sexta-feira, agosto 26

Papéis coloridos

Meu primeiro emprego foi como vendedora de uma pequena livraria em Fortaleza, aos dezenove anos, e eu poderia contar inúmeras histórias que me aconteceram nesse período. Da mulher que me pedia para escrever dedicatórias de um fictício amante apaixonado ao rapaz que ia diariamente me pedir que lhe contasse das minhas leituras e que acabou casando comigo. Da presença de Rachel de Queiroz no lançamento do seu livro de memórias Tantos anos às performances do poeta pernambucano Miró, que lotava a livraria em todos os seus eventos.

Nos meus primeiros dias de trabalho, eu praticamente só vendia dois livros: O mundo de Sofia e O Xangô de Baker Street. Eles vinham da Companhia das Letras, uma editora que eu não conhecia ainda, mas que me conquistou de cara e me ajudou muito no começo.

Primeiro, porque a venda inacreditável dos livros mencionados acima melhorou consideravelmente a minha comissão. Segundo porque eu não tinha tempo de ler tudo e precisava de informações para indicar as novidades para os clientes. Então a Companhia mandava resenhas dos livros em papéis coloridos, vários tons de todas as cores. Eu guardava um por um no colecionador de plástico que eu levei de casa. Até que não coube mais nada e eu tive a ideia de encadernar e deixar na mesa de leitura da livraria.

Foi um sucesso. Alguns clientes sentavam para ler o Caderno de Resenhas da Companhia das Letras. Escolhiam os livros e faziam encomendas. Eu morria de ciúmes. Se alguém sentasse à mesa e ignorasse meu precioso caderno de resenhas, eu pedia licença e o retirava de lá, com medo de alguma avaria.

Quando a livraria fechou, o caderno foi doado à artista plástica Alba Alves, maior fã da Companhia que passou por ali. Lemos na mesma época o Momentos do livro no Brasil e conversávamos sobre o papel da editora na história do livro. Ela mereceu herdar o volume.

Deixei o trabalho para voltar à faculdade de jornalismo. Quase no final do curso, o escritor Lira Neto, então editor da Fundação Demócrito Rocha, convidou-me para escrever um dos ensaios biográficos da saudosa coleção Terra Bárbara. Uma semana antes, eu estive com Frei Betto, que lamentava a falta de uma biografia sobre o frade cearense Frei Tito de Alencar. Aceitei o desafio e publiquei o livro Frei Tito em 2001.

Depois do Frei Tito, segui a carreira de escritora e alimentei secretamente, pouco a pouco, o desejo de publicar pela Companhia das Letras.

Enfim, chegou a minha vez. Levado pelas mãos da minha agente Lúcia Riff, em 2014, meu romance A cabeça do Santo foi publicado pela Companhia. A capa amarela escolhida pela designer Elisa Von Randow me fez lembrar dos papéis coloridos que eu guardava como tesouro aos dezenove anos, trabalhando na livraria.

É pela lembrança tão nítida desses dias que cometo o pecado da pieguice na hora de falar da minha relação com a Companhia das Letras. Tenho dois livros na casa, mais dois por vir em breve e vários planos para o futuro. Minhas editoras são minhas amigas, bem como todos os que cuidam de várias etapas de edição e divulgação dos meus livros.

Não passo por São Paulo sem visitar a casa e tenho um orgulho imenso de ser parte da comemoração dos trinta anos da Companhia das Letras, de maneiras diferentes, desde 1994. Toda pieguice será perdoada. É tudo sonho e narrativa.

Socorro Acioli

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