terça-feira, agosto 30

Ruído de passos

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Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo. Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. 

Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa. 

Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava. 

Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:

 - Quando é que passa? 

- Passa o quê, minha senhora? 

- A coisa. 

- Que coisa? 

- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim. 

- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca. Olhou-o espantada. 

- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade! 

- Não importa, minha senhora. É até morrer. 

- Mas isso é o inferno! 

- É a vida, senhora Raposo. 

A vida era isso, então? Essa falta de vergonha? 

- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais... 

O médico olhou-a com piedade. 

- Não há remédio, minha senhora.

 - E se eu pagasse? 

- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade. 

- E... e se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer? 

- É, disse o médico. Pode ser um remédio. 

Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado. 

Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte. A morte. 

Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.
Clarice Lispector

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