu mais, uma vez que os indicadores mais recentes têm quase dez anos. Digo isso mesmo a Aziz e mostro-lhe os números: 32% de analfabetos em 2014, contra 87% em 1960, três anos antes de começar a vender livros. Ele abana a cabeça para os lados, aquilo não o entusiasma. Falo-lhe ainda nas projeções no que toca à demografia, que apontam para um aumento de 13 milhões de pessoas em 25 anos, mas Aziz só vê nisso uma desgraça maior. Diz: Non, non, non, la jeunesse est perdue. Na meia hora seguinte, mudamos de assunto. Pergunto-lhe por autores de língua portuguesa e Aziz admite nunca ter lido nenhum, embora várias vezes já lhe tenham falado de um brasileiro chamado Paulo Coelho. Sugiro-lhe Saramago, Pessoa, Eça, Machado de Assis, Jorge Amado. Falamos do francês Gérard de Villiers, que vendeu milhões de livros de espionagem sobre assuntos seus contemporâneos, incluindo o 25 de Abril e o colonialismo português. Também de Gabriel García Márquez, o primeiro nome que refere quando lhe perguntei por autores de outras culturas, de quem leu Cem Anos de Solidão. Até que chega uma mãe com uma menina – terá uns 10 ou 11 anos. O livreiro aproxima-se delas e começam a conversar, a pegar em livros, a folheá-los. São livros para jovens. Assim se mantêm durante uns bons dez minutos. Aziz entra e sai da sua livraria-armário, mas nada parece entusiasmar a rapariga. Até que o livreiro volta a mergulhar na livraria e procura, procura, procura. À saída, pousa nas mãos da jovem um livro de banda desenhada: Astérix entre os Bretões. Pacientemente, abre o livro e folheia-o, destacando partes específicas, rindo-se de certos diálogos e momentos da aventura. Ela parece achar graça ao que lhe é mostrado; aos poucos, abandona a resistência e começa a esboçar sorrisos. Minutos depois sai da livraria com a mãe, levando dois livros da autoria de Goscinny e Uderzo, e eu pergunto-me quantas vezes, ao longo de 60 anos, terá Aziz feito aquilo. O velho livreiro da medina de Rabat pode não ter aprendido a sonhar e pode ser pessimista na análise, mas, a bem daquela cidade, é também otimista na ação. E, com isso, vai alimentando de sonhos gerações de marroquinos.
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