terça-feira, agosto 30
Balança
Ruído de passos
Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo. Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda.
Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.
Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:
- Quando é que passa?
- Passa o quê, minha senhora?
- A coisa.
- Que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca. Olhou-o espantada.
- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
- Não importa, minha senhora. É até morrer.
- Mas isso é o inferno!
- É a vida, senhora Raposo.
A vida era isso, então? Essa falta de vergonha?
- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais...
O médico olhou-a com piedade.
- Não há remédio, minha senhora.
- E se eu pagasse?
- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
- E... e se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer?
- É, disse o médico. Pode ser um remédio.
Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.
Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte. A morte.
Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.
Clarice Lispector
segunda-feira, agosto 29
Biblioteca é a quinta maior 'libertadora' de livros
O movimento começou nos Estados Unidos, em 2001, e chegou ao Brasil em 2006. O Book Crossing está presente em 132 países, com quase 11,6 milhões de livros registrados e 1,6 milhão de membros, segundo estatísticas disponíveis no site da entidade. Até o fechamento desta edição, a Biblioteca de Americana ocupava a quinta posição no ranking mundial, com 26.220 livros libertados. É a única entidade brasileira a figurar entre as 20 primeiras colocadas da lista.
Segundo a coordenadora do Book Crossing Brasil, Helena Castelo Branco, que foi a criadora do primeiro ponto de distribuição do projeto no País, em 2006, a presença da Biblioteca de Americana na lista pode ser explicada pelo seu pioneirismo. A instituição foi uma das primeiras a abraçar o projeto.
"Eles estão constantemente libertando livros. Foram quase 300 nesse último mês. É o maior ponto que temos no Brasil e um dos maiores do mundo. Ela foi pioneira, uma das primeiras do Brasil, e participam assiduamente, ano após ano, por isso eles conseguiram chegar nessa estatística", explicou Helena.
A Biblioteca de Americana mantém barraquinhas nos pontos de ônibus ao redor da Praça Comendador Muller, no Centro, onde disponibiliza os livros. Dentro do livro, é deixado um recado explicando o projeto ao leitor e o endereço do site para que ele informe onde pegou o livro e onde o deixou (se tiver passado a obra adiante). Em eventos públicos da prefeitura, ou até mesmo de escolas, também é comum ver os livros para doação.
De acordo com o orientador cultural da biblioteca, Leonardo Luciano, o Book Crossing é uma importante forma de democratizar o acesso à literatura. "Fazemos isso há cerca de seis anos e cresceu muito. Cada leitor pode entrar no sistema, dizer o que achou do livro, onde pegou e dizer onde vai deixar na próxima parada. É uma brincadeira bem legal", disse.
Segundo a coordenadora do Book Crossing Brasil, Helena Castelo Branco, que foi a criadora do primeiro ponto de distribuição do projeto no País, em 2006, a presença da Biblioteca de Americana na lista pode ser explicada pelo seu pioneirismo. A instituição foi uma das primeiras a abraçar o projeto.
"Eles estão constantemente libertando livros. Foram quase 300 nesse último mês. É o maior ponto que temos no Brasil e um dos maiores do mundo. Ela foi pioneira, uma das primeiras do Brasil, e participam assiduamente, ano após ano, por isso eles conseguiram chegar nessa estatística", explicou Helena.
A Biblioteca de Americana mantém barraquinhas nos pontos de ônibus ao redor da Praça Comendador Muller, no Centro, onde disponibiliza os livros. Dentro do livro, é deixado um recado explicando o projeto ao leitor e o endereço do site para que ele informe onde pegou o livro e onde o deixou (se tiver passado a obra adiante). Em eventos públicos da prefeitura, ou até mesmo de escolas, também é comum ver os livros para doação.
De acordo com o orientador cultural da biblioteca, Leonardo Luciano, o Book Crossing é uma importante forma de democratizar o acesso à literatura. "Fazemos isso há cerca de seis anos e cresceu muito. Cada leitor pode entrar no sistema, dizer o que achou do livro, onde pegou e dizer onde vai deixar na próxima parada. É uma brincadeira bem legal", disse.
O quarto adorado
Zênon adorava o quarto atapetado de volumes, a pena de ganso, o tinteiro de osso, utensílios de um novo conhecimento, e a riqueza que consistia em aprender que o rubi vem da Índia, que o enxofre se combina ao mercúrio e que a flora denominada lilium em latim chama-se krinon em grego e susamah em hebraico. Percebeu depois que os livros divagam e mentem como os homens e que as prolixas explicações do cônego tinham amiúde por objetivos fatos que, não o sendo, prescindiam de qualquer explicação
Marguerite Yourcenar, "A obra em negro"
domingo, agosto 28
Companheiros de todoa vida
Assim começa o livro...
O que é curiosidade? Tudo começa com uma viagem. Um dia, quando tinha oito ou nove anos, em Buenos Aires, eu me perdi quando voltava da aula para casa. A escola era uma das muitas que frequentei em minha infância, e ficava a pouca distância de nossa casa, numa redondeza arborizada do bairro Belgrano. Então, como agora, eu me distraía facilmente, e todo tipo de coisa atraía minha atenção enquanto caminhava de volta para casa vestindo o uniforme branco engomado que todas as crianças da escola eram obrigadas a usar: a mercearia da esquina que, antes da era dos supermercados, tinha grandes barris de azeitonas salgadas, cones de açúcar embrulhados em papel azul-claro, latas azuis de biscoitos Canale; a papelaria com seus cadernos patrióticos ilustrando os rostos de nossos heróis nacionais e prateleiras nas quais se alinhavam as capas amarelas da coleção Robin Hood para crianças; uma porta alta e estreita com um vitral em formato de losango que às vezes era deixada aberta, revelando uma área interna escura onde um manequim de alfaiate enlanguescia misteriosamente; o gentil vendedor, um homem gordo sentado numa esquina sobre um minúsculo banquinho, segurando, como uma lança, suas mercadorias caleidoscópicas. Em geral, eu fazia o mesmo caminho para voltar da escola, contando os pontos de referência à medida que passava por eles, mas naquele dia decidi mudar o percurso. Depois de alguns quarteirões, percebi que eu não conhecia o caminho. Estava envergonhado demais para pedir informações, e assim fiquei vagando, mais espantado do que assustado, pelo que me pareceu um longo tempo.
Não sei o motivo de ter feito o que fiz, exceto o de querer experimentar algo novo, seguir quaisquer pistas que pudesse encontrar para mistérios ainda não apresentados, como nas histó- rias de Sherlock Holmes, que tinha acabado de descobrir. Queria deduzir a história secreta do médico com a bengala surrada, revelar que as pegadas das pontas dos pés na lama eram de um homem que corria para salvar sua vida, perguntar a mim mesmo por que alguém usaria uma barba preta bem tratada que indubitavelmente era falsa. “O mundo está cheio de coisas óbvias que ninguém, em circunstância alguma, jamais observa”, disse o Mestre.
Lembro-me de ter ficado consciente, com um sentimento de agradável ansiedade, de que estava entrando numa aventura diferente das que havia em minhas prateleiras e de ter experimentado algo com o mesmo suspense, com o mesmo desejo intenso de descobrir o que havia adiante, sem ser capaz de (sem querer) prever o que poderia acontecer. Senti como se tivesse entrado num livro e que estava a caminho de suas últimas páginas ainda não reveladas. O que exatamente eu estava procurando? Talvez tenha sido então que pela primeira vez concebi o futuro como um lugar que mantinha juntos todos os remates de todas as histórias possíveis.
Mas nada aconteceu. Finalmente dobrei uma esquina e me vi em território familiar. Quando finalmente vi minha casa, senti um desapontamento.
sábado, agosto 27
Viver na multidão
Até quando?
O ipê rosa que enfeitava a rua já não tem flores. Agora, é um entrelaçado de galhos nus, e assim será até que brotem novas folhas, muito tenras e intensamente verdes. Ele é a prova viva da passagem do tempo, dos ciclos que se renovam, ano após ano. E me ensina que, apesar das perdas, há sempre um recomeço. Brincam na memória velhos ditados – nada como um dia após o outro, depois da tempestade vem a bonança, vão-se os anéis, ficam os dedos… Mas para onde terá ido a tal felicidade?
Andamos todos abatidos. Governo interino que age como titular, administrações desastrosas, infraestrutura deficitária e promessas eleitoreiras de candidatos opacos a prefeituras e câmaras medíocres. Por alguns dias, nos distraímos com as Olimpíadas, mas, agora que voltamos à rotina, sentimos o peso da ressaca, não dos jogos, mas de tantos desmandos.
Falando em ressaca, para piorar as coisas, nas cidades litorâneas, o mar e os ventos fizeram muito estrago, comprometendo a qualidade de vida dos cidadãos. Orçamentos já defasados antes disso não oferecem qualquer garantia de que reparos e indenizações acontecerão em breve. E assim, tensos por vários motivos, abrimos brechas para a instabilidade emocional e, consequentemente, fragilizamos a saúde.
Depois da festa esportiva, voltou a ser ruim folhear os jornais ou assistir aos noticiários, pródigos em violência e pessimismo. Ainda sobra um pouco de orgulho de quem somos, efeito residual do evento olímpico, mas é pouco, diante do constrangimento das malandragens internas, da carência de justiça e seriedade que nos acompanham desde sempre.
O ipê rosa, lá pelo meio de 2017, voltará a florir, como todos os anos. Até quando resistirá nossa alma tão ferida de desenganos?
Madô Martins
sexta-feira, agosto 26
Batizado na Penha
Eu sou um sujeito que, modéstia à parte, sempre deu sorte aos outros (viva, minha avozinha diria: “Meu filho, enquanto você viver não faltará quem o elogie…”). Menina que me namorava casava logo. Amigo que estudava comigo, acabava primeiro da turma. Sem embargo, há duas coisas com relação às quais sinto que exerço um certo pé-frio: viagem de avião e esse negócio de ser padrinho. No primeiro caso o assunto pode ser considerado controverso, de vez que, num terrível desastre de avião que tive, saí perfeitamente ileso, e numa pane subseqüente, em companhia de Alex Viany, Luís Alípio de Barros e Alberto Cavalcanti, nosso Beechcraft, enguiçado em seus dois únicos motores, conseguiu no entanto pegar um campinho interditado em Canavieiras, na Bahia, onde pousou galhardamente, para gáudio de todos, exceto Cavalcanti, que dormia como um justo.
Mas no segundo caso é batata. Afilhado meu morre em boas condições, em período que varia de um mês a dois anos. Embora não seja supersticioso, o meu coeficiente de afilhados mortos é meio velhaco, o que me faz hoje em dia declinar delicadamente da honra, quando se apresenta o caso. O que me faz pensar naquela vez em que fui batizar meu último afilhado na Igreja da Penha, há coisa de uns vinte anos.
Éramos umas cinco ou seis pessoas, todos parentes, e subimos em boa forma os trezentos e não sei mais quantos degraus da igrejinha, eu meio céptico com relação à minha nova investidura, mas no fundo tentando me convencer de que a morte de meus dois afilhados anteriores fora mera obra do acaso. Conosco ia Leonor, uma pretinha de uns cinco anos, cria da casa de meus avós paternos.
Leonor era como um brinquedo para nós da família. Pintávamos com ela e a adorávamos, pois era danada de bonitinha, com as trancinhas espetadas e os dentinhos muito brancos no rosto feliz. Para mim Leonor exercia uma função que considero básica e pela qual lhe pagava quatrocentos réis, dos grandes, de cada vez: coçar-me as costas e os pés. Sim, para mim cosquinha nas costas e nos pés vem praticamente em terceiro lugar, logo depois dos prazeres da boa mesa; e se algum dia me virem atropelado na rua, sofrendo dores, que haja uma alma caridosa para me coçar os pés e eu morrerei contente.
Mas voltando à Penha: uma vez findo o batizado, saímos para o sol claro e nos dispusemos a efetuar a longa descida de volta. A Penha, como é sabido, tem uma extensa e suave rampa de degraus curtos que cobrem a maior parte do trajeto, ao fim da qual segue-se um lance abrupto. Vínhamos com cuidado ao lado do pai com a criança ao colo, o olho baixo para evitar alguma queda. Mas não Leonor! Leonor vinha brincando como um diabrete que era, pulando os degraus de dois em dois, a fazer travessuras contra as quais nós inutilmente a advertimos.
Foi dito e feito. Com a brincadeira de pular os degraus de dois em dois, Leonor ganhou momentum e quando se viu ela os estava pulando de três em três, de quatro em quatro e de cínco em cinco. E lá se foi a pretinha Penha abaixo, os braços em pânico, lutando para manter o equilíbrio e a gritar como uma possessa.
Nós nos deixamos estar, brancos. Ela ia morrer, não tinha dúvida. Se rolasse, ia ser um trambolhão só por ali abaixo até o lance abrupto, e pronto. Se conseguisse se manter, o mínimo que lhe poderia acontecer seria levantar vôo quando chegasse ao tal lance, considerada a velocidade em que descia. E lá ia ela, seus gritos se distanciando mais e mais, os bracinhos se agitando no ar, em sua incontrolável carreira pela longa rampa luminosa.
Salvou-a um herói que quase no fim do primeiro lance pôs-se em sua frente, rolando um para cada lado. Não houve senão pequenas escoriações. Nós a sacudíamos muito, para tirá-la do trauma nervoso em que a deixara o tremendo susto passado. De pretinha, Leonor ficara cinzenta. Seus dentinhos batiam incrivelmente e seus olhos pareciam duas bolas brancas no negro do rosto. Quando conseguiu falar, a única coisa que sabia repetir era: “Virge Nossa Senhora! Virge Nossa Senhora!”
Foi o último milagre da Penha de que tive notícia.
Vinícius de Moraes
Papéis coloridos
Meu primeiro emprego foi como vendedora de uma pequena livraria em Fortaleza, aos dezenove anos, e eu poderia contar inúmeras histórias que me aconteceram nesse período. Da mulher que me pedia para escrever dedicatórias de um fictício amante apaixonado ao rapaz que ia diariamente me pedir que lhe contasse das minhas leituras e que acabou casando comigo. Da presença de Rachel de Queiroz no lançamento do seu livro de memórias Tantos anos às performances do poeta pernambucano Miró, que lotava a livraria em todos os seus eventos.
Nos meus primeiros dias de trabalho, eu praticamente só vendia dois livros: O mundo de Sofia e O Xangô de Baker Street. Eles vinham da Companhia das Letras, uma editora que eu não conhecia ainda, mas que me conquistou de cara e me ajudou muito no começo.
Primeiro, porque a venda inacreditável dos livros mencionados acima melhorou consideravelmente a minha comissão. Segundo porque eu não tinha tempo de ler tudo e precisava de informações para indicar as novidades para os clientes. Então a Companhia mandava resenhas dos livros em papéis coloridos, vários tons de todas as cores. Eu guardava um por um no colecionador de plástico que eu levei de casa. Até que não coube mais nada e eu tive a ideia de encadernar e deixar na mesa de leitura da livraria.
Nos meus primeiros dias de trabalho, eu praticamente só vendia dois livros: O mundo de Sofia e O Xangô de Baker Street. Eles vinham da Companhia das Letras, uma editora que eu não conhecia ainda, mas que me conquistou de cara e me ajudou muito no começo.
Primeiro, porque a venda inacreditável dos livros mencionados acima melhorou consideravelmente a minha comissão. Segundo porque eu não tinha tempo de ler tudo e precisava de informações para indicar as novidades para os clientes. Então a Companhia mandava resenhas dos livros em papéis coloridos, vários tons de todas as cores. Eu guardava um por um no colecionador de plástico que eu levei de casa. Até que não coube mais nada e eu tive a ideia de encadernar e deixar na mesa de leitura da livraria.
Foi um sucesso. Alguns clientes sentavam para ler o Caderno de Resenhas da Companhia das Letras. Escolhiam os livros e faziam encomendas. Eu morria de ciúmes. Se alguém sentasse à mesa e ignorasse meu precioso caderno de resenhas, eu pedia licença e o retirava de lá, com medo de alguma avaria.
Quando a livraria fechou, o caderno foi doado à artista plástica Alba Alves, maior fã da Companhia que passou por ali. Lemos na mesma época o Momentos do livro no Brasil e conversávamos sobre o papel da editora na história do livro. Ela mereceu herdar o volume.
Deixei o trabalho para voltar à faculdade de jornalismo. Quase no final do curso, o escritor Lira Neto, então editor da Fundação Demócrito Rocha, convidou-me para escrever um dos ensaios biográficos da saudosa coleção Terra Bárbara. Uma semana antes, eu estive com Frei Betto, que lamentava a falta de uma biografia sobre o frade cearense Frei Tito de Alencar. Aceitei o desafio e publiquei o livro Frei Tito em 2001.
Depois do Frei Tito, segui a carreira de escritora e alimentei secretamente, pouco a pouco, o desejo de publicar pela Companhia das Letras.
Enfim, chegou a minha vez. Levado pelas mãos da minha agente Lúcia Riff, em 2014, meu romance A cabeça do Santo foi publicado pela Companhia. A capa amarela escolhida pela designer Elisa Von Randow me fez lembrar dos papéis coloridos que eu guardava como tesouro aos dezenove anos, trabalhando na livraria.
É pela lembrança tão nítida desses dias que cometo o pecado da pieguice na hora de falar da minha relação com a Companhia das Letras. Tenho dois livros na casa, mais dois por vir em breve e vários planos para o futuro. Minhas editoras são minhas amigas, bem como todos os que cuidam de várias etapas de edição e divulgação dos meus livros.
Não passo por São Paulo sem visitar a casa e tenho um orgulho imenso de ser parte da comemoração dos trinta anos da Companhia das Letras, de maneiras diferentes, desde 1994. Toda pieguice será perdoada. É tudo sonho e narrativa.
Socorro Acioli
Quando a livraria fechou, o caderno foi doado à artista plástica Alba Alves, maior fã da Companhia que passou por ali. Lemos na mesma época o Momentos do livro no Brasil e conversávamos sobre o papel da editora na história do livro. Ela mereceu herdar o volume.
Deixei o trabalho para voltar à faculdade de jornalismo. Quase no final do curso, o escritor Lira Neto, então editor da Fundação Demócrito Rocha, convidou-me para escrever um dos ensaios biográficos da saudosa coleção Terra Bárbara. Uma semana antes, eu estive com Frei Betto, que lamentava a falta de uma biografia sobre o frade cearense Frei Tito de Alencar. Aceitei o desafio e publiquei o livro Frei Tito em 2001.
Depois do Frei Tito, segui a carreira de escritora e alimentei secretamente, pouco a pouco, o desejo de publicar pela Companhia das Letras.
Enfim, chegou a minha vez. Levado pelas mãos da minha agente Lúcia Riff, em 2014, meu romance A cabeça do Santo foi publicado pela Companhia. A capa amarela escolhida pela designer Elisa Von Randow me fez lembrar dos papéis coloridos que eu guardava como tesouro aos dezenove anos, trabalhando na livraria.
É pela lembrança tão nítida desses dias que cometo o pecado da pieguice na hora de falar da minha relação com a Companhia das Letras. Tenho dois livros na casa, mais dois por vir em breve e vários planos para o futuro. Minhas editoras são minhas amigas, bem como todos os que cuidam de várias etapas de edição e divulgação dos meus livros.
Não passo por São Paulo sem visitar a casa e tenho um orgulho imenso de ser parte da comemoração dos trinta anos da Companhia das Letras, de maneiras diferentes, desde 1994. Toda pieguice será perdoada. É tudo sonho e narrativa.
Socorro Acioli
quinta-feira, agosto 25
MEC reprova lidos didáticos por ver racismo e machismo nas imagens
O FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) reprovou livros didáticos por considerar racistas e machistas imagens de mulheres, negros e até indianos em problemas sociais – como enchentes em São Paulo, dramas da seca na África e na Índia e até mesmo campanhas de saúde pública criadas pelo próprio governo federal.
Uma coleção de quatro volumes de Ciências da Natureza foi excluída do Programa Nacional do Livro Didático porque os avaliadores consideraram que algumas imagens caracterizam “discriminação e violação dos direitos humanos” ao reproduzir “estereótipos e preconceitos de condição social, étnico-racial e de gênero”.
A mesma avaliação recebeu a foto de uma enchente cujas vítimas são pardas, e uma pintura naif que poderia muito bem ser interpretada como simpática ao movimento negro. Para o FNDE, as imagens ainda “enfatizam o desnível sociorracial acentuando distorções com conotações especificamente raciais e ferem o conceito de igualdade social”.
Na prática, o critério politicamente correto do MEC veta qualquer imagem dos livros em que mulheres, pardos ou negros estejam relacionados a notícias negativas. Acaba privando os estudantes da informação sobre o perfil étnico das pessoas que mais precisam de ajuda na sociedade brasileira.
Uma das imagens classificada como contrária aos direitos humanos foi produzida pelo próprio governo Dilma. Retrata o cantor Thiaguinho e sua bem-sucedida luta contra a tuberculose. Parte de uma campanha do Ministério da Saúde de conscientização sobre a doença, o cartaz ilustra o capítulo sobre doenças transmissíveis do livro de sexta série.
Até mesmo um cartaz de conscientização sobre a tuberculose, criado pelo Ministério da Saúde, foi considerado racista pelo MEC
O MEC viu racismo contra negros até mesmo em imagens que não são de negros. Foi o caso de uma fotografia de indianos com baldes na mão cercando um caminhão-pipa. A própria legenda no livro da sexta série informa que a foto é de Nova Déli e que a Índia é um dos países que mais sofrem com o racionamento de água.
A aprovação do FNDE define o sucesso de vendas de uma coleção de livros didáticos, pois seleciona as obras que serão usadas por 32 milhões de alunos do Ensino Fundamental de escolas públicas.
A autora da coleção, que prefere não se identificar por temer perder oportunidades no mercado editorial, foi professora de Ciências e Biologia na rede estadual e federal por 25 anos, escreve livros há 20 anos e já ganhou o prêmio Jabuti na categoria didáticos. Ao receber a notícia da reprovação dos livros, ela imaginou que os motivos seriam técnicos ou pedagógicos. Quando leu o relatório, ficou revoltada. “Nunca vi na minha vida uma barbaridade e uma perseguição como essas”, diz.
Leia mais, inclusive o parecer do PNDL
Uma coleção de quatro volumes de Ciências da Natureza foi excluída do Programa Nacional do Livro Didático porque os avaliadores consideraram que algumas imagens caracterizam “discriminação e violação dos direitos humanos” ao reproduzir “estereótipos e preconceitos de condição social, étnico-racial e de gênero”.
Uma das imagens consideradas nocivas é a de mulheres africanas carregando vasos de barro, que ilustra a abertura de um capítulo sobre o drama da falta de água no planeta. Segundo o parecer, assinado em abril, ainda no governo Dilma, fotos como essa “trazem situações que retratam condições de inferioridade com relação aos negros e mulheres. Colocam também a mulher como vítima de desigualdade de direito a condições adequadas de vida”.
A mesma avaliação recebeu a foto de uma enchente cujas vítimas são pardas, e uma pintura naif que poderia muito bem ser interpretada como simpática ao movimento negro. Para o FNDE, as imagens ainda “enfatizam o desnível sociorracial acentuando distorções com conotações especificamente raciais e ferem o conceito de igualdade social”.
Na prática, o critério politicamente correto do MEC veta qualquer imagem dos livros em que mulheres, pardos ou negros estejam relacionados a notícias negativas. Acaba privando os estudantes da informação sobre o perfil étnico das pessoas que mais precisam de ajuda na sociedade brasileira.
Uma das imagens classificada como contrária aos direitos humanos foi produzida pelo próprio governo Dilma. Retrata o cantor Thiaguinho e sua bem-sucedida luta contra a tuberculose. Parte de uma campanha do Ministério da Saúde de conscientização sobre a doença, o cartaz ilustra o capítulo sobre doenças transmissíveis do livro de sexta série.
Até mesmo um cartaz de conscientização sobre a tuberculose, criado pelo Ministério da Saúde, foi considerado racista pelo MEC
O MEC viu racismo contra negros até mesmo em imagens que não são de negros. Foi o caso de uma fotografia de indianos com baldes na mão cercando um caminhão-pipa. A própria legenda no livro da sexta série informa que a foto é de Nova Déli e que a Índia é um dos países que mais sofrem com o racionamento de água.
A aprovação do FNDE define o sucesso de vendas de uma coleção de livros didáticos, pois seleciona as obras que serão usadas por 32 milhões de alunos do Ensino Fundamental de escolas públicas.
A autora da coleção, que prefere não se identificar por temer perder oportunidades no mercado editorial, foi professora de Ciências e Biologia na rede estadual e federal por 25 anos, escreve livros há 20 anos e já ganhou o prêmio Jabuti na categoria didáticos. Ao receber a notícia da reprovação dos livros, ela imaginou que os motivos seriam técnicos ou pedagógicos. Quando leu o relatório, ficou revoltada. “Nunca vi na minha vida uma barbaridade e uma perseguição como essas”, diz.
Leia mais, inclusive o parecer do PNDL
Arrumação
Forçado a tirar da biblioteca as obras inúteis, para dar lugar a alguns volumes científicos recentes e romances modernos que frequentemente tenho de consultar, tomei em massa todos os poetas e os atirei ao porão. A estante não é um móvel, e sim um instrumento de uso diário, que seria mais ágil e pronto se os poetas, esses maçantes que tem pretensões a prateleira privilegiada, não estivessem ali, paralisando-lhe o funcionamento. Na adolescência todos nós lemos os poetas e, quando rapazes, possuímos uma bicicleta, mas é preciso não haver compreendido o sentido da vida para na idade madura continuarmos a nos servir desses velhos arneses do pensamento e da locomoção. Uma pessoa bem educada, chegando a certa idade, deve jogar no porão, com os respectivos acessórios, tanto a bicicleta como Petrarca
Pittigrilli, "1° ano ginasial, Turma B"
quarta-feira, agosto 24
O que você vai ser quando crescer
Então, em uma noite chuvosa, naquela mesma colônia de férias em Pentagna, eu estava com minha tia-avó Iacy quando ela me entregou um exemplar de “Um estudo em vermelho”. Eu nunca havia lido um livro que não fosse daqueles obrigatórios na escola. Fiz cara feia, não queria ficar lendo, mas minha tia-avó insistiu e, afinal, por que não? Estava chovendo!
Adrien-Jean le Mayeur |
Quando percebi, tinha mergulhado de cabeça naquele universo, investigando crimes com Sherlock Holmes, tenso pelo que viria nas páginas seguintes e ansioso para chegar ao final. Naquela madrugada mesmo, terminei o livro. Eu estava em êxtase, como só ficamos quando nos deparamos com uma revelação, com todo um mundo novo e cheio de possibilidades. Ainda naquelas férias, li “A volta de Sherlock Holmes” e dois infanto-juvenis de Sidney Sheldon: “O fantasma da meia-noite” e “A perseguição”. Ainda naquelas férias, resolvi que seria escritor.
Raphel Montes
Quem lê vive mais
Antonio Berni (1905-1981) |
Uma sessão diária de leitura com duração de 30 minutos. De acordo com um estudo da Universidade de Yale, dos Estados Unidos, é disso que você precisa para viver 23 meses a mais do que quem não tem o hábito de ler livros.
Os pesquisadores da escola de saúde pública da universidade concluíram que quanto mais as pessoas leem, mais chances elas têm de ter a vida prolongada – mas três horas e meia por semana foi o período considerado o suficiente para a medida tenha o impacto positivo prometido.
Os novos resultados corroboram com outros estudos que ligam a leitura de livros a ajudar a manter o cérebro ativo e saudável.
A leitura de romances "treina" as regiões de processamento de linguagem do cérebro, criando um efeito chamado "engajamento cognitivo". Pesquisas da Universidade de Harvard e da Universidade de Emory (Atlanta) suportam essa teoria.
O estudo da Universidade de Yale envolveu 3.635 pessoas com idades de 50 anos ou mais. A expectativa de vida maior registra entre as pessoas que liam ou não foi avaliada com base na probabilidade de morte constatada por métodos que não foram publicamente detalhados.
Pessoas que liam mais de três horas e meia por semana apresentaram 23% menos chances de morte, enquanto as que liam até três horas e meia por semana apresentaram 17% menos chances de falecer do que as pessoas que não praticavam a leitura com regularidade.
Agora, os pesquisadores irão analisar os efeitos de livros de fição e não-fição, bem como dos livros digitais e dos audiolivros na saúde humana.
terça-feira, agosto 23
Despedida
E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.
Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.
E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?
Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titereteiro inábil.
Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pode haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.
A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.
Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.
Almeida Júnior |
Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titereteiro inábil.
Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pode haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.
A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.
Rubem Braga
Assim começa o livro...
Não seria propriamente um conto, ficaria dias e mais dias rondando a sua cabeça, você não escrevia uma única frase, uma palavra que fosse, pois ela o comprometeria com um seguimento, um desfecho, e o que você queria era uma prosa solta, que não precisasse ser escrita e concluída; que fosse um pensamento livre em movimento, levando-o a paragens infinitas e movediças, algo que nunca chegava a fixar-se, apesar de alguma ordem. Mas se poderia argumentar: se não se escreve não é um conto, mas para você é, existe um protagonista, um ser que habita um corpo e agora se põe em situação, está sentado em um banco individual de lotação, você o pegou na rua São Francisco Xavier, nas cercanias de Vila Isabel, depois de ter saído do Maracanã, digamos que de um jogo entre Vasco e América, você ia a qualquer jogo, sozinho ou com o seu irmão, o pai os deixava livres, era uma outra época, sem muita violência, da cidade; você estava com doze anos, até quase a metade deste ano de 1954 morara com a família em Londres, onde o pai fizera um curso de pós-graduação em ciências econômicas e o pai também não os impedia de saírem 8 sozinhos pela cidade estrangeira, que vocês dominavam melhor do que os adultos. Matando aula, vocês percorriam todas as estações do metrô, bastava pagar com moedas na máquina os bilhetes para a estação mais próxima — os preços eram diferenciados — e torcer para não aparecer nenhum fiscal que poderia levá-los para o colégio ou para casa, vai ver até passando pela delegacia, a rigidez inglesa que criminalizava até meninos, discutia-se isso na tv. E, com o bilhete mínimo, vocês iam aonde quisessem, desde que não tentassem sair numa estação fora do perímetro do bilhete.
Um dia, no colégio, na hora em que todas as turmas se reuniam num salão, antes do almoço, vocês assistiram, estarrecidos, ao headmaster chamar um menino — um dos menores — à sua presença e, depois de dizer qualquer coisa ao garoto, referente a uma falta disciplinar, mandou que ele estendesse a mão, uma de cada vez, e levantando o headmaster a própria mão, segurando uma sola de borracha, aplicou a palmatória, com violência, três vezes em cada mão do menino, que abriu a boca de tanto chorar. Você e seu irmão ficaram chocados e revoltados. No Brasil isso seria inconcebível. Se você conta isso neste momento do texto, é porque talvez tenha tido uma grande influência no gazetear de aulas.
segunda-feira, agosto 22
Sugestão de risco
Tebe Interesno |
Um amigo me procurou para falar de como, de repente, foi acometido de uma incontrolável necessidade de escrever ficção. Mas seu trabalho em importante escritório de advocacia não lhe dá tempo para isso. Como me julga uma autoridade no assunto, perguntou-me o que fazer. Respondi que, se essa necessidade for mesmo incontrolável, nada o deterá —ele jogará tudo para o alto, carreira, família, e se tornará escritor.
Se bom ou mau, só se saberá quando publicar seu romance ou livro de contos —se chegar a publicá-lo.
Mas nada o livrará de ter de lutar minimamente pela subsistência, e o ideal seria achar um emprego compatível com a criação literária. Daí, sugeri-lhe aquele que, segundo William Faulkner, autor de "Santuário", era o emprego ideal para um escritor: o de gerente de bordel.
É um lugar, disse Faulkner, onde se pode dormir (quartos não faltam), comer e beber no emprego. Não há muito que fazer - no máximo, cuidar de que os impostos sejam pagos em dia e ir mensalmente à delegacia para contribuir com o fundo de pensão da polícia. O bordel é sossegado pela manhã, que é a melhor hora para escrever. À noite, a vida social é intensa, e o sujeito pode participar dela, se quiser. Além disso, tanto os clientes quanto as meninas são potenciais fornecedores de material para seu livro.
É também um emprego, continua Faulkner, que garante ao sujeito um relativo status em sociedade. Todos os inquilinos da casa são mulheres e o tratam com deferência. Idem quanto aos fornecedores de bebida, que dependem do seu aval sobre as falsificações. E o próprio delegado será alguém a quem ele poderá chamar pelo apelido ("Bolão") e até dar tapinhas na barriga.
Faulkner não disse, mas o risco nessa história é o sujeito se apaixonar pelo emprego e desistir da literatura. O que talvez não seja má ideia.
Madrugadas na Biblioteca Mário de Andrade
Uma mulher de touca de lã rosa corre desesperada pela Avenida São Luís, no centro de São Paulo, à 1h10 de quarta-feira. Tudo tão silencioso a esta hora, sem passar ônibus nem carro, que ouve-se bem a moça arfando, os passos apressados na calçada, e também a gritaria.
– Ele vai me furar! – berra a mulher, perseguida por um ladrão, canivete no bolso, exigindo carteira e celular.
Ela diminui o ritmo, está quase desistindo – queira Deus seja só um assalto... – mas recobra o ânimo quando vê um prédio iluminado na esquina. Aproxima-se, escuta o bandido soltar um xingo e ouve um rapaz ali por perto: “Entra aqui, corre pra dentro!”.
Quando vê ela já está metida no hall do edifício, guiada devagarinho ao bebedouro, pra que se acalme. O ladrão quebrou à esquerda e sumiu. O rapaz oferece um cigarro. Que que é aqui mesmo?
– Bi-bli-o-te-ca? – a moça ri alto, meio incrédula, agora a salvo – não acredito que acabei minha noite numa biblioteca!
A Mário de Andrade, segunda maior do País e desde 1º de julho a única a funcionar 24 horas, se tornou refúgio de leitores notívagos. E de muita gente mais. Há vez aos que gostam dos livros – e também aos que não gostam, aos que gostam mas já se esqueceram disso, aos muitos que ainda não sabem que gostam. Aos que fogem do assalto, do frio, a quem está ali pelo Wi-Fi. Para receber esse povo todo, faz um mês e meio que a biblioteca não fecha as duas portas, nem a da Rua da Consolação, nem a da São Luís.
A mulher da touca rosa é a Nádia Pinheiro, de 31 anos, vendedora de bijuterias nas ruas do centro, e que perdeu o último trem do metrô logo hoje, dia do seu aniversário. Fizeram bolo lá na casa dela, na Favela do Cantão, na zona sul, mas ficou pra amanhã. Ela agora pita um Derby com o Higor Coutinho, universitário (cursa Matemática na FMU), de 20 anos, o rapaz que apontou a ela a biblioteca, e que usa o espaço pra ler e estudar. Ele tinha dado um tempo no Grande Crônica da Segunda Guerra Mundial: de Stalingrado a Hiroshima (Reader's Digest Edições), quando foi pra fora e deparou-se com a tentativa de assalto. Vai agora apresentar a biblioteca à moça.
As duas áreas chamadas “de convivência” da Mário estão abertas 24 horas desde outubro passado. Vêm dando abrigo a moradores de rua, a imigrantes que buscam um rumo, aos que se recuperam das baladas. Não se pode usar o lugar para dormir, mas, como aqui é agradável (bem mais do que a rua) e os vigias têm uma área grande a cobrir, as mesas ficam repletas de cabeças exaustas apoiadas em braços também fatigados – uma transgressão que resulta em interação constante entre os guardas e os que dormem. Vigias chacoalham (“ô!”, “não pode!”), adormecidos acordam, resmungam, alinham a coluna. Caem de volta à mesa logo depois. A dança dura a noite toda.
Mas o perfil do lugar se tornou mais complexo com a novidade do último mês, quando a biblioteca circulante (50 mil títulos) passou a abrir também 24 horas, todo dia. Adicionou substância – livros, autores, enredos – à cena noturna do centro.
É 1h40, e seis pessoas ocupam algumas das 16 mesas de madeira da circulante. Para emprestar livros nas três máquinas de autoatendimento, basta ter o número da matrícula no Sistema Municipal de Bibliotecas e uma senha que se faz na hora com os atendentes noturnos (misto de recepcionistas e livreiros, novidade no serviço público). Higor e Nádia caminham entre as estantes, ele ainda com o Grande Crônica... na mão, e ela agora também com um livro,A Princesa Vermelha (Record), de Sofka Zinovieff (foi ele quem escolheu, pois ela ainda estava tímida no local).
Um dos seis leitores acaba de se levantar, deixando na mesa, perto da seção de Ciências Ocultas, o Dicionário do Mundo Misterioso: Esoterismo e Paranormalidade (Nova Era), de Gilberto Schroeder. É José Aroldo dos Santos, um ex-torneiro mecânico de 67 anos, que caminha até a área de convívio e apoia-se em uma janela por onde entra o vento frio – ele tem obra nas mãos, Universo em Desencanto, que explica a Cultura Racional, crença popularizada na música de Tim Maia. Aroldo vai até a parede vermelha desta sala, feita para rabiscar a giz, e escreve: “Cultura Racional: o livro do momento”. Com letras redondas, prossegue: “Conhecimento para desenvolver o raciocínio”.
“Como todo bom estudante, estou pronto para passar adiante o que sei”, diz Aroldo, mineiro de Juiz de Fora e que vive aqui perto, num prédio da Praça Marechal Deodoro. “Descobri a biblioteca aberta à noite por acaso. Tava voltando pra casa e me deparei com o predião todo aceso. Agora venho sempre, porque aqui tem gente curiosa, bom pra conversar.” Animado, ele confidencia: “Acho que é um sinal. Um prédio com toda essa energia elétrica fluindo, toda essa energia magnética do conhecimento... É como um chamado. Vai que encontrei o lugar ideal para divulgar minha crença?”, questiona, e entrega um folheto.
Aroldo frequenta as seções de História e das várias ciências. Vem todas as noites, e observa de sua mesa o desenrolar das madrugadas: “O que tem de gente que vem pra ficar de olho em laptop...” São os “olheiros”, figuras conhecidas dos vigias. Entram na circulante, pegam um livro qualquer, mas nem chegam a virar as páginas. “Querem saber de outra coisa, mapeiam quem tem celular bom, computador...”, conta um segurança. “Se bobear é que nem gavião: tchum! E lá se foi o tablet. Temos duas advertências: não deixar o equipamento sozinho nas mesas, e tomar cuidado nos arredores.” No projeto de abertura noturna, a direção bem tentou incluir a segurança da praça vizinha, a D. José Gaspar. A Prefeitura não autorizou, e a Guarda Civil Metropolitana continua responsável pelos arredores. Como há sempre funcionários por perto, dentro da biblioteca a sensação é de segurança à noite, e ainda não foram registrados furtos nesse horário.
A essa altura, 2h30 da manhã, numa das bancadas do mezanino, uma mulher de hijab e um rapaz de coque no alto da cabeça dividem um fone de ouvido e sorriem olhando a tela de um laptop. Elham Selim, egípcia de 28 anos, e Makarem Tuiki, tunisiano de 26, que fazem um intercâmbio de trabalho numa ONG, encontraram aqui um bom lugar para atualizar a conversa com o povo de longe. Queixam-se da escassez de livros em inglês, mas dizem considerar a biblioteca “o melhor lugar pra ver filmes em São Paulo”. Eles agora assistem à comédia francesaIntocáveis. “O Wi-Fi funciona bem de madrugada”, diz ela. “E é bom aos estrangeiros, porque temos poucos amigos, e aqui podemos ficar entre outras pessoas.”
Também no mezanino circulam Higor e Nádia (recuperada do susto), parados em frente à seção de Filosofia. Ele segura O Filósofo e a Teologia(Academia Cristã), de Étienne Gilson. Nádia agora está falante, e tem em mãos Cartas Escritas na Montanha, de Jean-Jacques Rousseau. “Conheci o Rousseau num vídeo do Leandro Karnal. Pelo que ele contou, o Rousseau sofreu muito, foi injustiçado. Se eu sofresse a metade, me matava”, ela diz. Passaram-se três horas desde a tentativa de assalto, e os dois ainda estão passeando entre as estantes, ainda falando de livros – vem de longe o hábito da leitura na vida deles? Higor atribui à escola, mas a Nádia, que estudou até a sexta série, adquiriu o costume de outra forma. “Deixava meus dois filhos numa livraria Saraiva, enquanto trabalhava. Quando ia buscar ficava lendo.” Nesses intervalos leu Invencível, de Laura Hillenbrand, que considera seu livro preferido. “Mas já faz muitos anos. Outras coisas roubaram minha atenção, e não pude mais ler. Sentia um vazio... Agora que sei que uma biblioteca abre à noite, quero vir mais vezes depois do trabalho.”
A abertura 24 horas da Mário de Andrade é planejada desde 2013, mas começou a sair do papel só no fim do ano passado. Foi preciso novas licitações para os serviços – o número de funcionários subiu de 150 para 250, e as despesas subiram 38% (de R$ 10,8 milhões para R$ 15 milhões anuais). “A abertura faz parte da política de aproximar a Mário de Andrade do público. Biblioteca não é depósito de livros. Tem de ser vista como um centro de encontros”, diz o diretor da instituição, o filósofo e professor da USP Luiz Armando Bagolin. “Temos livros sobre teatro, então vamos montar peças aqui dentro. E isso vale para música, cinema, todas as áreas.” Uma das inspirações vem do sistema público de bibliotecas de Nova York e, por lá, funciona: o orçamento do setor aumentou 10% de 2015 para 2016 quando se notou o sucesso dos serviços oferecidos (de aconselhamento profissional a aulas de tricô, com filas de meses). Por aqui, por outro lado, houve congelamento.
Em um mês e meio de funcionamento 24 horas, a biblioteca recebeu em média 60 pessoas por madrugada (0h às 7h). E teve média de 18 livros emprestados por noite – ou seja, 30% dos visitantes levaram alguma obra para casa. A relação é mais positiva do que a que se viu durante o dia no mesmo período (cerca de 20% levaram livros). Seria o público noturno mais voraz? Cedo pra dizer, mas entre os bibliotecários a explicação é que, se saíram de casa nessa hora, a chance de levarem algo é mesmo maior.
Obras clássicas da literatura, de autores como José de Alencar e Machado de Assis, estão entre as mais emprestadas nas madrugadas. Não que a biblioteca tenha funcionado, à noite, como clubes de leitura, em que literatura aparece como tópico principal. Em duas noites inteiras, poucos pareceram imersos em histórias. Até a chegada do barbeiro José Lourenço – que, às 5 horas de quarta, procurava no catálogo A vida do livreiro A.J. Friky, de Gabrielle Zevin. Sentou-se numa mesa lateral, com vista para a Consolação, e começou a ler. “É uma carta de amor para o mundo dos livros”, disse. “Tudo a ver com minha vida hoje.”
Budista desde 1982 (“quando a Madonna veio ao Brasil”, assim ele gravou a data da conversão), este barbeiro de 60 anos acredita que a principal motivação de sua vida hoje é a leitura. “Houve um momento em que era ganhar dinheiro, e me esfalfei durante 16 anos no Projac (da Globo). Depois houve o momento das viagens, da vida amorosa, e hoje, depois de muitos percalços, é o da sede de saber”, diz. “Aqui encontro a mim mesmo por meio da leitura. Me refugiei aqui dentro, e encontrei um mundo só meu.”
Lourenço cita refúgio e fez lembrar da Nádia, que de quase vítima de assalto viu-se abrigada a noite inteira. Até pouco antes de amanhecer, ela ainda falava com o novo amigo, agora sentados em pufes na seção de História Geral. A vendedora tinha nas mãosConversas com um Jovem Professor (Contexto), de Karnal. E falava sobre planos de voltar a ler, “para ver se tiro o funk da cabeça”. “É uma praga! Coloque um funk e depois coloque Caetano, pra ver qual você decora antes...”, ela dizia – e Higor se preparava para complementar, quando a conversa foi interrompida por um atendente noturno. “Licença. Tá aqui o teu Kant”, ele disse, e entregou à moça uma biografia do filósofo alemão, que, depois de passar uma madrugada na biblioteca, ela agora levaria ao Cantão.
– Ele vai me furar! – berra a mulher, perseguida por um ladrão, canivete no bolso, exigindo carteira e celular.
Ela diminui o ritmo, está quase desistindo – queira Deus seja só um assalto... – mas recobra o ânimo quando vê um prédio iluminado na esquina. Aproxima-se, escuta o bandido soltar um xingo e ouve um rapaz ali por perto: “Entra aqui, corre pra dentro!”.
Quando vê ela já está metida no hall do edifício, guiada devagarinho ao bebedouro, pra que se acalme. O ladrão quebrou à esquerda e sumiu. O rapaz oferece um cigarro. Que que é aqui mesmo?
– Bi-bli-o-te-ca? – a moça ri alto, meio incrédula, agora a salvo – não acredito que acabei minha noite numa biblioteca!
A Mário de Andrade, segunda maior do País e desde 1º de julho a única a funcionar 24 horas, se tornou refúgio de leitores notívagos. E de muita gente mais. Há vez aos que gostam dos livros – e também aos que não gostam, aos que gostam mas já se esqueceram disso, aos muitos que ainda não sabem que gostam. Aos que fogem do assalto, do frio, a quem está ali pelo Wi-Fi. Para receber esse povo todo, faz um mês e meio que a biblioteca não fecha as duas portas, nem a da Rua da Consolação, nem a da São Luís.
A mulher da touca rosa é a Nádia Pinheiro, de 31 anos, vendedora de bijuterias nas ruas do centro, e que perdeu o último trem do metrô logo hoje, dia do seu aniversário. Fizeram bolo lá na casa dela, na Favela do Cantão, na zona sul, mas ficou pra amanhã. Ela agora pita um Derby com o Higor Coutinho, universitário (cursa Matemática na FMU), de 20 anos, o rapaz que apontou a ela a biblioteca, e que usa o espaço pra ler e estudar. Ele tinha dado um tempo no Grande Crônica da Segunda Guerra Mundial: de Stalingrado a Hiroshima (Reader's Digest Edições), quando foi pra fora e deparou-se com a tentativa de assalto. Vai agora apresentar a biblioteca à moça.
As duas áreas chamadas “de convivência” da Mário estão abertas 24 horas desde outubro passado. Vêm dando abrigo a moradores de rua, a imigrantes que buscam um rumo, aos que se recuperam das baladas. Não se pode usar o lugar para dormir, mas, como aqui é agradável (bem mais do que a rua) e os vigias têm uma área grande a cobrir, as mesas ficam repletas de cabeças exaustas apoiadas em braços também fatigados – uma transgressão que resulta em interação constante entre os guardas e os que dormem. Vigias chacoalham (“ô!”, “não pode!”), adormecidos acordam, resmungam, alinham a coluna. Caem de volta à mesa logo depois. A dança dura a noite toda.
Mas o perfil do lugar se tornou mais complexo com a novidade do último mês, quando a biblioteca circulante (50 mil títulos) passou a abrir também 24 horas, todo dia. Adicionou substância – livros, autores, enredos – à cena noturna do centro.
É 1h40, e seis pessoas ocupam algumas das 16 mesas de madeira da circulante. Para emprestar livros nas três máquinas de autoatendimento, basta ter o número da matrícula no Sistema Municipal de Bibliotecas e uma senha que se faz na hora com os atendentes noturnos (misto de recepcionistas e livreiros, novidade no serviço público). Higor e Nádia caminham entre as estantes, ele ainda com o Grande Crônica... na mão, e ela agora também com um livro,A Princesa Vermelha (Record), de Sofka Zinovieff (foi ele quem escolheu, pois ela ainda estava tímida no local).
Um dos seis leitores acaba de se levantar, deixando na mesa, perto da seção de Ciências Ocultas, o Dicionário do Mundo Misterioso: Esoterismo e Paranormalidade (Nova Era), de Gilberto Schroeder. É José Aroldo dos Santos, um ex-torneiro mecânico de 67 anos, que caminha até a área de convívio e apoia-se em uma janela por onde entra o vento frio – ele tem obra nas mãos, Universo em Desencanto, que explica a Cultura Racional, crença popularizada na música de Tim Maia. Aroldo vai até a parede vermelha desta sala, feita para rabiscar a giz, e escreve: “Cultura Racional: o livro do momento”. Com letras redondas, prossegue: “Conhecimento para desenvolver o raciocínio”.
“Como todo bom estudante, estou pronto para passar adiante o que sei”, diz Aroldo, mineiro de Juiz de Fora e que vive aqui perto, num prédio da Praça Marechal Deodoro. “Descobri a biblioteca aberta à noite por acaso. Tava voltando pra casa e me deparei com o predião todo aceso. Agora venho sempre, porque aqui tem gente curiosa, bom pra conversar.” Animado, ele confidencia: “Acho que é um sinal. Um prédio com toda essa energia elétrica fluindo, toda essa energia magnética do conhecimento... É como um chamado. Vai que encontrei o lugar ideal para divulgar minha crença?”, questiona, e entrega um folheto.
Aroldo frequenta as seções de História e das várias ciências. Vem todas as noites, e observa de sua mesa o desenrolar das madrugadas: “O que tem de gente que vem pra ficar de olho em laptop...” São os “olheiros”, figuras conhecidas dos vigias. Entram na circulante, pegam um livro qualquer, mas nem chegam a virar as páginas. “Querem saber de outra coisa, mapeiam quem tem celular bom, computador...”, conta um segurança. “Se bobear é que nem gavião: tchum! E lá se foi o tablet. Temos duas advertências: não deixar o equipamento sozinho nas mesas, e tomar cuidado nos arredores.” No projeto de abertura noturna, a direção bem tentou incluir a segurança da praça vizinha, a D. José Gaspar. A Prefeitura não autorizou, e a Guarda Civil Metropolitana continua responsável pelos arredores. Como há sempre funcionários por perto, dentro da biblioteca a sensação é de segurança à noite, e ainda não foram registrados furtos nesse horário.
A essa altura, 2h30 da manhã, numa das bancadas do mezanino, uma mulher de hijab e um rapaz de coque no alto da cabeça dividem um fone de ouvido e sorriem olhando a tela de um laptop. Elham Selim, egípcia de 28 anos, e Makarem Tuiki, tunisiano de 26, que fazem um intercâmbio de trabalho numa ONG, encontraram aqui um bom lugar para atualizar a conversa com o povo de longe. Queixam-se da escassez de livros em inglês, mas dizem considerar a biblioteca “o melhor lugar pra ver filmes em São Paulo”. Eles agora assistem à comédia francesaIntocáveis. “O Wi-Fi funciona bem de madrugada”, diz ela. “E é bom aos estrangeiros, porque temos poucos amigos, e aqui podemos ficar entre outras pessoas.”
Também no mezanino circulam Higor e Nádia (recuperada do susto), parados em frente à seção de Filosofia. Ele segura O Filósofo e a Teologia(Academia Cristã), de Étienne Gilson. Nádia agora está falante, e tem em mãos Cartas Escritas na Montanha, de Jean-Jacques Rousseau. “Conheci o Rousseau num vídeo do Leandro Karnal. Pelo que ele contou, o Rousseau sofreu muito, foi injustiçado. Se eu sofresse a metade, me matava”, ela diz. Passaram-se três horas desde a tentativa de assalto, e os dois ainda estão passeando entre as estantes, ainda falando de livros – vem de longe o hábito da leitura na vida deles? Higor atribui à escola, mas a Nádia, que estudou até a sexta série, adquiriu o costume de outra forma. “Deixava meus dois filhos numa livraria Saraiva, enquanto trabalhava. Quando ia buscar ficava lendo.” Nesses intervalos leu Invencível, de Laura Hillenbrand, que considera seu livro preferido. “Mas já faz muitos anos. Outras coisas roubaram minha atenção, e não pude mais ler. Sentia um vazio... Agora que sei que uma biblioteca abre à noite, quero vir mais vezes depois do trabalho.”
A abertura 24 horas da Mário de Andrade é planejada desde 2013, mas começou a sair do papel só no fim do ano passado. Foi preciso novas licitações para os serviços – o número de funcionários subiu de 150 para 250, e as despesas subiram 38% (de R$ 10,8 milhões para R$ 15 milhões anuais). “A abertura faz parte da política de aproximar a Mário de Andrade do público. Biblioteca não é depósito de livros. Tem de ser vista como um centro de encontros”, diz o diretor da instituição, o filósofo e professor da USP Luiz Armando Bagolin. “Temos livros sobre teatro, então vamos montar peças aqui dentro. E isso vale para música, cinema, todas as áreas.” Uma das inspirações vem do sistema público de bibliotecas de Nova York e, por lá, funciona: o orçamento do setor aumentou 10% de 2015 para 2016 quando se notou o sucesso dos serviços oferecidos (de aconselhamento profissional a aulas de tricô, com filas de meses). Por aqui, por outro lado, houve congelamento.
Em um mês e meio de funcionamento 24 horas, a biblioteca recebeu em média 60 pessoas por madrugada (0h às 7h). E teve média de 18 livros emprestados por noite – ou seja, 30% dos visitantes levaram alguma obra para casa. A relação é mais positiva do que a que se viu durante o dia no mesmo período (cerca de 20% levaram livros). Seria o público noturno mais voraz? Cedo pra dizer, mas entre os bibliotecários a explicação é que, se saíram de casa nessa hora, a chance de levarem algo é mesmo maior.
Obras clássicas da literatura, de autores como José de Alencar e Machado de Assis, estão entre as mais emprestadas nas madrugadas. Não que a biblioteca tenha funcionado, à noite, como clubes de leitura, em que literatura aparece como tópico principal. Em duas noites inteiras, poucos pareceram imersos em histórias. Até a chegada do barbeiro José Lourenço – que, às 5 horas de quarta, procurava no catálogo A vida do livreiro A.J. Friky, de Gabrielle Zevin. Sentou-se numa mesa lateral, com vista para a Consolação, e começou a ler. “É uma carta de amor para o mundo dos livros”, disse. “Tudo a ver com minha vida hoje.”
Budista desde 1982 (“quando a Madonna veio ao Brasil”, assim ele gravou a data da conversão), este barbeiro de 60 anos acredita que a principal motivação de sua vida hoje é a leitura. “Houve um momento em que era ganhar dinheiro, e me esfalfei durante 16 anos no Projac (da Globo). Depois houve o momento das viagens, da vida amorosa, e hoje, depois de muitos percalços, é o da sede de saber”, diz. “Aqui encontro a mim mesmo por meio da leitura. Me refugiei aqui dentro, e encontrei um mundo só meu.”
Lourenço cita refúgio e fez lembrar da Nádia, que de quase vítima de assalto viu-se abrigada a noite inteira. Até pouco antes de amanhecer, ela ainda falava com o novo amigo, agora sentados em pufes na seção de História Geral. A vendedora tinha nas mãosConversas com um Jovem Professor (Contexto), de Karnal. E falava sobre planos de voltar a ler, “para ver se tiro o funk da cabeça”. “É uma praga! Coloque um funk e depois coloque Caetano, pra ver qual você decora antes...”, ela dizia – e Higor se preparava para complementar, quando a conversa foi interrompida por um atendente noturno. “Licença. Tá aqui o teu Kant”, ele disse, e entregou à moça uma biografia do filósofo alemão, que, depois de passar uma madrugada na biblioteca, ela agora levaria ao Cantão.
domingo, agosto 21
Pensamentos de livreiro
Um livro começa a ser quando se lê, quando ele faz o trabalho de unir o escritor com o leitor.
Na livraria de Maspero, em Paris, colocaram um cartaz que dizia: ". A direita quer nos suprimir, se você continuar roubado livros, teremos de fechar. Não colaborar com o inimigo." Eles fecharam.
Há bibliotecas que são cemitérios de palavras, com nichos até o teto, nas pilhas cantos e pacotes nas mesas; há livrarias onde as palavras são gatos que dormem em sofás, com fitas cor de rosa e uma caixa de chocolates; há livrairas onde as palavras têm vergonha e onde Shakespeare e Goethe - se forem encontrados - estão de costas para que não sejam reconhecidos ...
Hector Yanover (1929-2003), o mais famoso livreiro em Buenos Aires
Como se fosse um bricabraque
Está escuro e frio. Poderia ser a morte, se o amor nos permitisse esse luxo. Ele nos quer bem vivos, para louvá-lo e cortar-lhe as unhas encravadas.
Depois de cada reunião em que os parnasianos declamavam seus poemas, um funcionário recolhia com luvas de seda e uma pinça as vogais de ouro lançadas no tapete junto com os preciosos perdigotos.
A poesia deveria nascer em árvores e confundir-se de tal maneira com os frutos que não se pudesse distinguir um soneto de uma maçã.
Ele gostaria de ter morrido ouvindo uma brisa que assobiasse uma canção de Cole Porter, numa tarde tão antiga que hoje ninguém mais se lembrasse daquela tolice toda sobre ele ter morrido de amor.
Se for seu destino arder no inferno, ele já escolheu o pecado: a luxúria. A simples palavra já o deixa em estado de febre e, quando é tomado por seus sintomas, ele se torce, se retorce, se contorce, se dobra, se curva, se recurva, e morde-se nos lábios, e arranha as palmas das próprias mãos, e se inteiriça, e se goza, como se estivesse se possuindo.
Bem fazem os homens que na agenda têm endereços de motéis. Que mulher há de querer seguir um poeta? Os poetas só conhecem o caminho das estrelas e da lua.
Quando ela ordena “agora!”, ele se compadece de todos os césares mortos, alheios já aos suplícios e aos gozos da carne, e crava-se dentro dela, com a irrefutável legitimidade da carne viva e cobiçosa.
Eu olhava para aquela mochila que ela sempre carregava e imaginava a vertigem que sentiria se fosse um dos objetos ali dentro, sempre ansiando pelo instante em que os dedos dela trouxessem pela proximidade a esperança de um toque, tateando naquela intimidade escura e morna.
Quem há de me respeitar, de me tomar a sério? Sou um desses homens que choram se veem um passarinho morto.
Que o amor nos tenha matado é a lógica, nada mais. Que tenhamos gostado tanto talvez seja sem-vergonhice.
A mais deliciosa conquista do sistema decimal foi o sanduíche de metro.
No Sul é um fato: se o miado é forte, só pode ser um maragato.
Glória a Deus, sim, e que um pouquinho dela possa sobrar para mim.
Na estante, três motivos para qualquer um desistir de escrever: Shakespeare, Pessoa, Dante.
Quando você pensa conhecer todos os truques do amor e imagina estar imune a eles, certa manhã um passarinho aparece, dá três bicadas na sua janela e avisa que traz um recado. Você pergunta de quem é, e ele diz que você sabe muito bem.
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Depois de cada reunião em que os parnasianos declamavam seus poemas, um funcionário recolhia com luvas de seda e uma pinça as vogais de ouro lançadas no tapete junto com os preciosos perdigotos.
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A poesia deveria nascer em árvores e confundir-se de tal maneira com os frutos que não se pudesse distinguir um soneto de uma maçã.
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Ele gostaria de ter morrido ouvindo uma brisa que assobiasse uma canção de Cole Porter, numa tarde tão antiga que hoje ninguém mais se lembrasse daquela tolice toda sobre ele ter morrido de amor.
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Se for seu destino arder no inferno, ele já escolheu o pecado: a luxúria. A simples palavra já o deixa em estado de febre e, quando é tomado por seus sintomas, ele se torce, se retorce, se contorce, se dobra, se curva, se recurva, e morde-se nos lábios, e arranha as palmas das próprias mãos, e se inteiriça, e se goza, como se estivesse se possuindo.
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Bem fazem os homens que na agenda têm endereços de motéis. Que mulher há de querer seguir um poeta? Os poetas só conhecem o caminho das estrelas e da lua.
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Quando ela ordena “agora!”, ele se compadece de todos os césares mortos, alheios já aos suplícios e aos gozos da carne, e crava-se dentro dela, com a irrefutável legitimidade da carne viva e cobiçosa.
Charles Dana Gibson, A primeira briga, 1914 |
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Eu olhava para aquela mochila que ela sempre carregava e imaginava a vertigem que sentiria se fosse um dos objetos ali dentro, sempre ansiando pelo instante em que os dedos dela trouxessem pela proximidade a esperança de um toque, tateando naquela intimidade escura e morna.
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Quem há de me respeitar, de me tomar a sério? Sou um desses homens que choram se veem um passarinho morto.
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Que o amor nos tenha matado é a lógica, nada mais. Que tenhamos gostado tanto talvez seja sem-vergonhice.
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A mais deliciosa conquista do sistema decimal foi o sanduíche de metro.
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No Sul é um fato: se o miado é forte, só pode ser um maragato.
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Glória a Deus, sim, e que um pouquinho dela possa sobrar para mim.
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Na estante, três motivos para qualquer um desistir de escrever: Shakespeare, Pessoa, Dante.
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Quando você pensa conhecer todos os truques do amor e imagina estar imune a eles, certa manhã um passarinho aparece, dá três bicadas na sua janela e avisa que traz um recado. Você pergunta de quem é, e ele diz que você sabe muito bem.
sábado, agosto 20
sexta-feira, agosto 19
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