– Ele vai me furar! – berra a mulher, perseguida por um ladrão, canivete no bolso, exigindo carteira e celular.
Ela diminui o ritmo, está quase desistindo – queira Deus seja só um assalto... – mas recobra o ânimo quando vê um prédio iluminado na esquina. Aproxima-se, escuta o bandido soltar um xingo e ouve um rapaz ali por perto: “Entra aqui, corre pra dentro!”.
Quando vê ela já está metida no hall do edifício, guiada devagarinho ao bebedouro, pra que se acalme. O ladrão quebrou à esquerda e sumiu. O rapaz oferece um cigarro. Que que é aqui mesmo?
– Bi-bli-o-te-ca? – a moça ri alto, meio incrédula, agora a salvo – não acredito que acabei minha noite numa biblioteca!
A Mário de Andrade, segunda maior do País e desde 1º de julho a única a funcionar 24 horas, se tornou refúgio de leitores notívagos. E de muita gente mais. Há vez aos que gostam dos livros – e também aos que não gostam, aos que gostam mas já se esqueceram disso, aos muitos que ainda não sabem que gostam. Aos que fogem do assalto, do frio, a quem está ali pelo Wi-Fi. Para receber esse povo todo, faz um mês e meio que a biblioteca não fecha as duas portas, nem a da Rua da Consolação, nem a da São Luís.
A mulher da touca rosa é a Nádia Pinheiro, de 31 anos, vendedora de bijuterias nas ruas do centro, e que perdeu o último trem do metrô logo hoje, dia do seu aniversário. Fizeram bolo lá na casa dela, na Favela do Cantão, na zona sul, mas ficou pra amanhã. Ela agora pita um Derby com o Higor Coutinho, universitário (cursa Matemática na FMU), de 20 anos, o rapaz que apontou a ela a biblioteca, e que usa o espaço pra ler e estudar. Ele tinha dado um tempo no Grande Crônica da Segunda Guerra Mundial: de Stalingrado a Hiroshima (Reader's Digest Edições), quando foi pra fora e deparou-se com a tentativa de assalto. Vai agora apresentar a biblioteca à moça.
As duas áreas chamadas “de convivência” da Mário estão abertas 24 horas desde outubro passado. Vêm dando abrigo a moradores de rua, a imigrantes que buscam um rumo, aos que se recuperam das baladas. Não se pode usar o lugar para dormir, mas, como aqui é agradável (bem mais do que a rua) e os vigias têm uma área grande a cobrir, as mesas ficam repletas de cabeças exaustas apoiadas em braços também fatigados – uma transgressão que resulta em interação constante entre os guardas e os que dormem. Vigias chacoalham (“ô!”, “não pode!”), adormecidos acordam, resmungam, alinham a coluna. Caem de volta à mesa logo depois. A dança dura a noite toda.
Mas o perfil do lugar se tornou mais complexo com a novidade do último mês, quando a biblioteca circulante (50 mil títulos) passou a abrir também 24 horas, todo dia. Adicionou substância – livros, autores, enredos – à cena noturna do centro.
É 1h40, e seis pessoas ocupam algumas das 16 mesas de madeira da circulante. Para emprestar livros nas três máquinas de autoatendimento, basta ter o número da matrícula no Sistema Municipal de Bibliotecas e uma senha que se faz na hora com os atendentes noturnos (misto de recepcionistas e livreiros, novidade no serviço público). Higor e Nádia caminham entre as estantes, ele ainda com o Grande Crônica... na mão, e ela agora também com um livro,A Princesa Vermelha (Record), de Sofka Zinovieff (foi ele quem escolheu, pois ela ainda estava tímida no local).
Um dos seis leitores acaba de se levantar, deixando na mesa, perto da seção de Ciências Ocultas, o Dicionário do Mundo Misterioso: Esoterismo e Paranormalidade (Nova Era), de Gilberto Schroeder. É José Aroldo dos Santos, um ex-torneiro mecânico de 67 anos, que caminha até a área de convívio e apoia-se em uma janela por onde entra o vento frio – ele tem obra nas mãos, Universo em Desencanto, que explica a Cultura Racional, crença popularizada na música de Tim Maia. Aroldo vai até a parede vermelha desta sala, feita para rabiscar a giz, e escreve: “Cultura Racional: o livro do momento”. Com letras redondas, prossegue: “Conhecimento para desenvolver o raciocínio”.
“Como todo bom estudante, estou pronto para passar adiante o que sei”, diz Aroldo, mineiro de Juiz de Fora e que vive aqui perto, num prédio da Praça Marechal Deodoro. “Descobri a biblioteca aberta à noite por acaso. Tava voltando pra casa e me deparei com o predião todo aceso. Agora venho sempre, porque aqui tem gente curiosa, bom pra conversar.” Animado, ele confidencia: “Acho que é um sinal. Um prédio com toda essa energia elétrica fluindo, toda essa energia magnética do conhecimento... É como um chamado. Vai que encontrei o lugar ideal para divulgar minha crença?”, questiona, e entrega um folheto.
Aroldo frequenta as seções de História e das várias ciências. Vem todas as noites, e observa de sua mesa o desenrolar das madrugadas: “O que tem de gente que vem pra ficar de olho em laptop...” São os “olheiros”, figuras conhecidas dos vigias. Entram na circulante, pegam um livro qualquer, mas nem chegam a virar as páginas. “Querem saber de outra coisa, mapeiam quem tem celular bom, computador...”, conta um segurança. “Se bobear é que nem gavião: tchum! E lá se foi o tablet. Temos duas advertências: não deixar o equipamento sozinho nas mesas, e tomar cuidado nos arredores.” No projeto de abertura noturna, a direção bem tentou incluir a segurança da praça vizinha, a D. José Gaspar. A Prefeitura não autorizou, e a Guarda Civil Metropolitana continua responsável pelos arredores. Como há sempre funcionários por perto, dentro da biblioteca a sensação é de segurança à noite, e ainda não foram registrados furtos nesse horário.
A essa altura, 2h30 da manhã, numa das bancadas do mezanino, uma mulher de hijab e um rapaz de coque no alto da cabeça dividem um fone de ouvido e sorriem olhando a tela de um laptop. Elham Selim, egípcia de 28 anos, e Makarem Tuiki, tunisiano de 26, que fazem um intercâmbio de trabalho numa ONG, encontraram aqui um bom lugar para atualizar a conversa com o povo de longe. Queixam-se da escassez de livros em inglês, mas dizem considerar a biblioteca “o melhor lugar pra ver filmes em São Paulo”. Eles agora assistem à comédia francesaIntocáveis. “O Wi-Fi funciona bem de madrugada”, diz ela. “E é bom aos estrangeiros, porque temos poucos amigos, e aqui podemos ficar entre outras pessoas.”
Também no mezanino circulam Higor e Nádia (recuperada do susto), parados em frente à seção de Filosofia. Ele segura O Filósofo e a Teologia(Academia Cristã), de Étienne Gilson. Nádia agora está falante, e tem em mãos Cartas Escritas na Montanha, de Jean-Jacques Rousseau. “Conheci o Rousseau num vídeo do Leandro Karnal. Pelo que ele contou, o Rousseau sofreu muito, foi injustiçado. Se eu sofresse a metade, me matava”, ela diz. Passaram-se três horas desde a tentativa de assalto, e os dois ainda estão passeando entre as estantes, ainda falando de livros – vem de longe o hábito da leitura na vida deles? Higor atribui à escola, mas a Nádia, que estudou até a sexta série, adquiriu o costume de outra forma. “Deixava meus dois filhos numa livraria Saraiva, enquanto trabalhava. Quando ia buscar ficava lendo.” Nesses intervalos leu Invencível, de Laura Hillenbrand, que considera seu livro preferido. “Mas já faz muitos anos. Outras coisas roubaram minha atenção, e não pude mais ler. Sentia um vazio... Agora que sei que uma biblioteca abre à noite, quero vir mais vezes depois do trabalho.”
A abertura 24 horas da Mário de Andrade é planejada desde 2013, mas começou a sair do papel só no fim do ano passado. Foi preciso novas licitações para os serviços – o número de funcionários subiu de 150 para 250, e as despesas subiram 38% (de R$ 10,8 milhões para R$ 15 milhões anuais). “A abertura faz parte da política de aproximar a Mário de Andrade do público. Biblioteca não é depósito de livros. Tem de ser vista como um centro de encontros”, diz o diretor da instituição, o filósofo e professor da USP Luiz Armando Bagolin. “Temos livros sobre teatro, então vamos montar peças aqui dentro. E isso vale para música, cinema, todas as áreas.” Uma das inspirações vem do sistema público de bibliotecas de Nova York e, por lá, funciona: o orçamento do setor aumentou 10% de 2015 para 2016 quando se notou o sucesso dos serviços oferecidos (de aconselhamento profissional a aulas de tricô, com filas de meses). Por aqui, por outro lado, houve congelamento.
Em um mês e meio de funcionamento 24 horas, a biblioteca recebeu em média 60 pessoas por madrugada (0h às 7h). E teve média de 18 livros emprestados por noite – ou seja, 30% dos visitantes levaram alguma obra para casa. A relação é mais positiva do que a que se viu durante o dia no mesmo período (cerca de 20% levaram livros). Seria o público noturno mais voraz? Cedo pra dizer, mas entre os bibliotecários a explicação é que, se saíram de casa nessa hora, a chance de levarem algo é mesmo maior.
Obras clássicas da literatura, de autores como José de Alencar e Machado de Assis, estão entre as mais emprestadas nas madrugadas. Não que a biblioteca tenha funcionado, à noite, como clubes de leitura, em que literatura aparece como tópico principal. Em duas noites inteiras, poucos pareceram imersos em histórias. Até a chegada do barbeiro José Lourenço – que, às 5 horas de quarta, procurava no catálogo A vida do livreiro A.J. Friky, de Gabrielle Zevin. Sentou-se numa mesa lateral, com vista para a Consolação, e começou a ler. “É uma carta de amor para o mundo dos livros”, disse. “Tudo a ver com minha vida hoje.”
Budista desde 1982 (“quando a Madonna veio ao Brasil”, assim ele gravou a data da conversão), este barbeiro de 60 anos acredita que a principal motivação de sua vida hoje é a leitura. “Houve um momento em que era ganhar dinheiro, e me esfalfei durante 16 anos no Projac (da Globo). Depois houve o momento das viagens, da vida amorosa, e hoje, depois de muitos percalços, é o da sede de saber”, diz. “Aqui encontro a mim mesmo por meio da leitura. Me refugiei aqui dentro, e encontrei um mundo só meu.”
Lourenço cita refúgio e fez lembrar da Nádia, que de quase vítima de assalto viu-se abrigada a noite inteira. Até pouco antes de amanhecer, ela ainda falava com o novo amigo, agora sentados em pufes na seção de História Geral. A vendedora tinha nas mãosConversas com um Jovem Professor (Contexto), de Karnal. E falava sobre planos de voltar a ler, “para ver se tiro o funk da cabeça”. “É uma praga! Coloque um funk e depois coloque Caetano, pra ver qual você decora antes...”, ela dizia – e Higor se preparava para complementar, quando a conversa foi interrompida por um atendente noturno. “Licença. Tá aqui o teu Kant”, ele disse, e entregou à moça uma biografia do filósofo alemão, que, depois de passar uma madrugada na biblioteca, ela agora levaria ao Cantão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário