Estava um dia tão bonito! Pus-me à janela. Vê-se um bocadinho de rio da minha janela... Que vontade que eu tinha, como tantas vezes, de andar de barco para cima e para baixo naquela nesga de água! Dava-lhe o sol, parecia mesmo um espelho.
Mas não saí de casa em todo o dia. Não foi no ano passado, foi há menos tempo, agora é que me estou a lembrar. Naquele dia aborreci-me muito, sentia-me presa, feita freira. Estive que tempos à janela, ao sol. E de noite sonhei...
Sonhei que ainda estava ao sol, mas na soleira de uma porta de aldeia, e que uma mulherzinha me catava. As unhas dela arranhavam-me e eu queria livrar-me daquele castigo, mas não podia. A menina apanhou muito sol, nasceram-lhe muitos piolhos! — dizia-me ela. Deixei-me ficar. Por fim achei-me no campo. E a minha cabeça era a de um pinheiro redondinho. Redondinho, redondinho, redondinho. Mas senti-me presa ao chão e fui crescendo. Tornei-me tão alta como todos os outros pinheiros. Não podia andar, já se sabe... e por isso o meu divertimento era bater com a cabeça na dos pinheiros que me rodeavam.
Não sei como vejo-me a caminhar de novo e venho ter a casa, ao meu próprio quarto. Peço à Joana a escova para me escovar das carumas; estava cheiinha delas; mas qual Joana nem qual escova? Começo a brincar aos cinco cantinhos, e com quem? Com uns soizinhos muito engraçados, muito corados e alegres — cada um do seu canto. Eram rapazes, mas por fim desapareceram também.
E eu, ainda tonta de sono, tenho uma grande vontade de ir buscar o sol, de o puxar para cima da minha cama e de lhe perguntar porque é que me tinha feito piolhosa e me tinha depois transformado em pinheiro e me mandara aqueles garotos com cara de sol, que se tinham ido embora tão depressa!
Irene Lisboa, "Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma"
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