Jorge Luis Borges nunca se encantou pelo futebol. Nesta crônica, o jornalista Iuri Müller fala sobre aquilo que perdemos graças à aversão de Borges ao esporte bretão, simulando uma conversa ou uma carta enviada ao mestre da ficção argentina e mundialSei dos teus motivos, mas ainda assim não posso aceitar a tua recusa. Eu estive em Liniers e vi a iluminação noturna, uma larga cadeia de lâmpadas amarelas a se misturar com a procissão de homens e mulheres que caminhavam, de azul e branco, em direção ao José Amalfitani. Horas depois, voltariam para casa a pé (para Villa Luro, para Floresta), uma história ou uma lembrança movendo cada passo, as lâmpadas amarelas enfrentando, por sua vez, a noite já escura. Pareceu- -me, novamente, que haveria algo a se dizer sobre estas imagens, e que tu poderias dizer com mais clareza do que qualquer um de nós.
E a cidade antiga, a que tu cantavas em Cuaderno San Martín, a tão buscada Buenos Aires de ontem e que evapora um pouco mais a cada dia, essa cidade por acaso não estava todo o tempo ao teu lado, nas arquibancadas amarelas de Villa Crespo, onde centenas de judeus, todos os domingos, se aglomeravam para ver com os próprios olhos o time do bairro? Se Baruch Espinosa, teu filósofo preferido, tivesse por acaso nascido pelas redondezas, ele seria torcedor do Atlanta, nós dois sabemos, e depois de cada jogo iria ao bar do velho Linch, aquele que sabe recitar todas as escalações do clube desde algum momento impreciso dos anos 1930.
Os temas, os teus temas, que ironia, sempre estiveram dentro de um estádio, era só ter comprado um ingresso (vinte pesos e vamos os dois na popular, se queres companhia) e deixar que os acontecimentos se aproximem, pois sempre que estamos num lugar assim algo irá nos acontecer. Não enxergas a coragem de arrabalde daquele lateral direito do Platense, o moreno que completou o jogo inteiro com um corte imenso na maçã do rosto? E a vingança matemática, arquitetada ao longo de sete meses por Domínguez, o zagueiro do Almagro que esperou o campo pelo outono para marcar para sempre, com uma cotovelada, o nariz de Acevedo, o ponteiro corredor que jogava no Temperley? Isso se deu numa tarde nublada, bem perto do rio, e creio também que o cenário teria te agradado: um bairro de ruas estreitas, casas com luz de pátio, um compadrito que fuma numa esquina pouco antes de adentrar o armazém.
Aqui estão todas as tuas obsessões: cada técnico à beira do gramado é um jogador de xadrez na biblioteca, a arquibancada visitante é o nosso labirinto, e não há melhor modo de sentir a passagem do tempo como perceber que, após dois rebaixamentos e longas temporadas no Ascenso, o Ferro Carril Oeste está de volta à Primeira e batalha para ser campeão. Que lástima que este jogo não te encanta, Borges. Ainda posso te imaginar (é um velho delírio meu) numa das tribunas do Palacio Ducó, no sul da cidade de Buenos Aires, a observar em silêncio o Huracán em campo, o clube dos teus sonhos e amores. Também sei que, de pouco em pouco, tu desviar o olhar do gramado para contemplar os rostos na arquibancada, os desenhos no céu, a cidade que se transforma lá fora, e isso tudo com os teus olhos perplexos e frágeis.
Iuri Müller
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