sábado, junho 8

A luva de beisebol do Allie

O jantar aos sábados era sempre o mesmo lá no Pencey. Devia ser considerado algo de fabuloso, pois era o único dia em que serviam bife. Aposto que só faziam isso porque uma porção de pais de alunos visitavam o colégio aos domingos, e o velho Thurmer com certeza imaginava que a mãe de todo mundo ia perguntar ao filhinho querido o que é que ele tinha comido no jantar – e ele responderia: “Bife”. Eram uns safados. Valia a pena ver os tais bifes: umas porcariazinhas duras, sem caldo, que a gente mal conseguia partir. Vinham sempre acompanhados de um purê de batata todo encalombado, e a sobremesa era um pudim nojentérrimo que ninguém comia, a não ser talvez os meninos do primário, por inexperiência, ou sujeitos como o Ackley, que comiam qualquer droga.

Mas até que estava bonito quando saímos do refeitório. Já havia uns dez centímetros de neve no chão e continuava a nevar pra cachorro. Estava um bocado bonito, e nós todos começamos a jogar bolas de neve e fazer uma porção de maluquices. Pensando bem, era um bocado infantil, mas todo mundo estava se divertindo pra valer.

Eu não tinha namorada nem nada, por isso combinei com um amigo meu que era do time de luta-livre, o Mal Brossard, da gente tomar um ônibus para Agerstown, comer qualquer coisa por lá e talvez assistir a uma droga dum filme. Nenhum de nós dois estava com vontade de passar a noite inteira sentado em cima do rabo. Perguntei ao Mal se ele se importava que o Ackley fosse conosco, porque o chato nunca fazia nada nas noites de sábado, a não ser ficar trancado no quarto espremendo as espinhas ou coisa que o valha. Mal respondeu que não se importava, mas que também não se entusiasmava muito com a ideia. Ele não gostava muito do Ackley. De qualquer modo, cada um foi para seu quarto se arrumar e tudo, e enquanto eu calçava minhas galochas gritei na direção do quarto do Ackley, perguntando se ele queria ir ao cinema. Bem que ele podia me escutar através das cortinas do banheiro, mas não respondeu logo. Era o tipo do sujeito que odeia responder imediatamente. Afinal veio até meu quarto, atravessando as cortinas, parou na borda do chuveiro e perguntou quem ia, além de mim. Tinha sempre que saber quem ia sair com ele. Juro que se um dia ele sofresse, um naufrágio e alguém fosse socorrê-lo numa porcaria dum bote, o Ackley não saía da água antes de saber quem estava remando. Eu disse que o Mal Brossard também ia, e ele respondeu:

– Aquele cretino... Tá bem, me espera um minuto.

Parecia que estava nos fazendo um grande favor. Demorou umas cinco horas para se aprontar. Enquanto esperava, fui até a janela, abri uma banda e comecei a fazer uma bola de neve, sem luva nem nada. A neve estava um bocado boa pra isso, mas não joguei a bola em coisa nenhuma. Cheguei a começar a jogar, num carro que estava estacionado do outro lado da rua. Mas mudei de ideia, porque o carro estava bonito pra chuchu, todo coberto de branco. Aí fiz pontaria num hidrante, mas o hidrante também estava com um jeitão simpático, todo de branco. Afinal resolvi não jogar em lugar nenhum. Fechei a janela e fiquei andando pelo quarto, endurecendo ainda mais a bola de neve. Algum tempo depois, quando o Brossard, o Ackley e eu tomamos o ônibus, ainda estava com ela na mão. O motorista abriu uma janela e me disse para jogá-la fora. Expliquei a ele que não ia atirar a bola em ninguém, mas não houve jeito dele me acreditar. Ninguém nunca acredita na gente.

O Brossard e o Ackley já tinham visto o filme que estava passando, por isso a única coisa que fizemos foi comer uns sanduíches, dar uma voltinha pelas ruas e tomar o ônibus de volta para o Pencey. De qualquer maneira, pouco me importava de não ver o filme. Parece que era uma comédia, com o Cary Grant e essa droga toda, e, além disso, já tinha ido uma vez ao cinema na companhia daqueles dois. Ambos costumavam rir como hienas por causa de qualquer besteira, mesmo que não tivesse a mínima graça. Não dava nem prazer sentar ao lado deles no cinema.

Quando voltamos para o dormitório deviam ser umas quinze para as nove. O Brossard era maníaco por bridge e começou a procurar parceiros para uma partida. O chato do Ackley, pra variar, plantou-se no meu quarto. Só que, em vez de se sentar no braço da poltrona do Stradlater, deitou na minha cama, com a cara bem em cima do meu travesseiro e tudo. Começou a falar, com aquela voz monótona, ao mesmo tempo que espremia as espinhas. Dei-lhe mil indiretas, mas não consegui me livrar dele. Ficou lá falando, naquela voz monótona, sobre uma garota com quem ele dizia ter tido relações sexuais no verão passado. Já tinha me contado essa estória umas cem vezes, mas cada vez que contava era diferente. Numa hora, a coisa tinha acontecido no Buick do primo dele, na hora seguinte já era na praia. Naturalmente, era tudo mentira. Se alguma vez vi alguém virgem, esse alguém era ele. Duvido mesmo que tivesse alguma vez chegado a bolinar uma garota. Fosse como fosse, afinal tive que chegar para ele e dizer que tinha de escrever uma redação para o Stradlater e que por isso ele tinha de dar o fora porque senão eu não conseguia me concentrar. Acabou indo, mas demorou um bocado, como sempre. Depois que saiu, vesti meu pijama e meu roupão, pus o chapéu de caça na cabeça e comecei a escrever a redação.

O problema é que não consegui imaginar uma sala ou uma casa para descrever, tal como o Stradlater tinha me dito que devia ser. De qualquer maneira, não sou lá muito chegado a esse negócio de descrever salas ou casas. Então resolvi escrever sobre a luva de beisebol do meu irmão Allie. Era um assunto um bocado descritivo, no duro. Meu irmão Allie era canhoto, e por isso tinha uma luva de beisebol para a mão esquerda. Mas o que havia de descritivo nela é que tinha uma porção de poemas escritos em todos os dedos, na cova da luva, por todo canto. Em tinta verde. Ele copiava os poemas na luva porque só assim tinha alguma coisa para ler durante o jogo, quando não havia ninguém arremessando. Ele agora está morto. Teve leucemia e morreu quando nós estávamos em Maine, no dia 18 de julho de 1946. Qualquer um teria que gostar dele. Era dois anos mais moço do que eu, mas umas cinquenta vezes mais inteligente. Os professores dele estavam sempre escrevendo cartas para minha mãe, dizendo que era um grande prazer ter um menino como o Allie na turma. E não era simples conversa mole, era mesmo pra valer. O caso é que ele não era só o mais inteligente da família. Era também o melhor de todos, em muitos sentidos. Nunca ficava aborrecido com ninguém. Dizem que as pessoas de cabelo vermelho estão sempre se irritando com a maior facilidade, mas o Allie nunca brigava, e tinha o cabelo um bocado vermelho. Para mostrar como o cabelo dele era vermelho, eu me lembro que uma vez, nas férias de verão, quando eu tinha uns doze anos, estava jogando golfe (comecei a jogar golfe quando tinha dez anos) e, assim sem mais nem menos, tive a impressão de que se me virasse de repente veria o Allie. Olhei para trás e, batata, lá estava ele sentado na bicicleta, do outro lado da cerca – havia uma cerca que corria em volta de todo o campo – a mais de cem metros, me olhando dar a tacada. Isso mostra como o cabelo dele era vermelho. Mas ele era mesmo um menino bom. Às vezes, na mesa de jantar, lembrava de um troço qualquer e ria tanto que quase caía da cadeira. Eu só tinha uns treze anos, e meus pais resolveram que eu precisava ser psicanalisado e tudo, porque quebrei todas as janelas da garagem. Mas realmente acho que eles tinham razão. Dormi na garagem na noite em que ele morreu e quebrei a droga dos vidros todos com a mão, sei lá porquê. Tentei até arrebentar os vidros da camioneta que nós tínhamos naquele verão, mas a essa altura minha mão já estava quebrada e tudo, e não consegui. Reconheço que foi o tipo da coisa estúpida de se fazer, mas eu nem sabia direito o que estava fazendo, e vocês não conheciam o Allie. Minha mão ainda dói de vez em quando, nos dias de chuva e tudo, e nunca mais consegui fechar direito a mão – assim bem apertada – mas, fora isso, não me importo muito. De qualquer jeito, sei que não vou mesmo ser um cirurgião ou um violinista, ou droga nenhuma.

Foi sobre isto que escrevi a redação do Stradlater – a luva de beisebol do Allie. Por acaso, a luva estava na minha mala, por isso fui apanhá-la e copiei os poemas que estavam escritos nela. Tudo que precisei fazer foi mudar o nome do Allie, para ninguém saber que era meu irmão, e não o do Stradlater. Não fiquei lá muito satisfeito com a redação, mas não conseguia pensar em nenhum outro assunto descritivo. Além disso, eu gostava mesmo de escrever sobre a luva do Allie. A coisa me tomou uma hora, porque tive de usar a máquina de escrever do Stradlater, que enguiçava de dois em dois minutos. Só não usei a minha porque estava emprestada a um sujeito que também morava na minha ala.

Acho que deviam ser umas dez e meia quando acabei. Mas não estava cansado, por isso fui até a janela e fiquei algum tempo olhando para fora. Tinha parado de nevar, mas de vez em quando a gente escutava um carro que não conseguia pegar. Também dava para escutar o Ackley roncando, mesmo através da porcaria das cortinas do chuveiro. Ele tinha sinusite, e não podia respirar lá muito bem quando estava dormindo. Aquele sujeito tinha quase tudo que é possível alguém ter: sinusite, espinhas, dentes podres, mau hálito, unhas esculhambadas. A gente tinha de acabar sentindo um pouco de pena do filho da puta.
J. D. Salinger, "O apanhador no campo de centeio"

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