Antigamente sua, digamos, baixa extração a bania do convívio social mais fino, mas hoje ela é aceita, ganhou trânsito quase totalmente livre, faz parte do vocabulário geral e, no meu parecer, é uma contribuição que o baianês dá ao português falado no Brasil.
Que eu saiba de novo (vou parar com isto; todo mundo já sabe que eu não sei nada mesmo), essa palavra tão, perdão, plurívoca, não tem equivalente. Nenhum sinônimo possui sua riqueza conotativa, que muitas vezes é modificada quando ela é pronunciada junto com um gesto qualquer. Para compreendê-la de todo, o convívio é indispensável. Mas pode-se dizer, simplificando bastante, que a colhuda é a mentira desinteressada, ou interessada sobretudo em enaltecer, direta ou indiretamente, o colhudeiro. É freqüente que o prazer dele resida muito na apresentação da história, na sua quase encenação. Um bom colhudeiro tem o seu valor e, sem um ou dois, nenhuma boa mesa de boteco é completa. Eu, ficcionista profissional, sou o da minha, claro.
Todo mundo conhece um ou vários colhudeiros. Poderia mesmo dizer, sem medo de errar, que há um colhudeiro perto de você. Ou você não conhece pelo menos um cara que, quando qualquer pessoa narra uma experiência incomum, tem sempre uma história parecida para contar, somente um tantinho diferente da anterior, se possível para melhor? Há até mesmo duelos de colhudeiros, porque já sentei a mesas onde dois ou três deles se entrechocavam incessantemente, em meio a colhudas das mais cabeludas, maravilhando a todos com sua inventividade. E também todo mundo conhece o colhudeiro que meteu o dedo na cara do desembargador Sicrano ou do general Beltrano, o que já viveu uma vida de inexprimível dissipação e luxúria na companhia das melhores mulheres do Rio de Janeiro daquela época, a que não pode ir a uma festa desacompanhada porque a azaração em cima dela se torna insuportável, o que já viajou mais de uma vez numa espaçonave alienígena, e assim por diante.
Itaparica, como não podia deixar de ser, sempre contou com colhudeiros de escol. No tempo longínquo em que a luz era fornecida pelo gerador da prefeitura e só durava do anoitecer às dez ou dez e meia da noite, até às onze nos sábados, se bem me lembro, os colhudeiros desfrutavam de grande prestígio, alguns especializados em pescarias e aventuras marítimas, outros versados em mulheres de todos os tipos, ainda outros mais ou menos ecléticos. Veio o rádio, depois a televisão, o colhudeiro perdeu platéia, embora, é claro, não tenha morrido, apenas se adaptou às novas condições.
Mas meu amigo Xepa não é colhudeiro. Sério mesmo, Xepa é uns meses mais moço que eu (ô, pretensão, quero dizer menos velho), somos amigos desde meninos e ele nunca foi tido como colhudeiro. Na nossa geração, descontando meu caso profissional, há diversos colhudeiros de renome, alguns, diria eu, até mesmo comparáveis aos colhudeiros do governo, se bem que Sebinho de Eusébia diga que não há melhores colhudas que as colhudas do presidente — segundo Sebinho, tão bem contadas e com tanto sentimento que chegam a partir o coração. Graaaande colhudeiro, diz Sebinho. Do legítimo, que a pessoa jura que ele está acreditando na própria colhuda, a pessoa tem que ter admiração. Mas isso é lá com Sebinho, eu mesmo é que não estou chamando o presidente de colhudeiro, deste teclado jamais saiu tal alegação.
Estou é preocupado com a reputação de Xepa porque escrevi aqui que ele me contou que um amigo dele tinha fisgado um tatu com uma varinha de pescar carapicu, um peixinho miúdo que a gente trata, tempera com uma besteirinha de sal, cobre de farinha e frita, ele fica crocante e todo mundo come com cabeça, espinha e tudo — quem não comeu “ainda não apreceiou a vida”, como dizia o finado Lourival, embora se referindo a outra atividade humana. Aqui no Rio, quando contei essa história no Tio Sam (não, também não recebo um estipêndio para divulgar o Tio Sam, mas admito que penduro uns troços lá), Felipe Palácio, que gosta muito de curtir com a cara dos outros e anda com umas companhias estranhas, como Borges, Lilico e Boneco, cujas histórias escabrosas um dia eu conto aqui, Felipe Palácio, dizia eu, que já conhece a expressão, afirmou em alto e bom som que esse tal Xepa era colhudeiro.
Injustiça, injustiça, coisa de quem vive em palácios e não conhece o povo, como os dois autores da colhuda da baleia, hoje espalhada pelo mundo como piada que talvez até você já conheça. Deu-se que Miltinho de Carmelita, renomado colhudeiro da ilha prematuramente falecido, estava palestrando com Nadinho Damásio, santo-amarense e igualmente finado, e este lhe contou que tinha testemunhado um fato tremendo. Não é que ele estava em Santo Amaro, tomando umas cervejas perto da boca do rio Subaé, quando uma baleia enormíssima saiu do mar, se arrastou rio adentro e caiu de boca nos canaviais, uma coisa jamais vista sobre a face da Terra? A desgraçada da baleia não quis nem saber, mascou e chupou pelo menos uns quatro canaviais até voltar com o bucho cheio para a baía de Todos os Santos. Mas erra quem pensa que, como bom itaparicano, Miltinho envergonhou a ilha. Com a maior calma, ele retrucou, sem usar propriamente a palavra que aqui emprego depois do “no”:
— Ah, eu sei qual é essa baleia. É uma que eu vi na festa da Conceição da Praia, com uma torneira enfiada no traseiro e vendendo caldo de cana, agora eu entendi!
João Ubaldo Ribeiro, "O rei da noite"
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